Ronaldo Bicalho
Pesquisador na Universidade Federal do Rio de Janeiro.
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A crise do setor elétrico: os problemas que permanecem embaixo do tapete

Do Blog Infopetro

Por Roberto Pereira d´Araujo

O verão de 2014 foi um dos mais quentes e secos da história. Seguramente, essa anomalia atingiu duplamente o nosso setor elétrico. Gastamos mais energia com refrigeração e estamos recebendo menos água nos rios. É bem possível que alguns analistas achem perfeitamente desculpável que estejamos passando por uma repentina crise e que seja natural ter que pagar uma dívida bilionária por geração térmica que já tangencia níveis macroeconômicos.

A anomalia da temperatura pode camuflar que, mesmo com hidrologias mais favoráveis, nós já estaríamos no caminho de gastos bilionários. A questão climática é um agravante da imprevisibilidade do nosso planejamento e não uma desculpa. Ao contrário de declarações oficiais, o nosso sistema está em desequilíbrio. Há muitas razões para essa situação, mas uma tem ficado ausente dos debates: A sofrível adaptação de modelos competitivos implantada aqui, que atropelou as nossas singularidades.

O que nos diferencia dos outros sistemas, mesmo os que dispõem de matriz renovável, é a possibilidade de guardar água. Isso altera tudo porque acrescenta um fator inexistente na maioria dos sistemas elétricos mundiais, o link entre passado, presente e futuro.

Gastamos a água estocada para gerar ou usamos outra fonte de energia? Se decidirmos “desestocar”, de que usina? Se tivéssemos usado outras fontes no passado, teríamos uma reserva maior hoje. Qual a decisão correta? Como devo agir com a reserva hoje visando o futuro? Essas são perguntas inexistentes em países cujo setor elétrico tem predominância térmica, onde a história é uma sucessão de presentes. O nosso, além do link temporal, nos impõe um operador monopolista e o desacoplamento da geração e comercialização, certamente um ponto fora da curva em mercados de energia.

Ora, então temos uma maldição? Ao contrário! É uma vantagem que só se torna um problema se a nossa capacidade de antecipar situações estiver embotada, pois nada acontece de repente aqui. O problema é que, mesmo com as evidências de que o nosso sistema físico tinha uma enorme singularidade, resolvemos entrar de cabeça na moda dos anos noventa que vendeu a imagem do “One size fits all” no setor elétrico.

As nossas mudanças institucionais, regulamentares e metodológicas foram de grande monta e, ao contrário do muitos pensam, seguiu uma linha comum nos cinco últimos governos. Apesar da propaganda, o modelo é o mesmo. A instabilidade e a insegurança são os sintomas. Abaixo, algumas bizarras características:

  1.        Relações comerciais baseadas num certificado virtual de energia por usina (Garantia Física) dependente de critérios de operação que não são parte de decisões dos proprietários da usina.
  2.       Mercado embaralhado com contabilização de diferenças entre o virtual e o real. Um parâmetro da operação é o paradigma (CMO). Diferença entre o valor mais baixo e mais alto atinge 5.100%. Aqui é possível ter que pagar R$ 822 por 1 MWh ou “ganha-lo de presente” por R$ 12.
  3.       Não há isonomia entre consumidores. Quando o sistema está em equilíbrio, há alta probabilidade que os preços do mercado fiquem muito baixos. Essa vantagem é capturada exclusivamente no mercado livre.

A lista se estenderia ainda mais. Por economia de espaço e por considerar que qualquer um desses pontos já deveria ser suficiente para uma profunda reforma, os resultados do modelo podem ser sentidos:

  •          Nas tarifas, que cresceram 80% desde 1995, já descontada a inflação.
  •          Nas incoerências entre planejamento e operação.
  •          Nos leilões genéricos que resultaram contratação de térmicas caras.
  •          No aumento de encargos pós reforma de 1995.
  •          Na inédita intervenção da MP 579, que resultará em burocracia e mais riscos para o sistema.

A situação que os consumidores brasileiros se encontram hoje é patética, pois estão ameaçados por um novo racionamento. A maldição climática é bradada pelas autoridades do setor, mas a tragédia já vinha sendo anunciada há pelo menos oito anos.

