Para entender a moratória da Argentina

A crise da dívida externa da Argentina pode ser entendida assim.

Após a desastrada gestão do Ministro da Fazenda Domingo Cavallo, o país entrou em moratória. Houve uma penosa negociação com os credores no final da qual 93% deles aceitaram receber novos bônus com desconto de mais de 60%. O restante ficou de fora do acordo e foi brigar na Justiça.

Nos contratos de dívida, a Argentina escolheu a praça de Nova York para dirimir as pendências judiciais.

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Fechado o acordo de reestruturação, fundos “abutres” – um tipo de fundo que adquire títulos de difícil negociação por valor irrisório – comparam papéis de fora do acordo na bacia das almas, e entraram na Justiça exigindo o pagamento integral de sua parte.

O caso foi parar nas mãos do juiz Thomas Griesa, um magistrado de 84 anos (!), provavelmente sem a menor noção sobre o impacto de ações envolvendo dívidas soberanas (de países). O juiz ordenou que a Argentina quitasse integralmente os títulos dos “abutres”. Para garantir a quitação, ordenou o bloqueio do depósito que o país fez para os credores que aderiram ao acordo.

A Argentina apelou para a Suprema Corte, que decidiu não opinar sobre a questão. Assim, a decisão do juiz Griesa tornou-se definitiva.

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Ocorre que, no contrato de renegociação da dívida argentina, há um cláusula que estipula que se a Argentina oferecer condições melhores para os credores que não optaram pela renegociação, terá que oferecer as mesmas condições para todos os demais. E aí, o desembolso saltaria de US$ 1 bilhão para US$ 20 bi.

Na época da renegociação, os credores adquiriram uma espécie de seguro de crédito – o CDS (credit default swap) – largamente utilizado no período pré-crise de 2008. Assim, além de especular com os velhos e novos títulos da Argentina, o mercado passou a especular também com os CDS.

A questão em jogo é a avaliação da Justiça  sobre a decisão da Argentina de não pagar os “abutres”. Ela pagaria para não ter default; ou deixaria de pagar correndo o risco de default?

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Inicialmente foi pensada uma forma da Argentina sair desse embrulho. Bancos argentinos adquiriram os títulos dos “abutres”, guardariam em carteira e nada fariam com ele até vencer o prazo do final do ano. Depois, acertariam com governo da Argentina.

Mesmo alguns grandes credores se ofereceram para montar essa operação.

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Enquanto Argentina e credores debatiam-se ante esse dilema, o Comitê de Determinações da Associação Internacional de Swaps e Derivativos decidiu, no final da tarde de sexta-feira, que a Argentina está oficialmente em calote.

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De alguma forma, a questão deverá ser resolvida nos próximos dias.

Mas o caso Argentina deverá provocar mudanças nos contratos envolvendo dívida soberana.

Vigorando a decisão do juiz Griesa, inviabilizaria totalmente reestruturações de dívidas soberanas.

O episódio demonstra o seguinte:

  1. Nem a quebra da economia mundial, com a crise de 2008, reduziu o poder político, jurídico e financeiro.

  2. Ainda falta uma segunda rodada de crise para se criar uma nova institucionalidade global para tratar com os grandes fluxos de capital e com a especulação com câmbio e títulos de dívida. 

Luis Nassif

14 Comentários

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  1. E o Brasil, quantas vezes já

    E o Brasil, quantas vezes já passou por situação semelhante inclusive para a sua dívida interna, cujos títulos, – ou seriam somente os falsos – chegaram a ser utilizados ou oferecidos para pagamentos de tributos por consultores e agentes da lei, inescrupulosos?

  2. Compra dos títulos

    Se o banco dos BRICS já estivesse criado, poderia comprar os títulos dos fundos abutres e contratar o despendido como empréstimo à Argentina. (Griesa e FHC – este com suas teses golpistas – fazem anti propaganda dos velhos)

  3. Eh surreal o festino da
    Eh surreal o festino da Argentina estar nas mãos de um mero juíz.

    No mais, por que não se divulga o nome de tais abutres?

    1. Como não? È o Fundo NML

      Como não? È o Fundo NML administrado pela ELLIOT MANAGEMENT CORP. cujo presidente e fundador é Paul Sunger.

