Strange Fruit, a fruta amarga do racismo

Enviado por Mara L. Baraúna

Strange Fruit – a fruta amarga do racismo

Do Portal Vermelho

A cantora é simplesmente genial – Billie Holiday. O autor é Abel Meeropol, um professor de inglês no Bronx, bairro de Nova York, que assinava poemas e canções com o pseudônimo Lewis Allan. O tema é assustador: o linchamento de negros nos Estados Unidos, comuns há algumas décadas. Esta é a receita que resultou num dos maiores clássicos da canção de protesto nos EUA: Strange Fruit, cuja história está contada no livro Strange Fruit: Billie Holiday e a biografia de uma canção, de David Margolick, que a editora Cosac Naify acaba de lançar em português.

A música, composta aí pelo final de 1937, foi gravada originalmente por Billie Holiday em abril de 1939 e logo apresentada em público no Café Society, uma espécie de clube noturno que reunia socialistas, comunistas, sindicalistas e democratas em Nova York (foi fechado, no começo da década de 1950, pelos caça-comunistas liderados pelo direitista chefe do FBI, J. Edgar Hoover). Foi um choque. Em sua autobiografia, a própria Billie Holiday registrou o impacto: quando terminou de cantar: silêncio total; “então uma pessoa começou a aplaudir nervosamente e, de repente, todo mundo estava aplaudindo”.

 


Billie Holiday

Strange Fruit é uma canção inquietante, que sempre provocou adesões fervorosas e rejeições ferozes quando era apresentada. Por um motivo simples, como registra Margolick: ela confronta uma nação (os Estados Unidos) com seus fantasmas mais cruéis.

A menção aos linchamentos é direta, e chocante, e isso faz dela, como disse na época o crítico E. Y. “Yip” Harburg, um “documento histórico”. Outro crítico de jazz, Leonard Feather, tem opinião semelhante: foi “o primeiro protesto relevante em letra e música, o primeiro clamor não emudecido contra o racismo”; com certeza, disse ele, “nenhuma canção na história dos Estados Unidos representa tamanha garantia de silenciar uma plateia ou gerar tanto desconforto”. 

Anos mais tarde, a militante negra e comunista Ângela Davis escreveu, em Blues Legacies and Black Feminism (Legados do blues e feminismo negro), que Strange Fruit devolveu “o elemento de protesto e resistência ao centro da cultura musical negra contemporânea”.

A “fruta estranha” do título e da letra é o corpo dos negros linchados e enforcados em alguma árvore, onde ficavam sangrando, balançando ao vento. Na tradução da letra, publicada neste livro, o tradutor escreveu o verso final assim: “Eis uma estranha e amarga fruta”. Preferi escolher uma versão em português mais ao pé da letra original, que diz “Here is a strange and bitter crop” (Eis uma estranha e amarga colheita), por duas razões. Primeiro em respeito à ênfase que a interpretação de Billie Holiday dava à última palavra, “crop” (colheita); depois por julgar a palavra “colheita” mais adequada para manter o espírito original da canção: enquanto “fruta”, neste último verso, se refere a uma pessoa singular, a palavra ”colheita” se refere a toda uma coletividade “colhida” nas garras da ferocidade racista.

O linchamento de negros, e outras pessoas acusadas de algum crime, era uma espécie de ritual amplamente aceito nos Estados Unidos. Um levantamento conservador indica que, entre 1889 e 1930 ocorreram 3.833 linchamentos, 90% dos quais no Sul, e a imensa maioria eram negros. “Linchamentos tendiam a ocorrer em cidades pequenas e pobres, muitas vezes tomando o lugar, como disse certa vez o famoso jornalista H. L. Mencken, ‘do carrossel, do teatro, da orquestra sinfônica’”, diz Margolick. 

Era uma perversa e feroz “diversão” popular. Eles ocorriam em resposta a uma série de supostos crimes, “não apenas assassinato, roubo e estupro, mas também por insultar uma pessoa branca, por se gabar, por falar palavrão ou comprar um carro. Em alguns casos, não havia infração alguma: era apenas hora de lembrar aos negros ‘metidos’ que eles deviam saber qual era seu lugar”, escreveu o autor.

Margolick endossa a suposição de que a inspiração da canção Strange Fruittenha sido uma fotografia que, desde a década de 1930, tem sido uma inquietante denuncia visual daqueles crimes coletivos: o linchamento de dois homens negros ocorrido em Marion, Indiana (no Norte, portanto, e não no Sul…). A foto foi amplamente usada como denúncia contra o racismo e Meeropol provavelmente escreveu seu primeiro poema sobre o assunto inspirado nela, que foi publicado no jornal sindical The New Yorker Teacher, em janeiro de 1937.