As curvas abaixo ilustram o aspecto estrutural mais importante do sistema, a perda de regularização. No eixo vertical o equivalente ao número de meses de consumo da reserva. Ele foi totalmente ignorado pela expansão e operação. A linha vermelha é a que se obtém descontando da carga a geração não hidráulica. Como as linhas de tendência são paralelas, percebe-se que até meados de 2012, nada era feito para aliviar a relação declinante reserva/carga.

roberto042014a

Acrescentar novos reservatórios que compensem o crescimento da carga nos imporiam enormes desafios. Apenas no período do gráfico, um novo Rio S. Francisco seria necessário para manter a relação de 2004.

Porque não se usou a complementação de outra fonte para minorar esse efeito? A estrutura tarifária brasileira em 2011, antes da MP 579, mostra que o peso do kWh (energia) numa conta média era de 31%, proporção baixa em relação a outros países. Os outros 69% (distribuição 26%, transmissão 5%, encargos 11% e impostos 28%) não dependem da configuração da geração, mas, evidentemente representam um “peso extra” se a escolha de despacho térmico fosse usada para minorar o efeito do gráfico.

A essa altura, tanto faz ter sido uma decisão política para evitar aumentos tarifários ou simplesmente porque o sistema de preços não indicava o uso de geração térmica. Como essas usinas estão contabilizadas na oferta, as hidráulicas é que geram a sua “garantia física”. A consequência está ilustrada no gráfico seguinte.

roberto042014b

De 2000 a 2012, apesar da proporção de hidráulicas no sistema ter se reduzido de 83% para 68%, a energia gerada permaneceu praticamente 90% hidráulica. Isso esvazia reservatórios. (…) Continua no Blog Infopetro.

Ronaldo Bicalho

Pesquisador na Universidade Federal do Rio de Janeiro.

16 Comentários

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  1. Se o governo pudesse

    Se o governo pudesse construir mais usinas com grandes reservatórios em vez de  hidrelétricas “a fio d’água”, a reserva contra períodos de falta de chuvas seria maior.

    1. Sim, mas ninguem aceita mais

      os grandes reservatórios, especialmente na Amazônia Legal, onde MP’s, ONG’s etc… conseguem o apoio ostensivo de Globo e Cia para empedir qualquer investimento energético (obviamente se o governo fosse do psdb toda a “opinião publicada” mudaria de lado num instante).

    2. Ora, mas a questão é uma só,

      Ora, mas a questão é uma só, cruel!

       

      Os “primeiro mundo” podem destruir todas florestas que possuem (já o fizeram). Hoje isso não é mais possível! Então, ai do Brasil de alagar partes grandes da Amazônia para gerar energia!!

       

      Devemos nós ficarmos calados e comprar energia daqueles que já destruiram todas suas florestas!!!

  2. Acho que, apesar de reconhecer que o problema

    é muito complexo para meus parcos conhecimentos, o autor tem um ponto quando mostra o último gráfico comparando os preços “spots” no Brasil e na Escandinávia (onde ninguém foi besta para ouvir FMI, banqueiros de olhos azuis, e outros consensuais de Washington).

    Parece que a reforma de 2004 que respeitou os contratos da era tucana, e a MP de 2012 que também respeitou contratos já que a judicialização foi bem pequena, não resolveram de maneira “definitiva” os problemas de um sistema que negou a racionalidade na sua origem lá por 1995.

    Estaria na hora de colocar no ministério um “ministro estadista”, mas aí teria que tirar de cena a tchurma do sarney…

  3. Reservatórios de água

    Nassif,

    Agora os teóricos podem se manifestar à vontade, mas onde estavam estes críticos e/ ou analistas de fato especializados, quando a violenta campanha vinda de fora contra os grandes reservatórios impediu que Belo Monte, Jirau e outros possíveis projetos de execução de hidrelétricas fizessem uso de grandes reservatórios?

    A cambada habitual – Ong’s e ambientalistas a soldo $$$ é grande crítica a respeito de tudo o que acontece no patropi, mas a destruição provocada pelo shale gas no Canadá e USA,ou a vasta utilização do carvão na Alemanga, shhhhh

    A  colaboração interna vem desta autêntica quadrilha que são os órgãos que concedem aquela miragem chamada licenciamento ambiental – se for encontrado um ninho de lagartixas no centro de uma hidrelétrica em construção, suspende-se tudo, quem sabe muda a usina de local, este sempre bem longe, a no mínimo uns 400 quilômetros  de distância de qualquer aldeia indígena, e ainda tem que poupar a fauna, flora, o jabuti, etc… e tal, senão brota do chão o notável IPCC de dois mil e quinhentos ” ambientalistas”.