  4. Débito Argentina

    Nassif,

    Este juiz americano não tinha a menor noção sobre o assunto e suas práticas habituais,, certamente consultou um ou mais de um que conhece o mercado de dívidas soberanas e resolveu inovar, o que não faria caso o país devedor fosse a Itália ou Alemanha. 

    A situação é tão surrealista, que os credores, parte dos 93%, sugeriram até mesmo descartar a cláusula RUFO, para facilitar um acordo.

    93% de um lado e 7% do outro (que nem credores originais são, compraram a dívida de terceiros). Não tem como deixar de imaginar um juiz a se locupletar, assim como chama atenção o silêncio obsequioso dos administradores de dívidas soberanas.

    1. Perfeito

      Perfeito Alfredo, e ademais eu não acredito nem um pinguinho na honestidade desse juiz de 84 anos. Agora o atual governo, pagará caro pelo erro de outro governo, que tinha a amizade dos que agora investem contra ele. O poder dos vagabundos travestidos de “operadores de mercado” prossegue!

      Faço o juizo de caráter individual nesse caso, e não acredito que esse “meretríssimo” não soubesse o que estava fazendo. Observando a vida como ela é, a gente constata que normalmente a covardia e a safadeza aparecem já na juventude e não esmorecem com a idade…

      Um abraço.

      1. Ignorante aqui sou eu

        Se o juiz não sabe de nada, vou acrediar que quem emitiu os títulos sabiam menos ainda. Ou muito antes pelo contrário. A questão é : e se a moda pega? Quem vai emitir títulos e quem vai pegá-los.

  5. o aplicador

    Tenho para mim que a grande maioria dos aplicadores são argentinos,  cujo dinheiro passeou pelos paraísos fiscais.  O mesmo vale para o Brasil

  6. divida argentina

    A Argentina paga pelas maluquices da globalização, das privatizações, da política liberal dos anos 90/2000 que baseava-se em vender o país e na dolarização. Cavallo, Menem, Clube de Paris, Consenso de Washington, Banco Mundial, FMI. Um país nas mãos de 2 ou 3 grupos de especuladores. Olha onde antigos governos colocaram ao futuro da Argentina? E do Brasil e outros países em desenvolvimento que entraram nesta canoa furada? A diferença é que a Argentina enfrenta, bate de frente. Não é toa que tem o padrão de vida, assim como o Chile, muito acima da AL. Não é como um certo país que faz espetacularização da pobreza, de favelas, tenta “enfeitar” a miséria do seu povo. O que é interessante na grande mídia brasileira é não mostrar, divulgar a origem deste cancro que compromete as economias emergentes.

  7. Me posicionei aqui no blog

    Me posicionei aqui no blog desde o inicio dessa questão ao lado da Argentina e contra esse fundos abutres MAS acho que a Argentina contribuiu para a má situação. O pagamento dos credores legitimos poderia ser feito usando a clausula FORÇA MAIOR que existe em todos os contratos de reestruturação, liquidando a obrigação por outro meio, por exemplo através do Banco de Liquidações Internacionais da Basileia, que existe para resolver situações desse tipo e está imune à jurisdição de outros paises. Paises em litigios importantes usam normalmente o BIS para proteger suas reservas e crédito.

    Mas eu acho que a Argentina preferiu o confronto para unir o Pais a favor do Governo, como o General Gualtieri fez com as Malvinas. Para negociar e tratar dessa questão NÃO serve um Ministro escrachado e aboçalado como esse Kissiloff.

    Não inspira a minima confiança, parece um segurança de boate em Marselha, mal encarado e sem perfil de representação de um Pais tradicionalista como é a Argentina, aliás todo o circulo intimo de Cristina Kirchner é do mesmo perfil, o vice presidente Amadou é identico.

    A crise é causada pelo juiz Griesa mas a Argentina agravou a crise do seu lado.

    1.   A respeito de seu

        A respeito de seu posicionamento, é verdade.

        Quanto à barbeiragem, não seria por simples incompetência do ministro?

  8. Néstor e Cristina

    Néstor e Cristina enriqueceram como assessores jurídicos especializados em execução hipotecária

     Néstor e Cristina Kirchner: 22 imóveis em 5 anos

    Há poucas semanas, em pleno conflito judiciário, a presidente Cristina Kirchner criticou os holdouts (fundos de investimentos que não participaram das renegociações de dívida) por tentarem conseguir elevados lucros com os títulos da dívida pública argentina que anos atrás haviam comprado a baixo preço, quando estavam desvalorizados pelo calote de 2001. “Eles querem lucro de 1.600%!”, exclamou a presidente na ocasião. Visivelmente irritada, criticou a ofensiva que os holdouts fazem nos tribunais em Nova York para conseguir o embargo de bens do Estado argentino nos EUA ou o pagamento da totalidade da dívida.