Abel Meeropol e sua esposa eram militantes clandestinos do Partido Comunista dos Estados Unidos, ao qual foram filiados até 1947 mas, mesmo assim, vigiados pelo FBI até 1970. Em 1941 ele foi forçado a depor em uma investigação sobre atividades comunistas – queriam saber quanto o partido pagou pela música, ou se os lucros iam para o partido, mas ele negou tudo. O casal permaneceu ligado aos comunistas e, na década de 1950, adotaram os filhos menores do casal Ethel e Julius Rosenberg, executados na cadeira elétrica em junho de 1953 depois de um controverso processo onde foram acusados de espionagem a favor da União Soviética.

A própria Billie Holiday chegou a ser convocada, na década de 1940, para depor perante uma investigação anticomunista, para explicar-se a respeito da gravação e das frequentes apresentações de Strange Fruit. Em 1950, Josh White, que havia gravado a música, foi convocado a depor perante o Comitê de Atividades Antiamericanas, coração do tristemente célebre macarthismo.

Billie Holiday morreu ainda jovem, em 1959. Tinha 44 anos e foi devastada pelo abuso do álcool e de drogas. Mas nunca deixou de cantar a canção inquietante que, naqueles anos, foi frequentemente associada à luta por causas progressistas e avançadas. Foi cantada por ela na comemoração do 1º de Maio de 1941, na Union Square, em Nova York. Foi usada, por exemplo, pelo Comitê de Artes Cênicas de Nova York para pressionar os senadores pela proibição dos linchamentos. Na eleição de 1943 embalou a campanha de Ben Davis Jr, o primeiro negro e comunista a ser eleito vereador em Nova York, novamente cantada por ela.

A música popular estadunidense tem inúmeros exemplos de canções e cantores ligados à luta dos trabalhadores e ao protesto social. Um exemplo é Woody Guthrie, o cantor ligado aos comunistas que foi o ídolo da juventude de Bob Dylan; Alfred Hayes e Earl Robinson foram os autores célebre Joe Hill, imortalizada por Joan Baez e que conta a história do militante operário condenado à morte em 1915; há What Did I Do to Be So Black and Blue?, que Louis Armstrong transformou numa espécie de hino da luta contra o racismo. Isto só para citar algumas, de memória… Mas nenhuma se iguala, em influência, desafio e permanência histórica a Strange Fruit, que pode ser ouvida em seguida, na voz da “dona” da canção, Billie Holiday.

https://www.youtube.com/watch?v=s9FZMHNhJ80

A música

Strange fruit

Southern trees bear strange fruit,
Blood on the leaves and blood at the root,
Black bodies swinging in the southern breeze,
Strange fruit hanging from the poplar trees.

Pastoral scene of the gallant South,
The bulging eyes and the twisted mouth,
Scent of magnolias, sweet and fresh,
Then the sudden smell of burning flesh.

Here is fruit for the crows to pluck,
For the rain to gather, for the wind to suck,
For the sun to rot, for the trees to drop,
Here is a strange and bitter crop.

A tradução

Fruta Estranha

Árvores do sul produzem uma fruta estranha,
Sangue nas folhas e sangue nas raízes,
Corpos negros balançando na brisa do sul,
Frutas estranhas penduradas nos álamos.

Cena pastoril do heróico sul,
Os olhos inchados e a boca torcida,
Perfume de magnólias, doce e fresco,
E de repente o cheiro de carne queimada.

Aqui está a fruta para os corvos puxarem,
Para a chuva colher, para o vento sugar,
Para o sol secar, para a árvore pingar,
Aqui está a estranha e amarga colheita

 

Redação

8 Comentários

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  1. É o 20 de Novembro no Sul da

    É o 20 de Novembro no Sul da América.

     

    Grande lembrança.

     

    Jamais vi menção a essa música e história na mídia brasileira.

     

    Todos sabemos o motivo.

  2. Autoria

    Segundo a Wikipédia:

    Autoria

    “Strange Fruit” foi composta como um poema, escrito por Abel Meeropol (um professor judeu de colégio do Bronx), sobre o linchamento de dois homens negros. Ele a publicou sob o pseudônimo de Lewis Allan[2] .

    Meeropol e sua esposa adotaram, em 1957, Robert e Michael, filhos de Julius e Ethel Rosenberg, acusados e condenados por espionagem e executados pelo governo dos Estados Unidos[3] .

