Machado de Assis recebe, na ABL, o poeta Manuel Maria Barbosa du Bocage

A curiosidade era imensa. Pela primeira vez, um grande poeta português visitava o Brasil. Nas ruas próximas ao Prédio do Silogeu, e nas imediações do Passeio Público, viam-se dezenas de cabriolés, berlindas, tílburis, vitórias e caleches, cada qual mais rico que o outro. Deles desciam senhoras e senhores enfatiotados, constelados de joias, recendendo essências, arrastando sedas, exibindo cartolas de Paris e Londres. Em resumo, a fina flor da sociedade carioca acorrera ao inusitado evento.

Pequeno, magro, metido num paletó de camurça azul, cara rapada, cabelos escovados, botas de montaria e fraque, surgiu de dentro do edifício o famoso poeta, escoltado pelo presidente, também nos trinques. A multidão aglomerada prorrompeu em calorosos aplausos e gritos de “hurra!”, enquanto chapéus eram lançados para o ar.

Estendendo a mão, pediu silêncio o presidente, investido de dupla autoridade: do cargo e dos cabelos brancos.

– Meus amigos, é para nós, brasileiros, elevada honra receber hoje em nossa casa o mais notável representante das letras portuguesas, o admirável, sob todos os pontos de vista, Manuel Maria Barbosa du Bocage. Para apresentá-lo, em nome desta casa, convido o insigne poeta Olavo Bilac, um dos grandes admiradores de sua obra.

   Apresentou-se o ouvinte de estrelas, o adorador de mulheres bonitas, o janota incomparável, o jornalista ferino e paradoxalmente amável. Apresentou-se, enfim, o líder inconteste da poesia parnasiana brasileira.

   Não trouxera folhas escritas. Nem ao menos notas ligeiras pelas quais se guiar. A antiga admiração pelo visitante bastava-lhe. Então começou, a voz trêmula, vibrante e comovedora, depois de lançar amplo e dominador olhar sobre a multidão.

– Queridos conterrâneos: em Portugal, a arte de fazer versos chegou ao apogeu com Bocage. Da sua geração e das que a precederam, foi ele o máximo cinzelador da métrica. A plástica da língua e do metro; a perícia no ensamblar das orações e no escandir dos versos; a riqueza e graça do vocabulário; o jogo sábio e às vezes inesperado das vogais e das consoantes dentro da harmonia da frase; a variação maravilhosa da cadência; a sobriedade das figuras; a precisão e o colorido dos epítetos; todos estes difíceis e complicados segredos da arte poética, cuja beleza e raridade às vezes escapam até aos mais cultos amadores da poesia e aos mais argutos críticos literários, e que somente os iniciados podem ver, compreender e avaliar; esta consciência, este gosto, esta medida, este dom de adivinhação e de tato, de que os artistas natos têm o privilégio – tudo isto coube a Elmano, o nosso Bocage, que ora nos visita, tudo isto se entreteceu no seu talento. Que ele nos dê, hoje, um pouco de seu incomparável brilho, de sua jamais alcançada maestria na arte de versejar.

A multidão urrou, maravilhada. Machado de Assis enfiou o braço no do visitante, que parecia perplexo. “Sim, senhor!”, murmurou com seus botões, “nunca imaginei que fosse tão famoso por aqui. Logo eu, tão subestimado e desdenhado pelos confrades portugueses. Quem sabe deveria aqui permanecer para sempre?”.

   Enquanto devaneava, e sem perceber, foi empurrado por Machadinho para dentro do Soligeu, onde se encontravam reunidos todos os ilustres membros da Academia, além de inúmeros correspondentes estrangeiros convidados.

A grande sala regurgitava. A deslumbrada assistência ansiava pela palavra nova do poeta, como se diante de um sermão divino. Fez-se o mais absoluto silêncio. Moscas deixaram, por alguns momentos, de bater as asas. Traças interromperam seus afazeres. Pulgas famintas cessaram de trincar as macias carnes da nobreza. Tosses, pigarros, espirros e outras demonstrações de barbarismo foram enterrados em peitos, pescoços e narizes anestesiados pela visão do gênio.

A sessão teve início.

O presidente concedeu a palavra ao notável visitante.

Este olhou em volta, pervagou ao longe o olhar de lince (pelo menos assim imaginaram os assistentes), suspirou fundo, e começou, com voz trêmula como a de Bilac, que traía a profunda emoção de que fora acometido.