    “Abutres” é a denominação que o governo da presidente Cristina aplica aos holdouts, aos quais acusa de conspirar contra a Argentina. 

    No entanto, o modus operandi dos “abutres” é similar ao que o próprio casal Néstor e Cristina Kirchner aplicou na Patagônia durante a ditadura militar (1976-83), quando enriqueceu graças a execuções hipotecárias.

    Recém-formados como advogados em La Plata, os Kirchners em 1976 instalaram-se em Rio Gallegos, capital da Província de Santa Cruz, como assessores jurídicos da agência financeira Finsud, que realizava cobranças extrajudiciárias. 

    O jovem advogado, quando ficava sabendo que um proprietário deixava de pagar a parcela mensal de crédito, ia até sua casa e lhe explicava que tinha poucas opções. Uma delas era resignar-se a ter a casa leiloada e ficar sem nada. A outra, a de vendê-la ao próprio Kirchner por um preço significantemente inferior ao valor real.

    Na época, o ministro José Alfredo Martinez de Hoz, que comandava a economia do regime militar, havia desregulado o mercado financeiro , permitindo a criação de centenas de agências financeiras em todo o país. Mas, em janeiro de 1980, Martinez de Hoz emitiu a circular número 1.050, que – suspendendo as taxas predeterminadas para os créditos – permitia a indexação das dívidas pela inflação , que era de 150% anual.

    Dezenas de milhares de pessoas faliram imediatamente. O novo cenário favoreceu o casal Kirchner, que ampliou a compra de imóveis.

    Segundo diversas investigações jornalísticas, em apenas cinco anos, entre 1977 e 1982, o jovem casal comprou 22 propriedades. “Compraram as casas daquelas pessoas que não podiam pagar”, explicou anos atrás o ex-deputado Javier Bielle, da União Cívica Radical de Santa Cruz.

    “Para fazer política é primeiro necessário juntar dinheiro “, dizia o casal Kirchner nos anos 80 aos amigos em Santa Cruz.

    Os Kirchners continuaram prosperando mesmo quando chegaram ao governo de Santa Cruz e à presidência da República. Seu patrimônio, entre 1995 e 2010, segundo dados de suas declarações juramentadas, aumentou em 4.567%.

    Família. O escritor anarquista Osvaldo Bayer, em sua obra Os vingadores da Patagônia trágica, um clássico da história argentina, afirma que o avô de Kirchner, Karl Kirchner, era conhecido em Santa Cruz no início do século 20 por ser um agiota.

    Fonte: http://www.ecofinancas.com

     

  9. 300 x 41 milhões

    O caso argentino exemplifica o funcionamento do sistema financeiro internacional e a capacidade que tem de lucrar de forma aviltante sem o menor pudor. O juiz Griesa num simulacro de busca de soluções, repassa a decisão de outorgar um stay* aos próprios fundos, que se negam. Ao se negar, os credores reestruturados não podem receber o dinheiro pago pela Argentina e depositado no BoNY. Ao não receber, um evento de default é disparado, e a ISDA tem que se pronunciar. A ISDA é uma sorte de câmera de derivativos. A ISDA é composta pelos fundos! A ISDA declara a toque de caixa o evento como default. Os derivativos sobre a dívida argentina em mãos dos fundos (CDS) são executados. Os fundos cobraram 1 bilhão de dólares. Compraram a dívida por 40 milhões. E reclamam mais 1,3 bilhões da Argentina.

     

  10. O mais evidente nessa questão

    O mais evidente nessa questão é a inviabilidade de se definir cortes americanas para dirimir eventuais diferenças. 

    Cada vez mais os EUA fazem uso de suas isntituições financeiras para fins políticos, o que enterra de uma vez a suposta neutralidade desses mecanismos econômico-financeiros tão alardeada pelos defensores do livre-mercado.

    Assim como o uso crescente de outras moedas que não o dólar no comércio internacional, faz-se necessária a constituição de instituições financeiras multilaterais, que não fiquem sujeitas aos caprichos de uma única nação.

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