Jorge Alexandre Neves
Jorge Alexandre Barbosa Neves professor Titular de Sociologia da UFMG, Ph.D. pela Universidade de Wisconsin-Madison, nos EUA. Professor Visitante da Universidade do Texas-Austin, também nos EUA, e da Universidad del Norte, na Colômbia.
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Crepúsculo macabro, por Jorge Alexandre Neves

Observamos no mundo uma mistura de estruturas institucionais e políticas liberais e, digamos, sociais. Quanto mais forte o elemento social, melhor o desempenho no enfrentamento da pandemia.

Crepúsculo macabro

por Jorge Alexandre Neves

Há 18 meses, publiquei aqui no GGN um artigo intitulado “O novo crepúsculo do liberalismo” (1) mostrando que, assim como há um século, o liberalismo está em franca decadência. Curiosamente, temos hoje um coquetel com alguns elementos semelhantes às primeiras décadas do século XX: desigualdade crescente e em níveis altíssimos, decadência do liberalismo, ascensão do fascismo e, agora, uma pandemia. Uma diferença (entre outras) é que, há um século, a humanidade não conhecia ainda o Estado de Bem-Estar Social.

A pandemia que o mundo enfrenta hoje está dando um caráter macabro ao novo crepúsculo do liberalismo. Observamos no mundo uma mistura de estruturas institucionais e políticas liberais e, digamos, sociais. Quanto mais forte o elemento social, melhor o desempenho no enfrentamento da pandemia. Observe-se que na Alemanha e nos países escandinavos se está sendo muito mais bem sucedido do que nos  EUA e na Itália – onde o Estado de Bem-Estar Social não é tão desenvolvido – no combate ao coronavírus. A força do Estado de Bem-Estar Social está fazendo toda a diferença, neste momento (2).

Ao observar o momento pelo qual passamos e tentar refletir o que será nosso mundo a partir de agora, como cientista social, me vem à mente dois pensadores contemporâneos que têm refletido sobre a racionalidade e o comportamento humano: Jon Elster e Vernon Smith. O primeiro, ao trazer para o pensamento social a extraordinária alegoria de “Ulisses e as Sereias”, ao mostrar que, muitas vezes, menos é mais, ou seja, que, em muitas situações é absolutamente racional a restrição de nossa própria vontade, como Ulisses que, para escapar da incontrolável sedução do canto das sereias pediu para ser amarrado ao mastro do navio. Não me refiro apenas à questão da quarentena – que é um exemplo óbvio da analogia de Ulisses e as sereias – mas também ao fato histórico (e que se aplica como nunca ao momento atual) de que o capitalismo sempre é mais bem-sucedido quando os capitalistas aceitam limites ao seu próprio poder e, principalmente, à acumulação de riqueza, como, por exemplo, quando se dispõem a pagar mais impostos.

Quanto ao pensamento de Vernon Smith (ganhador do prêmio Nobel de economia em 2002), me vem à mente o conceito de “racionalidade ecológica”, que propõe como um contraponto ao que chama de “racionalidade construtivista”, buscando, na verdade, fazer um confronto com ao tipo ideal – excessivamente parcimonioso, nas palavras de Albert Hirschman – de homo economicus. Ao contrário deste tipo ideal da economia neoclássica, para Smith, o ator racional ecológico obtém sucesso na cooperação, que, por sua vez, derivaria de um algoritmo mental transmitido geneticamente (3). Estamos vendo isto, agora, países mais cooperativos, como sistemas de bem-estar social mais fortes, estão sendo mais bem-sucedidos.

Dois elementos dos Estados de Bem-Estar Social estão sendo fundamentais para o sucesso do enfrentamento ao coronavírus, neste momento: a) um sistema de saúde pública robusto e; b) um sistema de proteção ao trabalhador. Os EUA estão sofrendo sobremaneira por não ter nenhum dos dois. Como consequência, vão enfrentar um genocídio. O liberalismo econômico estadunidense está recebendo um castigo macabro. Não dá para construir um sistema público de saúde da noite para o dia. O máximo que se pode esperar é que essa terrível crise epidemiológica possa mudar radicalmente as preferências dos eleitores estadunidenses, fazendo com que abram seus ouvidos para as propostas do Senador Bernie Sanders. A proteção ao trabalhador, por outro lado, é algo que pode ser realizado de forma mais ágil. Para que o trabalhador estadunidense não precise morrer de fome ao ficar em quarentena, o congresso e o executivo já estão se movendo por lá para dar US$ 1.000,00 (ou até mais) por mês às famílias para que fiquem em casa. Com isso, irão conseguir reduzir o enorme genocídio que ocorrerá nos EUA.

Aqui no Brasil, temos a extraordinária vantagem (principalmente quando nos comparamos com os EUA e com a maior parte dos países da América Latina) de contar com o SUS. Todavia, este nosso extraordinário programa de saúde pública vinha sofrendo sobremaneira com falta de recursos. Será preciso fazê-lo com urgência! Por outro lado, nosso sistema de proteção ao trabalhador se deteriorou por completo, nos últimos três anos. Assim como está ocorrendo nos EUA, é urgente que se faça um programa de proteção ao trabalhador brasileiro. É preciso pagar para as pessoas ficarem em casa. Assim, elenco algumas providências urgentes:

  1. Uso do Cadastro Único da Assistência Social (CadÚnido), como tem proposto o economista e sociólogo Marcelo Medeiros, para começar a distribuição de dinheiro à população mais pobre.
  2. Identificação de indivíduos que não estejam registrados no CadÚnico, mas que trabalhem informalmente, como, por exemplo, intimando empresas como Uber, 99, iphood etc., para que informem dados de seus “colaboradores”, para que também sejam beneficiados com recursos públicos.
  3. Distribuição de R$ 1.000,00 mensais para casa família de indivíduos nesses dois grupos, a saber CadÚnico e trabalhadores informais não inscritos no cadastro, por, no mínimo, quatro meses.
  4. Suspensão do pagamento de custos previdenciários e trabalhistas por, no mínimo, quatro meses das empresas que se dispuserem a não demitir seus empregados.