 

(Parêntese. Bocage sabia o que se esperava dele: no mínimo uma piada bem suja, das muitas que eram incluídas, com razão ou sem ela, em seu repertório de baixo calão. Ninguém queria sonetos, ainda que pornográficos, pois seus livros estavam em todas as livrarias. No entanto, pensando com finura, decidiu adoçar a pílula, trocando sua famosa anedota do João pela do Joaquim, bem mais adequada à solenidade do momento. Foi assim que, em vez da Piada do João, brindou seus ouvintes com a Piada do Joaquim.) E foi isto que narrou:

 

– Numa recepção em Lisboa, encontraram-se o embaixador do Brasil e o primeiro-ministro português. Depois dos cumprimentos de praxe, o ministro português perguntou ao diplomata brasileiro:

– Tu te lembras do Joaquim?

– Qual Joaquim? – indagou o embaixador.

– O que furtou teu pudim! – respondeu rindo o ministro, com o que ficou irritadíssimo o irritável brasileiro.

Continuaram a conversa e, quando percebeu que o embaixador tinha se esquecido da galhofa, o ministro voltou ao assunto:

– Sabes? Ainda ontem me encontrei com o Joaquim.

Distraído, o embaixador perguntou:

– Qual Joaquim?

E recebeu a inesperada (para ele) resposta:

– O que furtou teu pudim!

Furioso, decidiu o brasileiro vingar-se.

E, quando lhe pareceu que o português se encontrava distraído, indagou:

– Conheces o João?

Sem ao menos refletir, o ministro perguntou de volta:

– O primo do Joaquim?

– Qual Joaquim?

– O que furtou teu pudim!

 

Quase foi abaixo, após um segundo de estupor e perplexidade, o salão nobre da Academia Brasileira de Letras, com os ilustres literatos dando-se tapinhas, sapateando e rindo até as lágrimas, em meio a delirantes aplausos ao notável visitante, uma das glórias supremas da poesia de língua portuguesa. Na verdade eram conhecidos, não só os célebres sonetos, pornográficos ou não, de Bocage, como a maioria de suas piadas, vendidas sob a forma de cordel nas feiras. E ninguém deixou de perceber, e entender, a sutileza do poeta, recriando uma anedota de ainda mais elevado valor que a do João, apenas pela troca dos nomes, do objeto e das rimas. Merecidos aplausos!

 

Estiveram presentes, além dos convidados, os seguintes acadêmicos: (1) Murilo Mendes, (2) Álvares de Azevedo, (3) Alberto de Oliveira, (4) Basílio da Gama, (5) Bernardo Guimarães, (6) Casimiro de Abreu, (7) Castro Alves, (8) Cláudio Manuel da Costa, (9) Gonçalves de Magalhães, (10) Oswald de Andrade, (11) Fagundes Varela, (12) Guimarães Rosa, (13) José Sarney, (14) Haroldo de Campos, (15) Gonçalves Dias, (16) Gregório de Matos, (17) Getúlio Vargas, (18) Clarice Lispector, (19) Caetano Veloso, (20) Joaquim Manuel de Macedo, (21) Augusto de Campos, (22) José Bonifácio, o Moço, (23) José de Alencar, (24) Júlio Ribeiro, (25) Junqueira Freire, (26) Carlos Drummond de Andrade, (27) Austregésilo de Athayde, (28) Manuel Antônio de Almeida, (29) Martins Pena, (30) Olavo Bilac, (31) Millôr Fernandes, (32) Porto Alegre, (33) Raul Pompeia, (34) Wlademir Dias-Pino, (35) Tavares Bastos, (36) Roberto Carlos, (37) Tomás António Gonzaga, (38) Graciliano Ramos, (39) Dolores Duran e (40) Visconde do Rio Branco.

Sebastiao Nunes

5 Comentários

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  1. Sadino, o esperto

    Cresci com minha mãe, que se viva já teria quase 100 anos, repetindo a expressão “piadas de Bocage”.

    Só conheço seus sonetos, contudo.

  2. Soneto do Epitaphio

    Soneto do Epitaphio
    Manuel Maria Barbosa du Bocage
    .

    La quando em mim perder a humanidade
    Mais um daquelles, que não fazem falta,
    Verbi-gratia — o theologo, o peralta,
    Algum duque, ou marquez, ou conde, ou frade:

    Não quero funeral communidade,
    Que engrole “sub-venites” em voz alta;
    Pingados gattarrões, gente de malta,
    Eu tambem vos dispenso a caridade:

    Mas quando ferrugenta enxada edosa
    Sepulchro me cavar em ermo outeiro,
    Lavre-me este epitaphio mão piedosa:

    “Aqui dorme Bocage, o putanheiro;
    Passou vida folgada, e milagrosa;
    Comeu, bebeu, fodeu sem ter dinheiro”.

    ………………………………………………………………………………………

    Fonte: 
    Bocage, o Desboccado; Bocage, o Desbancado 
    seleção, introducção e notas de Glauco Mattoso
    http://www.elsonfroes.com.br/bocage.htm

     

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