A próxima fronteira da onda conservadora: a Universidade

Criminalização do Magistério

Por Rafael Bezerra e José Ribas Vieira*

Os eventos em curso na sociedade brasileira e as iniciativas legislativas em discussão delineiam que a universidade não será, também, poupada do atual retrocesso democrático. Assim, cabe reconhecer que “cada nação e cada povo possuem a universidade que merecem. Acabaremos muito mal, neste terreno, se não soubermos o que queremos e, principalmente, se não soubermos lutar pelo que queremos”.

O pensamento de Florestan Fernandes expresso quase dez anos antes da promulgação da Constituição Federal de 1988 nos faz refletir acerca de um dos grandes temas relegados ao segundo plano pela doutrina constitucional americana e que no Brasil, apesar da nossa própria “Carta Cidadã”, em seus artigos 206 e 218, consagrar que o ensino será ministrado com base na “liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber” e no “pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas”, bem como que o Estado, em caráter prioritário, promoverá e incentivará a pesquisa científica, “tendo em vista o bem público e o progresso da ciência, tecnologia e inovação”, até hoje não recebeu a devida análise: a liberdade acadêmica.

Lá, como aqui, a compreensão da liberdade de expressão como gênero ou direito-mãe, de forma a abranger todas as liberdades comunicativas que lhe são correlatas, como liberdade de imprensa, liberdade de manifestação do pensamento, liberdade de culto, etc., não ensejou o merecido estudo da liberdade acadêmica em si mesma.

Nos EUA, o conceito de liberdade acadêmica foi definido pela Associação Americana de Professores Universitários (AAUP) em 1915 na publicação da “Declaração de Princípios sobre a Liberdade Acadêmica e Liberdade de Cátedra do Professor”, a qual afirmava que esta assegura à universidade e aos professores universitários “a plena liberdade na pesquisa e na publicação dos seus resultados”, em prol do “bem comum”.

Essa questão fundamental anima o estudo realizado pelo Reitor da Escola de Direito da Universidade de Yale, especialista na Doutrina da Primeira Emenda e em liberdade acadêmica, Robert C. Post, em sua obra Democracy, expertise, and academic freedom: a first amendment jurisprudence for the modern state (2012).

Em detida análise da jurisprudência da Suprema Corte americana, Robert Post identifica que o primeiro caso a tratar dessa questão foi Sweezy v. New Hampshire (1957). O respectivo caso relata a história do Professor Paul Sweezy, um economista marxista, que ao fazer uma série de palestras na Universidade de New Hampshire, foi denunciado por um colega, sob a alegação de que suas aulas continham conteúdo socialista e que também participara de festa com teor político.

A Suprema Corte entendeu que as aulas ministradas pelo professor não poderiam sofrer qualquer tipo de regulação, pois tal atitude acabaria pondo em risco o futuro da nação, já que as universidades e seus estudiosos produzem conhecimento, e este é necessário para a sociedade.

Esta discussão repercute no intuito primeiro do presente artigo: refletir sobre a proposta de cerceamento da atuação acadêmica nas universidades brasileiras por parte do Poder Legislativo. Encontra-se em tramitação na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei nº 1.411/2015, apresentado pelo Deputado Federal Rogério Marinho (PSDB-RN), coordenador da bancada tucana na Comissão de Educação da Câmara, com o propósito de criar um novo tipo penal: o crime de “assédio ideológico”. 

No artigo 2° do respectivo Projeto de Lei é definido o pretenso crime: “Entende-se como Assédio Ideológico toda prática que condicione o aluno a adotar determinado posicionamento político, partidário, ideológico ou qualquer tipo de constrangimento causado por outrem ao aluno por adotar posicionamento diverso do seu, independente de quem seja o agente”. A previsão de detenção da proposta é de 3 meses a 1 ano e multa, direcionada a professores, psicólogos e coordenadores de instituições de ensino. 