Os recursos para bancar essas despesas existem. Assim como o Federal Reserve (o Banco Central dos EUA), urge que o BC brasileiro reduza de forma drástica a taxa básica de juros para níveis reais negativos. A desaceleração econômica e a inflação baixa permitem que se faça isso, o que daria mais fôlego fiscal para o Estado brasileiro. A decretação de estado de calamidade permite que se possa fazer outras ações rápidas sem sofrer possíveis sanções legais à frente. Uma possibilidade de se buscar recursos seria pela expansão da base monetária, que também é viável diante da recessão eminente e da baixa inflação. Deve-se, ainda, utilizar de forma agressiva, neste momento, fundos federais, como o FAT, bem como recursos de bancos públicos para elevar a liquidez do mercado de crédito (além de uma drástica redução dos depósitos compulsórios). Finalmente, se faz necessário que sejam utilizadas as reservas cambiais como uma poupança a ser usada em um momento de grande necessidade, como o atual. Desde o início do atual governo, já foram gastos US$ 23,2 bilhões de reservas em swaps cambiais (4), algo que se mostrou absolutamente inútil, até momento. Este valor é mais do dobro do que o governo federal se mostrou disposto a gastar, até o momento. Nossas reservas – que foram acumuladas durante os governos petistas – ainda são superiores a US$ 360 bilhões. Esse é um colchão de proteção que – mesmo considerando o PIB brasileiro – é muito superior àqueles da esmagadora maioria dos países em desenvolvimento. Uma situação dramática como essa que começamos a viver justifica o uso de até 1/3 desse valor para fazer frente às despesas emergenciais com o SUS e o amparo aos trabalhadores.

Exigir que as pessoas fiquem em casa sem lhes dar condições financeiras de sobrevivência é uma crueldade. Rapidamente, veremos as empresas começarem a demitir funcionários, bem como os trabalhadores informais ficando sem qualquer fonte de renda.  Qual será a consequência? Caos social, com o início de saques a supermercados e outras formas de ações violentas. 

Quanto ao sistema de saúde, além de uma maior disponibilização de recursos financeiros, há a necessidade de outras ações emergenciais, tais como a construção de estruturas hospitalares temporárias de atendimento à população, bem como a contratação imediata de profissionais. Por exemplo, há cerca de 2.000 médicos cubanos que permaneceram no Brasil e que não estão sendo utilizados. Precisam ser contratados, com urgência (5).

Dito tudo isso, sei que há um grande empecilho para a aplicação de medidas emergenciais tão drásticas: temos hoje o governo mais incompetente de nossa história! A dificuldade em tornar real ações emergenciais será muito grande (vide os apagões administrativos no, IBAMA, INEP/ENEM, INSS e SUAS). Infelizmente, é mais fácil vermos o SUS sofrer um apagão administrativo e entrar em colapso do que ações emergenciais competentes. Em paralelo a isso tudo, a cegueira ideológica da equipe econômica, provavelmente, impedirá o uso de medidas tão keynesianas quanto as que elenquei, acima. Assim sendo, nos preparemos para o Caos!

Jorge Alexandre Neves – Ph.D, University of Wisconsin – Madison, 1997.Pesquisador PQ do CNPq. Pesquisador Visitante University of Texas – Austin. Professor Titular do Departamento de Sociologia – UFMG – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas

  1. https://jornalggn.com.br/analise/o-novo-crepusculo-do-liberalismo/.
  2. https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2020/03/pandemia-poe-a-prova-modelo-de-estado-de-bem-estar-social-europeu.shtml.
  3. Eu havia lido os trabalhos de Vernon Smith alguns anos antes de, em 2008, participar da defesa de tese de doutorado de nosso então aluno Jakson Aquino, hoje professor da Universidade Federal do Ceará. Fiquei impressionado como os resultados das simulações computacionais da tese, que mostravam a emergência da cooperação entre primatas superiores, se encaixavam perfeitamente às previsões teóricas do modelo de racionalidade ecológica de Smith.
  4. https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2020/03/11/reservas-internacionais-dolar-risco-brasil-bolsonaro.htm.
  5. O ideal – além da contratação emergencial desses 2.000 médicos que ficaram no Brasil – seria a retomada do convênio com a OPAS para trazer de volta médicos de Cuba (mas acho que seria pedir muito). Um dia desses, ouvi num podcast do UOL um jornalista afirmar a velha ladainha de que a contratação dos médicos cubanos feita pelo mais médicos era ilegal. É a ignorância sendo repetida ad infinitum. Não havia ilegalidade alguma, pois ali o que se tinha era um convênio do Estado brasileiro com um organismo da ONU, como ocorre corriqueiramente, no Brasil. Nossas leis orçamentárias, anualmente, preveem esse tipo de convênio e contratação, que passa totalmente por fora da legislação trabalhista ordinária. É uma excepcionalidade prevista em lei. Nunca vi essa excepcionalidade ser contestada, a não ser no caso do convênio com a OPAS para trazer médicos cubanos para o Brasil. Lembrando sempre que esse tipo de convênio para a “contratação” de médicos cubanos tem sido feito por vários países da Europa.
Jorge Alexandre Neves

Jorge Alexandre Barbosa Neves professor Titular de Sociologia da UFMG, Ph.D. pela Universidade de Wisconsin-Madison, nos EUA. Professor Visitante da Universidade do Texas-Austin, também nos EUA, e da Universidad del Norte, na Colômbia.

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