Saída ao mar desencadeia guerra audiovisual e incidente diplomático entre Chile e Bolívia

“Mar boliviano”

Saída ao mar desencadeia guerra audiovisual e incidente diplomático entre Chile e Bolívia 

Frederico Füllgraf

de Santiago de Chile

Especial para Jornal GGN

Em abril de 2013, a Bolivia protocolou uma ação contra o Chile perante a Corte Internacional de Justicia (CIJ), em Haia, para forçar uma negociação sobre o que considera “pendência histórica”: uma saída soberana ao mar através dos territórios bolivianos incorporados pelo Chile após sua vitória na Guerra do Salitre (1879-1883). A demanda é recusada pelo Chile, para quem todas as diferenças fronteriças com La Paz teriam sido resolvidos pelo Tratado de Paz e Amizade, de outubro de 1904. Apesar da tentativa de impugnação do Chile, a CIJ acolheu o pleito boliviano, devendo emitir sentença até 2016.

Aconteceu no último dia 22 de janeiro, em La Paz, mas deu-se a conhecer em Santiago do Chile apenas no dia 11 de fevereiro.

Sergio Muñoz, presidente da Corte Suprema chilena, assistia à investidura do presidente Evo Morales em seu terceiro mandato, quando, inopinadamente, soaram os acordes de um tema marcial que o chileno não conhecia, mas que foi acompanhado em pé pelas comitivas nacionais e internacionais presentes.

Dos alto-falantes reverberaram versos como “Entonemos la canción del mar, del mar, del mar // Levantemos nuestra voz por nuestro Litoral Que pronto tendrá Bolivia otra vez su mar, su mar….”.

Há várias canções e hinos oficiais que celebram o “mar boliviano”, mas o executado na posse de Morales era nada menos que a “Marcha Naval”, cuja última estrofe, aos ouvidos chilenos, pode ir da ofensa à declaração de guerra: “Antofagasta, tierra hermosa Tocopilla, Mejillones junto al mar, Con Cobija y Calama, Otra vez a Bolivia volverán”.

“Me senti agredido e por isso manifestei minha preocupação”, desabafou vinte dias depois a máxima autoridade chilena, que representava a presidenta Michelle Bachelet e seu ministro de Relações Exteriores, Heraldo Muñoz, na cerimônia de posse.

De volta da Bolívia, no palácio La Moneda instruíram Muñoz para “a próxima vez”: de acordo com o código de conduta diplomática, uma forma de protestar contra a execução de um hino como aquele, é ficar sentado, não ouvi-lo de pé.

Doutrina de Estado em contra-ofensiva audiovisual

Mas o que, afinal, um presidente de um Supremo fazia em La Paz?

Desde que recebera o convite para a posse de Morales, em outubro de 2014, o governo chileno empenhou-se em esvaziá-la, desconversando e pretextando “agenda lotada” de Michelle Bachelet, cuja última pérola foi inventar uma reunião com o Papa Francisco, em companhia de Cristina Kirchner, cancelada em dezembro e não mais reagendada. No dia da posse de Morales, Bachelet ficou em Santiago e foi inaugurar uma obra na periferia. Ao somar-se à ausência da presidenta e enviar um representante, não do Executivo, nem do Legislativo, mas do Judiciário, Heraldo Muñoz, o chanceler, premeditadamente, jogou gasolina no fogueira. O desastrado script chileno foi anotado em La Paz, que então deu o “troco”.

A execução da “Marcha Naval” ilustra em compasso marcial a subida de tom no péssimo relacionamento entre a Bolívia e o Chile, agravado pela recente negativa do governo Bachelet em receber o ex-presidente boliviano, Carlos Mesa, que anunciara intenção de visitar o Chile em março próximo, gesto deselegante que configura incidente diplomático.

Energicamente criticado por ter menosprezado o preparo – sobretudo a bem dosada e eficaz campanha midiática – do Peru, por quem, finalmente, foi derrotado na disputa marítima perante a mesma CIJ, em janeiro de 2014, agora o Chile tenta compensar a iniciativa da Bolívia com uma contra-ofensiva audiovisual e investimento nas redes sociais da internet.

No bem acabado vídeoChile y la aspiración marítima boliviana: mito y realidad, com 6´40” minutos de duração e versões legendadas em inglês y francês, o chanceler Heraldo Muñoz atua como guia turístico das facilidades portuárias e alfandegárias oferecidas à Bolívia que, segundo a interpretação chilena, comprovariam que o vizinho teimoso tem, sim, uma saída para o mar. “Deste modo, as pessoas poderão perceber que se trata de uma cobrança infundada, artificiosa”, pontua Muñoz.