    O governo brasileiro errou, ao se apequenar diante desta quadrilha e optar pelo fio d’água.

  4. Temos que diversificar a

    Temos que diversificar a matriz

    http://www.defesanet.com.br/site/upload/news_image/2013/04/13074.jpg

     

    Estamos entre os maiores produtores de energia hidrelétrica

    http://static.cdn-seekingalpha.com/uploads/2013/12/19/18854731-13874773519845061-Dr--Thomas-Carr.jpg

    Somos muito pobres em utilização de energia eólica

    http://3.bp.blogspot.com/-aNMYb-avMVM/TkGC6U5G--I/AAAAAAAAACM/0DudCWsV_fc/s1600/capacidade.bmp

    Pobres na produção de energia solar

    http://2.bp.blogspot.com/-1HEUHp2APa4/UDa35qtXoEI/AAAAAAAAD0s/E7uTVt2XI18/s1600/228458_10151016193059087_1027139544_n.jpg

     

    O Brasil investe pouco em energia renovável

    http://envolverde.com.br/portal/wp-content/uploads/2012/12/tabela.jpg

  5. Começando de baixo para

    Começando de baixo para cima:

    Gráficos “hidráulico/total instalado/gerado”:

    A queda acentuada foi no gráfico “MW Hidráulico / Total Instalado”, de cerca de 83% em 2000, para cerca de 74% em 2009 e para cerca de 68% em 2012,  é bastante salutar pois reflete o aumento na reserva não hidráulica do sistema (termoelétricas construídas + destaque para incorporação de usinas eólicas no período + biomassa, etc.) refletindo uma segurança adicional, não implicando em sua utilização, apenas de capacidades instaladas que podem ou não ser usadas em casos de necessidade.

    A queda menos acentuada foi na parte “MWh hidráulico / Total gerado”, onde apenas em 2012 ocorreu uma queda mais acentuada da geração hidráulica, face ao período de seca ainda reinante, para cerca de 86% , nada tão grave, pois mais de 25 pontos acima do percentual da capacidade hidráulica instalada, refletindo grande reserva não hidráulica sem utilização.

    O gráfico como um todo mostra apenas a construção de uma reserva não hidráulica adequada no sistema, o que tem evidentemente um preço, lembrando que nem toda energia não hidráulica é termoelétrica, ocorreu no período e continua ocorrendo, a contrução de numerosas usinas eólicas tão louvadas pelos ambientalistas, bem como outras formas de geração não hidráulicas.

    Nesta fase de mudanças climáticas ao que parece já irreversíveis em certa margem, aumentar a reserva e segurança do sistema elétrico não deveria ser tão criticada ao menos com o viés ideológico-político-eleitoral reinante na mídia que para obter determinados resultados não se importa nem mesmo em contaminar e prejudicar o ambiente econômico do país.

    Ainda mais quando viemos de um sistema elétrico que na última meia década de 90 e nos primeiros anos deste século, até o planejamento determinativo da geração elétrica foi transferido à iniciativa privada, ficando o Brasil criminosamente refém de interesses financeiros e da inação política e incompetência que o jogaram num apagão elétrico de 8 meses de racionamento em 2001.

    Considere-se também que nos últimos anos tem sido acrescentado ao sistema grande potencial hidráulico com a entrada em operação todos os anos de usinas hidroelétricas nas quantidades e potências necessárias, lembrando que cada MW adicional ao necessário tem um custo alto, seja o financeiro ou pior, o de sua falta.

    Quanto ao resto do artigo é genérico fala em aumento de tarifas e encargos desde 1995, não informa quando, nem quem, nem onde, nem nomeia as alegadas incoerências entre planejamento e operação, fala em ter água para estocar ou usar como se isso fosse desvantajoso.

    Lógico que se pudéssemos voltar a 1994 e não ter privatizado grande parte do sistema elétrico, a preços irrisórios por sinal,  tê-lo alterado de outra forma, saneado as companhias estaduais devedoras, tudo teria sido muito mais fácil e menos custoso.