    Meeropol escreveu “Strange Fruit” para expressar seu horror com os linchamentos, possivelmente após ter visto a fotografia de Lawrence Beitler do linchamento de Thomas Shipp e Abram Smith em Marion, Indiana, ocorrido em 7 de agosto de 1930. Ele publicou o poema em 1936, em The New York Teacher, uma publicação sindical. Embora Meeropol/Allan tenha sido frequentemente convidado por outros (nomeadamente por Earl Robinson) para musicar seu poema, só após algum tempo ele musicou Strange Fruit. A canção teve algum sucesso como canção de protesto na região de Nova Iorque. Meeropol, sua esposa e a vocalista negra Laura Duncan apresentaram-na no Madison Square Garden[4] . Barney Josephson, o fundador do Cafe Society em Greenwich Village, a primeira casa noturna integrada da cidade, ouviu a canção e a apresentou a Billie Holiday. Holiday cantou a música pela primeira vez no Cafe Society em 1939. Ela disse que cantá-la fazia-a ter medo de retaliações. Holiday mais tarde disse que as imagens de “Strange Fruit” lembravam-na de seu pai, isto fez com que ela continuasse a cantar a música. A canção tornou-se parte regular das apresentações ao vivo de Holiday[5] .

    Holiday se aproximou de sua gravadora, a Columbia Records, para gravar a canção. Mas a Columbia, temendo a repercussão das lojas de discos no sul, assim como a possível reação negativa de rádios afiliadas à CBS, recusou-se a gravar a canção[6] . Mesmo o grande produtor da Columbia, John Hammond, recusou-se também. Decepcionada, ela procurou seu amigo Milt Gabler (tio do comediante Billy Crystal), cuja selo, a Commodore Records, gravava músicas de jazz alternativo. Holiday cantou para ele “Strange Fruit” a cappella e a canção comoveu Gabler ao ponto de fazê-lo chorar. Em 1939, Gabler fez um arranjo especial com a Vocalion Records para gravar e distribuir a canção[7] e a Columbia permitiu a realização de uma sessão fora do contrato para poder gravar a música.

    “Strange Fruit” foi altamente considerada. Na época, tornou-se o maior sucesso de vendas de Billie Holiday. Em sua autobiografia, Lady Sings the Blues, Holiday sugeriu que ela, junto com Lewis Allan, seu acompanhante Sonny White e o arranjador Danny Mendelsohn, musicaram o poema. Quando interrogada, Holiday – cuja autobiografia fora escrita pelo ghost-writer William Dufty – dizia, “Eu nunca li aquele livro”[8] .

  3. E no Brasil?

    No Brasil se lincha e se prende aos postes… será que a Sheherazade viu e entendeu essa música? Não, acho que ela não entende, não.

    40 anos atrás nos EU as palavras de ordem dos negros eram “Black is beautiful” e tinha vários movimentos para a emancipação. Infelizmente o Brasil não passou por essa fase e os negros sofrem bem mais devagar, em um processo de apartheid permanente.

    Precisamos de governos mais Brasileiros, que pensem nos Brasileiros, todos, que pensem em fazer deste grande e vário país um exemplo de verdadeira democracia, e não uma oligarquia ou plutocracia mascarada de democracia conforme os cánones yankee.

  4. Dois fatos:

    O primeiro diz respeito à foto que ‘inspirou’ a música.

    Três homens negros foram falsamente acusados de estuprar uma mulher branca e matar o seu namorado; uma multidão invadiu a delegacia/chefatura de polícia onde esles estavam presos, mas uma mulher branca (jamais identificada) testemunhou que um dos três acusados não poderia ter cometido o crime, e este foi posto de volta na cela enquanto os outros dois (Thomas Shipp and Abram Smith) foram linchados.

    O que escapou (James Cameron) fundou o America’s Black Holocaust Museum (ABHM) em 1988, que acabou fechando (fisicamente, hoje em dia ele é virtual) em 2008, dois anos após a morte de James.

    Quanto a Ethel Rosenberg, o caso ainda causa comoção nos EUA. Recentemente a cidade de Nova Iorque instituiu o ‘Dia da Justiça (de) Ethel Rosenberg’  (28 de setembro), e os conservadores caíram de pau em cima da idéia. Só que eles se ‘esqueceram’ que:

    – A principal (e única) testemunha que Roy Cohn (um dos maiores hipócritas que os USA produziram) tinha contra ela era o seu irmão, que antes de morrer confessou (sem arrependimento algum) que mentira deslavadamente para salvar a própria mulher (e Cohn sabia disso).

    – Mesmo que Ethel fosse culpada, a pena para seu crime era de alguns anos de cadeia, não a cadeira elétrica.

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