Referida proposição legislativa nos traz à memória o Decreto-Lei 477/69, conhecido como o “AI-5 das universidades”, instituído no auge da Ditadura Militar, o qual permitiu que agentes repressores pagos pelo Estado desempenhassem “patrulhamento ideológico”, cerceando a liberdade de cátedra e monitorando a conduta acadêmica de professores e alunos, decorrendo daí a expulsão sumária de pessoas apontadas como participantes de “movimentos subversivos”, dentre elas, o Professor Titular de História Contemporânea da Universidade Federal Fluminense – UFF, Daniel Aarão Reis Filho, da UFF, expulso da Faculdade de Direito da UFRJ e preso, bem como o então professor de sociologia da USP, Fernando Henrique Cardoso, afastado das suas funções em 1969.

Mas, então, a quem caberia definir o conceito de liberdade acadêmica? Quais seriam os seus limites?

Diante destas questões, Robert Post defende que a verificação deste tipo de competência deve ser estipulada por standards, criados pelas próprias universidades e seu corpo docente a fim de construir parâmetros delimitadores das fronteiras da liberdade acadêmica. Estes, por sua vez, possibilitariam certa proteção à comunidade acadêmica frente à pressão política da opinião pública.

Acrescenta o autor que a liberdade acadêmica de pesquisa e publicação, como um valor constitucional, possibilita e legitima a apresentação e discussão, por parte dos professores, de suas pesquisas e conclusões. Reforça ainda que a regulação do discurso de professores e alunos dentro da universidade pode até ser realizada para fins pedagógicos, porém apenas através de normas técnicas, criadas por um corpo acadêmico qualificado e sem influência de regras externas, sob risco de impedir a expansão do conhecimento.

A relevância desta discussão para os dias atuais no Brasil resulta de uma já demandada reflexão sobre o papel das universidades no contínuo desafio de influenciar o discurso público e de ser vanguarda do conhecimento para qualquer país que queira reproduzir tradições laicas e liberais. Reflete ainda uma necessária demarcação de posição frente à ascensão de uma onda conservadora na sociedade brasileira que já desenha uma tendência preocupante de avanço e entranhamento institucional, a fim de evitar que a liberdade acadêmica seja a próxima fronteira para determinados setores da sociedade e do Congresso Nacional que instrumentalizam o fundamentalismo e obscurantismo em suas práticas.

*Rafael Bezerra é Mestre em Teorias Jurídicas Contemporâneas (UFRJ), Advogado e Pesquisador do Observatório da Justiça Brasileira (OJB/UFRJ)

José Ribas Vieira é Doutor em Direito (UFRJ), Professor Associado da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC Rio), Professor Associado IV da Universidade Federal do Rio de Janeiro e Coordenador do Observatório da Justiça Brasileira (OJB/UFRJ)

Redação

13 Comentários

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  1. PELA LIBERDADE ACADÊMICA

    A defesa rigorosa da liberdade acadêmica é questão de máxima relevância para o futuro da nação, e é imprescindível para a preservação da democracia. O futuro depende da qualidade do conhecimento que a sociedade disponibiliza para as novas gerações. E os elementares princípios da autonomia dos profissionais de ensino na regulação das atividades acadêmicas auxilia a garantia da diversidade de opiniões, do amplo desenvolvimento de pesquisas relevantes, e da livre produção de ideias. Por todas estas razões, a resistência contra o obscurantismo fundamentalista é mesmo requisito indispensável para obstar os riscos generalizados de retrocessos políticos fascistóides.

  2. Estou na Itália fazendo um

    Estou na Itália fazendo um pós-doc. Acho que vou aproveitar e pedir asilo político por aqui mesmo. Onde isso vai parar, hein!?

  3. A própria universidade tornou isso desnecessário

    porque se tornou irrelevante. Pelo menos na área que conheço, o academicismo vazio impera.

    Fora isso, nao creio que seja na universidade que esse projeto é mais perigoso, acho difícil que consiga vingar na universidade (posso estar sendo otimista demais…). É no segundo grau que ele é mais preocupante.

    1. Me ocorreu idéia parecida.

      Me ocorreu idéia parecida. Onda conserfvadora na universidade parece algo redundante, pelo que o proprio mundo acadêmico tem feito, faz tempo. E estamos esquecendo que a universidade é uma parte (importante, claro) do “edificio” educacional. A modelagem dos andares inferiores é uma tragédia. Os sindicatos de professores (como a Apeoesp) têm procurado mostrar isso, a toda hora. 