    Infelizmente não é possivel uma volta ao passado, no sistema elétrico isso só poderia ser feito mediante uma revolução e com muito dinheiro e apoio, o que obviamente não existe, portanto em vez de críticas fáceis e gerais seria melhor esses senhores apresentarem sugestões factíveis de aperfeiçoamento e melhora para discussão, sem viés político ou de interesses, por favor.

     

     

     

  6. Tudo errado

    Como um autor pode dizer tanta bobagem de uma só vez. O gráfico por exemplo ilustra a idiotisse do autor, claro que a relação energia acumulada vai decrescer em relação à gerada, as usinas de grande acumulação acabaram, na amazonia não é possível construi-las nem que vc queira. As de grande acumulação já foram todas feitas.

    Acapacidade de acumulação somada com a de geração a fio de agua será sempre  altamente vantajosa, o que não quer dizer que o custo da energia seja baixo porque tem que diluir o custo da usina que é bem alto.

    Nosso sistema é o ideal e o investimento alto nele feito se justifica justamente agora com a falta de chuvas. A grande vantagem, o grande lucro, é não haver racionamento.

    Gastar muito com combustível é o melhor dos cenários se comparado com a falta de enrgia.” Energia carissima é o que falta”.

    Minha unica dúvida, porque não trabalharam, e isto é coisa dos tecnicos, com um nível mínimo de digamos 65% dos reservatórios? O problema se resolveria com mais tranquilidade e não precisariamos ler bobagens como esta e muitas outras.

  7. Acrescentado em relação ao péssimo artigo

    Basta dar um olhada no site das agencia e verá que já temosa potência de “duas furnas” de energia eólica e caminhamos para “uma itaipu” dentro de tres anos. Alguem que mais!

  8. Acrescentado em relação ao péssimo artigo

    Basta dar um olhada no site das agencia e verá que já temosa potência de “duas furnas” de energia eólica e caminhamos para “uma itaipu” dentro de tres anos. Alguem que mais!

  9. Acrescentando

    Basta dar um olhada no site das agencia e verá que já temosa potência de “duas furnas” de energia eólica e caminhamos para “uma itaipu” dentro de tres anos. Alguem que mais!

    Acabamos de construir uma das maiores usinas do mundo, madeira, contruimos outra, belomonte, e iniciamos outra, o sistema tapajós. Concluimos duas das maiores linhas de transmissão de corrente continua, támbem a maior do mundo, e inicamos outra duas. Isto é coisa de gente grande, Nunca do psdb/pig. E ainda tem muito idiota como o autor deste atrtigo para falar besteira.

  10. Embora  não  concorde

    Embora  não  concorde  integralmente  com as considerações  do artigo, reconheço no autor  competência e conhecimento de causa, por ter trabalhado na àrea por muitos anos e por presidir importante Instituição que trata dos assuntos de Energia Elétrica.

       Mercado  em  que a diferença do preço mais alto  do MWh é  superior em 5.100% ao mais baixo,   entendo  que está, digamos,  meio  doente….

  11. As hidrelétricas que se

    As hidrelétricas que se encontram em construção, irão mudar significativamente essa relação, no texto se fala como se fosse possível construir uma hidrelétrica do dia para noite, como se não houvesse tantos entraves para licitar uma obra com tanto impacto e tamanho porte. Não haverá racionamento, mas acionamento das térmicas, que aumentará os custos, e não faltará energia, bem diferente de 2001.

  12. Caixa d’agua

    Resumo da opera, falta caixas d’agua para garantia nos periodos de estiagem prolongada.

    Numa discusão passada sobre a construção de Belo Monte, fiz um desafio aos de opinião contraria às obras, para que se verificasse em absolutamente todos os reservatorios de hidreletricas do Brasil se acharia algum foco de pobreza assim como tinhamos antes dos reservatorios com os povos ribeirinhos.

    Agua é vida, não se concebe criticar um reservatorio pela sua extensão, volume, ainda a quem e quantos teriam que ser removidos,  pois seu entorno certamente será prospero e essa população removida poderia habitar perfeitamente as margens dos reservatorios,  abrigando fazendas de picicultura, agricultura, irrigação sem contar com turismo, esporte e para agregar a tudo controle de vazão a jusante e principalmente:  ENERGIA.

    Se queremos um Brasil prospero com distribuição de riquezas para sua gente : educação, energia e parafraseando a bandeira: Ordem e Progresso.

     

    abraços

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