Saber História…

Cartaz encontrado na internet

“Para pular é preciso dar um salto para a frente, mas para fazer isso é preciso tomar distância, e portanto dar uns passos para trás. Se não vai para trás não vai para a frente. Aí está, tenho a impressão de que para dizer o que farei preciso ter muitas idéias sobre o que fazia antes. É para mudar algo que havia antes que nos dispomos a fazer alguma coisa.” 
Umberto Eco, A misteriosa chama da Rainha Loana.

O trecho é um diálogo de Yambo, personagem do livro de Umberto Eco que perdeu a memória após um acidente, com sua esposa após sair do hospital, ainda desmemoriado e ele se vê tendo que pensar o que irá fazer dali por diante. E se angustia por não saber quem era, o que fazia… percebe que saber que ‘o que foi’ é fundamental para saber e fazer ‘o que será’.

Em meio à turbulência política dos últimos meses, a Câmara dos Deputados aprovou de forma unânime o PL 4699  que regulamenta a profissão de Historiador, agora à espera da sanção presidencial. 

Para além da importância desse fato para nós historiadores, é importante pelo reconhecimento de que ser historiador implica em procedimentos próprios da profissão, que se não podem e não devem ser monopolizados, também não devem ser desconsiderados.

Nos últimos dias, pós-manifestações de 13 e 15 de março, um ‘meme’ apontava: “A diferença entre História e Matemática é que Matemática a gente sabe que não sabe”.

A partir disso, vi alguns amigos e conhecidos, nessa espiral de ódio que tem norteado as análises e posturas políticas, dizerem que ‘essa é a sua visão, não pode querer que os outros a tenham’, ‘existe História de esquerda e História de direita’, que ‘História é doutrinação’.

Não poderiam estar mais equivocados. Em primeiro lugar: História é ciência. Não uma ciência exata mas, mesmo assim, ciência. Com todos os procedimentos próprios da atividade.  E como tal, há de se trabalhar com hipóteses, pesquisa, comprovações… ainda que as análises partam do sujeito que faz uma pesquisa _e aqui nos diferenciamos radicalmente do jornalismo mainstream que se pretende ‘neutro’_ o historiador não pode inventar um mundo irreal. Não pode chegar a uma conclusão se tudo que ele pesquisa leva em outra direção. Ao fazê-lo, ele é rapidamente questionado, desmentido, e algumas vezes desmoralizado.

Pois logo de partida nossas pesquisas são postas à prova por nosso pares, além de outros pesquisadores das diversas ciências humanas. Elas têm de ser comprovadas por fontes que sejam confiáveis e dispostas a quem quiser conferi-las. E isso inclui historiadores ou não.

Vejam o caso da Ditadura Militar: para alguns historiadores foi ‘Civil Militar’, para outros ainda, ‘Empresarial Militar’, mas não se nega que foi Ditadura.

E que a fez ser uma Ditadura foi porque não havia possibilidade de ser oposição para fiscalizar ou denunciar, ou uma imprensa que pudesse fazer isso, ou um Judiciário livre para julgar e condenar. Além da tortura, desaparecimento e mortes de quem ousou questionar, se opor. Com todo aparato policial que tratava a população como meros ‘civis’ ou, pior, ‘marginais’,  e que ainda hoje nos custa tanto em vidas. A História explica…

E não precisa ser historiador para saber que tudo isso foi uma estrada livre para corrupção ou outros crimes, como os casos denunciados no período de ‘abertura’ (Coroa Brastel, Capemi, Polonetas, BNH, além de muitos outros…). Isso foi o que veio à tona. Quanto ainda não sabemos (e ainda não descobrimos os as fontes)?

E há também um aprendizado que não é exclusivo dos historiadores, ou cientistas sociais. O de olhar para processos atuais e encontrar semelhanças com processos passados. Uma delas é que minorias de radicais podem fazer pender um país para regimes que desembocam em perseguição, tortura e mortes.