    2. Vão afastar ainda mais gente do magistério

      Sim, o ensino médio e, também, o ensino fundamental. O grande problema desse PL (se passar do jeito que está) é que abre o flanco para que se aceitem denúncias fundamentadas em subjetividades. Um pai ou mãe de aluno do ensino fundamental pode implicar com uma lição de casa passada pelo professor e dizer que ele está fazendo “assédio ideológico”. Temo que, se isso acontecer, vai diminuir ainda mais o interesse pela docência na educação básica: além de ganhar mal e trabalhar sob condições de trabalho ruins ainda poder ser processado por causa de uma questão num lição de casa, numa prova, ou por conta de um tema de redação.

      Por outro lado, não sou otimista em relação à universidade. A diferença é que a corporação dos professores vai, legitimamente, por um institinto de sobrevivência, criar medidas de proteção para seus membros. Desse modo, acho que haverá sim problemas para os professores mas eles estarã menos vulneráveis que os professores da educação básica.  

      1. Os professores universitários têm como se defender… (acho…)

        Nao é apenas uma questao de “medidas de proteçao”, mas também de discurso: o discurso acadêmico é valorizado na sociedade, tem prestígio e poder simbólico. Acho que o pior problema será no ensino médio, porque no fundamental há menos temas que podem gerar conflito: em geral nao se ensina teoria da Evoluçao no Fundamental, e normalmente os cursos de História sao mais superficiais. Se bem que uma amiga minha que fez trabalho social em Parati me contou que os professores de lá estavam tendo problema com famílias evangélicas, que nao queriam que seus filhos estudassem a África, porque seria “a terra do Demônio”… Há também o problema de indicaçao de livros em Português; esse é um problema antigo, pais quererem interferir nos livros que os professores indicam.

    3. Cara Ana

      Conheço professores da FAculdade de Educação na UFMG. Segundo eles estão encontrando alguns, digamos, problemas, com alunos evangélicos, não só do curso de pedagogia. O número de alunos evangélicos tem aumentado e estes criam, digamos, obstáculos para o ensino de conteúdos de Ciências.

      OU seja, pior que conservadora, está sendo implantado (com exagero, claro) o fundamentalismo.

    4. Atenção, não é provocação.

      E aí Ana, o que achas?

      PM assume escola tomada por violência e a transforma em modelo

      As diferenças começaram nos muros. Antes inteiros pichados, agora dão espaço ao branco, ao azul e só. E não foram só as paredes que mudaram na Escola Estadual Professor Waldocke Fricke de Lyra, em Manaus. Depois que passou para as mãos da Polícia Militar, virou 3º Colégio Militar da PM Waldocke Fricke de Lyra e, junto disso, viu sua rotina mudar drasticamente. O desempenho dos alunos também mudou — e para melhor.

      São 2 mil alunos dos ensinos fundamental e médio que passaram para as mãos da PM local em 2012, a pedido do governo estadual. O colégio fica em uma das regiões mais violentas de Manaus e registrava furtos, banheiros quebrados, brigas no pátio e trânsito livre de armas brancas. Os policiais mudaram isso com rotina rígida e uma gestão linha dura. 

      Para entrar, farda e horário rígido. para sair, só após a realização de todas as tarefas. Celular? A ordem é que ele fique sem bateria até a saída do colégio. Tudo isso sob a batuta do coronel aposentado Rudnei Caldas, que afirma ter encontrado resistência dos professores no início da implantação do novo sistema. Mesmo assim, ele não desistiu e manteve o que julgava melhor para a escola. Três anos depois, os alunos já estão completamente dentro da rotina extremamente rígida.

      Quando passam, por exemplo, pelos policiais armados que atuam como inspetores, endireitam a coluna e batem continência. Dentro das salas de aulas, gritos de guerra são ouvidos antes das jornadas e distintivos de patentes são distribuídos para os donos das melhores notas. Uma indisciplina até é aceita, mas se reiterada, leva à expulsão. Em 2015, até maio, foram cinco alunos expulsos, média de um por mês — todos por não se adequarem à política do colégio. Os professores antigos, resistentes ao novo sistema, foram quase todos mandados embora e substituídos.