Para reforçar sua argumentação, o governo Bachelet mobilizou três ex-presidentes – os conservadores Eduardo Frei Ruiz-Tagle e Sebastián Piñera, além do socialista Ricardo Lagos – que no dia seguinte ao lançamento do vídeo inauguraram o que o chanceler chama de “diplomacia pública”. Líder do Partido Democrata-Cristão, que em 1973 ajudou a derrubar o presidente Salvador Allende, mas que hoje integra o governo da Nova Maioria, de Michel Bachelet, Eduardo Frei precipitou-se em visita ao Papa Francisco, que em 2015 deverá visitar a Bolívia, para convencê-lo a também visitar o Chile e, quem sabe, demovê-lo de seu eventual papel mediador. Frei e Piñera são os mesmos que, em outra missão da “diplomacia pública”, viajam pela América Latina, promovendo ataques ao governo da Venezuela, “um país que não respeita a democracia” (E. Frei ao La Segunda, 26/1/2015).

Ao cerrar fileiras com os ex-presidentes conservadores, o governo encabeçado pelo Partido Socialista alinhou-se à doutrina de Estado rezada como rosário desde o fim da Guerra do Salitre: a de que o Tratado de 1904 é inviolável. Portanto, sob pretexto algum, o Chile abdicará dos territórios conquistados à Bolívia.

Dívida histórica”

Imediatamente após a postagem do vídeo, o ex-presidente Carlos Mesa – porta-voz especial do governo boliviano para o pleito marítimo – contestou os argumentos chilenos na CNN, dizendo:”Devo insistir pela milésima vez que a Bolivia não está incluindo, direta nem indiretamente, o Tratado de 1904, portanto a parte fundamental que explicam os ex-presidentes do Chile no vídeo não tem fundamento, porque não é parte da nossa demanda”.

O que quer então a Bolívia?

“O Chile tem uma dívida histórica com a Bolívia!”, adverte na mesma CNN o senador chileno, Alejandro Navarro, ex-socialista, hoje presidente do MAS – Movimento Amplo Social.

A dívida histórica advertida por Navarro é uma pendência não resolvida faz 110 anos, e está sintetizada no Video de la demanda marítima de Bolivia contra Chile en la CIJ – produção despojada de artifícios técnicos, em compensação, repleta de densidade humana e plausibilidade argumentativa, que responde ao vídeo chileno.

Recapitulando: na Guerra do Salitre, a Bolivia perdeu 120.000 km2 de seu território e os 400 km do seu litoral (Antofagasta, por exemplo, é uma fundação genuinamente boliviana), tornando-se o único país da América do Sul sem saída ao mar.

Mediante o “Tratado de Paz e Amizade” de 1895, a Bolivia aceitava, sim, “o dominio absoluto e perpétuo” do Chile sobre seu litoral, em troca de reparações financeiras.

Em separado, um acordo, considerado secreto, previa a “transferência de territórios” à Bolívia, nomeadamente de Tacna e Arica, caso o Chile garantisse a posse definitiva de tais provincias, o que acabou não acontecendo, pois teve que devolver Tacna ao Peru. Porém, estipulava o Art. 4 deste tratado que, “Si la Republica de Chile no pudiese obtener en el plebiscito o por arreglos directos la soberanía definitiva de la zona en que se hallan las ciudades de Tacna y Arica, se compromete a ceder a Bolivia la caleta de Vitor, hasta la Quebrada de Camarones, u otra análoga, y además la suma de cinco millones ($ 5.000.000) de pesos de plata de veinticinco gramos de plata y nueve decimos de fino (grifos meus).

Ocorre que o Congresso boliviano insistiu em uma cláusula mediante a qual se reservava o direito de aceitar ou não o porto oferecido pelo Chile que, surpreendido pela anexação por parte da Argentina da Puna de Atacama (hoje território da Província de Salta), suspendeu as negociações, apenas retomadas em 1904, com a assinatura do tratado de normalização das relações com a Bolívia, que o Chile interpretou como fixação definitiva das fronteiras.

Em sua essência, o Tratado de 1904, mais uma vez evocado por Michelle Bachelet, foi um engodo, porque submeteu a garantia dada anteriormente – não de mera saída ao mar, mas de restituição de parte do litoral da Bolívia – a um plebiscito sobre o futuro de Tacna e Arica. Ou seja, o Chile prometeu doar territórios que não lhe pretenciam e que o Tratado de Lima de 1929 enterrou de vez, ao estabelecer que Tacna retornaria à soberania do Peru e Arica seria cedida ao Chile.

Em outras palavras: em 1929, o Chile poderia ter cumprido sua promessa de 1895, mas não o fez – este é o núcleo da demanda boliviana.