Será que a classe média alemã em 1933, ainda que nela houvesse preconceitos enraizados, desejaria ver uma máquina de morte como o Nazismo em seu país? Os que tramaram a derrubada de Allende no Chile em 1973 e o Golpe na Argentina que deu origem a Guerra Suja imaginaram que o preço seria mais de 3 mil mortos no primeiro caso, e mais de 30 mil no segundo? Quanto serão os sul-africanos que hoje se envergonham e se arrependem do Apartheid e de, em algum momento de suas vidas, acreditarem que Nelson Mandela era um perigoso terrorista?

Essas minorias radicais que pulularam no dia 15 e pelas redes sociais precisam ser isoladas e combatidas. Ao não mostrar carros de som com faixas defendendo a Ditadura e uma ‘intervenção militar’, ao se dar palavras a torturadores confessos, ao querer pintar de ‘democrática’ manifestações que agrediram pessoas e defenderam execuções, passeamos num terreno muito perigoso.

E você não precisa ser contra ou a favor do governo para condenar e se distanciar imediatamente disso.

Basta você conhecer a História.  Mas se disponha mesmo a fazê-lo. Sim, ela pode ter diferentes visões contadas pelos livros, pela TV, pelos filmes, faça você mesmo o julgamento de quais afirmações são comprovadas, quais são documentadas. Investigue tudo e questione a fundo.

Só não pense que, definitivamente, sabe História. Nem os historiadores a tratam assim. Pois como disse Adam Schaff, historiador polonês titulado na França, ela está sempre sendo reescrita.

Redação

11 Comentários

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  1. Desde sempre eubleio: ”Pra

    Desde sempre eubleio: ”Pra pular obstáculos é preciso tomar impulso e retroceder”

             Esse é um clichê velho de guerra.Só serve pros opacos,

                  As pessoas iluminadas, e são muitas ma história do mundo,, não precisam dar passos pra trás pra ganhar impulso.

                      Já nasceram pululantes .

                         E assim são os grandes líderes da história,

                       Quem retrocede muitas x se acostuma.

                        Sacou, Belo?

    1. Talvez você não tenha

      Talvez você não tenha entendido o sentido do texto.

      Não se tratou em nenhum momento de defender recuo político. O texto trata de conhecer o passado, saber de onde viemos, o que ‘passou’, para definirmos o rumo a seguir.

      Algo bem necessário nesses dias que estamos ouvindo que ‘não havia corrupção na Ditadura’, ou que ‘só morreu quem merecia’.

  2. É isso ai sérgio, sempre falo

    É isso ai sérgio, sempre falo para as pessoas ler a história do seu país para que ele possa fazer uma análise da situação que vivemos. Que seja reescrita com esses que defendem a tirania e o facismo como perdedores.

  3. O cientista se vende para

    O cientista se vende para aquele que da o melhor lance.

    O que não faltava era provas cientificas que o socialismo era o futuro da humanidade.

    O que não falta é historiador ativista.

     

  4. houve um golpe de estado no

    houve um golpe de estado no brasil em 1964? ou houve uma revolução brasileira em 1964? são detratores quem o chamam de golpe de estado? ou são detratores quem denuncia o perigo comunista no brasil ontem e hoje? vamos isolar quem defende a revolução e a ordem que o governo militar trouxe ao pais? ou vamos isolar quem denuncia  quebra da ordem institucional no pais? afinal o que significa a liberdade?

  5. encontrei um novo conceito

    encontrei um novo conceito para explicar o que aconteceu no brasil em 1964: “os militares fizeram uma contrarrevolução conservadora para frear uma revolução socialista.” Claudio de Cicco

  6. Poder da narrativa
    Na distopia Orweliana a reescrita da história é o fator decisivo para a manutenção do controle dos indivíduos… No universo ficcional de 1984 não existe reflexão ou releitura dos fatos, simplesmente falsificação. A consciência individual daquele que falsifica não é suficiente para fazer frente à força esmagadora da narrativa oficial. A realidade é dada pelo discurso, o discurso oficial é inquestionável. A autoridade dita o real, o oficial, o verdadeiro. A consciência individual sucumbe.

    Mais do que saber história parece ser importante discutir história, refletir sobre história, ouvir as diferentes versões da história que circulam… Debater história, como se debate qualquer outro conhecimento, mais do que saber, investigar…

  7. O texto e os comentários me

    O texto e os comentários me transportaram para o filme argentino A História Oficial. Como faz sentido num momento como o nosso.

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