      E as mudanças não são visíveis apenas na estrutura física do colégio e nas normas extremamente rígidas. De 2011 para 2013, a escola deu um salto no Ideb. O ensino fundamental passou de média 3,3 para 6,1. No ensino médio o salto foi de 3,1 para 5,8. Os novos coordenadores do colégio ainda se orgulham em afirmar que o índice de reprovação, de 15,2% em 2012, foi zerado em 2014. Alguns alunos ainda apareceram, de maneira inédita, entre os primeiros colocados nas Olimpíadas de Matemática das Escolas Públicas.

      Quem também se adaptou às regras novas foram os professores. Uma das poucas remanescentes da administração antiga, Maria do Rosário de Almeida Braga, de 54 anos, afirmou ao jornal O Globo que não só os alunos têm exigências vindas da diretoria: os professores também. E, por isso, acredita ela, a imagem da escola e, principalmente, os desempenhos dos alunos, mudaram tanto nos últimos anos, tornando a escola modelo para o estado.

       

      Por  | Yahoo Notícias – 10 horas atrás

       

       

      1. Céus! Parem o mundo q quero descer

        Ainda bem que nao sou mais professora de Fundamental ou Médio, e mesmo no superior me aposentarei de vez daqui a 2 anos e meio.

    5. concordo em parte. Embora os

      concordo em parte. Embora os enlouquecidos olavetes falem de uma ‘conspiração comunista’ nas Universidades, a ‘ideologia’ predominante e hegemonica nas Unviersidades é a do empreendedorismo, da meritocracia, enfim do neoliberalismo. Não é o academicismo vazio, é o bolso cheio de dinheiro da E$cola $em partido que está tornado a universidade irrelevante, processo que já ocorreu em outros lugares:

      http://www.counterpunch.org/2015/06/05/twilight-of-the-professors/

      Mas ainda sim, no Brasil comparativamente ainda há espaço – decrescente, é verdade – para o pensamento crítico e a preocupação com atividades que sejam socialmente relevantes nas Universidades. N o momento há sim um ataque violento a isso, e vêm não só de fora como de dentro da Universidade, por parte de vários profe$$ores. A saida? Sair dos muros das universidades, ir para as ruas. Nenhum militante de esquerda relevante antes da segunda guerra era professor universitário. Voltemos às lições da história: escola dos partidos (no sentido amplo de partido – defesa de uma ideia, causa) para combater a e$cola $em partido.

      1. Soluçao utópica e indesejável…

        Vc quer que a universidade fique sem todos os professores críticos? E nem todos eles sao militantes…

        Quanto à mentalidade do empreendorismo, etc., acredito que vc tenha razao em Economia e em áreas técnicas. Eu sou de Letras. Em Letras o que impera é o academicismo vazio mesmo. As pessoas enchem a boca com lindos discursos nas nuvens, mas nao se preocupam com questoes básicas, como, por ex., alfabetizaçao (só falam de letramento, o que sem dúvida é importantíssimo, mas nao dispensa o pensamento sobre alfabetizaçao e suas especificidades). Além disso, há milhares de teorias, todas importadas, os professores formam panelas de adeptos da teoria tal ou qual, cita-se o tempo todo, ninguém fala em nome próprio, o vazio ecoa…

        E a pressao sobre os professores mais críticos, mais engajados ou simplesmente mais em desconforto com esse clima nao vem tao diretamente de outros professores, mas das exigências absurdas dos órgaos de fomento. Aí todos têm que se adequar, senao o programa recebe pior avaliaçao, o que significa menos bolsas, etc., etc., etc. É por aí que a banda toca.

  4. Quais alunos?

    “Entende-se como Assédio Ideológico toda prática que condicione o aluno a adotar determinado posicionamento político, partidário, ideológico ou qualquer tipo de constrangimento causado por outrem ao aluno por adotar posicionamento diverso do seu, independente de quem seja o agente”

     

    Não importa quem seja o agente?

    Isso vai valer para religiosos em colégios e nas aulas de catecismo tambem?

  5. Perguntar ofende?
    Perai, não foi aqui neste BLOG que o pessoal outro dia estava batendo palmas para um grupo que invadiu a universidade de SP para impedir um debate simplesmente porque não gostaram do tema debatido?

    Movimentos de esquerda seriam os primeiros atilizar está lei.

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