Surpreendentemente, 50 anos mais tarde, mediante o Acordo de Charaña, de 1975, ninguém menos que ditadura Pinochet ofereceu à ditadura Banzer, da Bolívia, uma faixa litorânea ao norte de Arica e um corredor terrestre, plenamente soberanos, em troca de um enclave territorial junto à salina de Uyuni. Infelizmente, a oferta não se concretizou, desta vez devido à oposição do Peru, que reivindicou o status tri-nacional da faixa litorânea oferecida por Pinochet; moção prontamente rejeitada pela Bolívia e pelo Chile. Em 1978, Bolivia e Chile romperam suas relações diplomáticas, desde então existentes apenas em nivel consular.

Chilenos solidários com a Bolívia

Atualmente, 68% dos chilenos rejeita uma saída marítima soberana à Bolívia, motivo pelo qual o senador Navarro considera que “talvez daqui a uma ou duas gerações, mais informadas e educadas sobre o tema, mas atualmente não há espaço na sociedade chilena para esse pleito”.

Integrante do bloco minoritário, dos 10% de chilenos favoráveis à Bolívia – que em outubro de 2014 entregaram uma Carta de Apoio a Evo Morales, assinada por mais de 300 líderes sindicais e de movimentos sociais chilenos – em entrevista à Rádio Universidade do Chile, o historiador Sergio Grez critica duramente a posição do governo Bachelet: “Eu diria que o nível de comprensão dos nossos governantes, a partir de 1990, é inferior inclusive ao do ditador Pinochet, que pelo menos tentou uma solução negociada com o ditador boliviano, Hugo Banzer, e que pactava uma saída soberana ao mar para a Bolivia. Sabemos que não teve sequência favorável, mas indicava certo realismo político por parte do Estado chileno, e não essa teimosa negativa em reconhecer o problema. Insisto: isso não tem a ver apenas com política, mas com emoções, identidades e um sentimento de expropriação. Por isso, me parece que a posição oficial do Chile é irrealista, porque vive reiterando que não há pendências, mas basta que uma das partes sinta que há problemas, sim, e o problema passa a existir. No fundo, a posição oficial do Chile é tentar tampar o sol com peneira.”

Phillip Sands, o terror de Pinochet, temido por Bachelet

Adversário quem sabe mais temido pelo Chile que o próprio Evo Morales, é o jurista inglês, Phillip Sands, contratado pela Bolívia para alinhavar as linhas-mestras do pleito e coordenar sua equipe jurídica em Haia, integrada pelos advogados espanhóis Antonio Remiro Brotóns, Jorge Cardona Llorens y Rosa Riquelme, além dos argentinos, Marcelo Kohen e Osvaldo Gugliermino.

Especialista em Direito Internacional, da Universidade de Cambridge, Sands integra o egrégio conselho jurídico da Rainha Elisabeth II e acumula invejável portifólio de causas e publicações, entre as quais sua representação da Macedônia em uma ação contra a Grécia, e seus livros “Lawless World” (2006) – no qual acusa George W. Bush e Tony Blair de conspiração para a invasão do Iraque, violando o Direito Internacional – e “Torture Team” (2008), sobre as ordens de mais alto nível do governo dos EUA , exigindo tortura como método para forçar confissões na “guerra ao terror”.

Porém, o que causou espanto ao Chile é que Sands não apenas observou de perto o desenrolar da disputa marítima entre o Chile e o Peru, mapeando os pontos fracos da defesa chilena, mas que ele é aquele maldito jurista abordado pelo governo chileno em Londres, em 1999, para impedir que o ditador e violador de DDHH, Augusto Pinochet, fosse extradito à Espanha. Sem chance: invertendo o jogo, naquela oportunidade, Sands aderiu à equipe de advogados que pressionou pela entrega de Pinochet ao juiz Balthazar Garzón – pressão finalmente abortada por um golpe jurídico do Supremo britânico, insistentemente assediado pelo então ministro de Relações Exteriores do Chile, o socialista José Miguel Insulza, atual presidente da OEA. 

Redação

5 Comentários

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  1. E o Paraguai?

    “Recapitulando: na Guerra do Salitre, a Bolivia perdeu 120.000 km2 de seu território e os 400 km do seu litoral (Antofagasta, por exemplo, é uma fundação genuinamente boliviana), tornando-se o único país da América do Sul sem saída ao mar.”

  2. Ainda bem que não temos

    Ainda bem que não temos nenhuma questão desse nível. Talvez, futurramente algum governo boliviano queira cobrar do Basil pelo valor exorbitante que cobrou por refinaria que tinha por lá.

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