Tudo o que é sólido desmancha com o Coronavírus, por Márcia Moussallem

O coronavírus retira o “véu” do cruel mundo civilizado da “ordem e do progresso” e coloca o real mundo da desordem e da cruel desigualdade social existente.

do Observatório do 3º Setor

Tudo o que é sólido desmancha com o Coronavírus

por Márcia Moussallem

Nada como resgatar os clássicos para compreendermos a atual conjuntura mundial. Karl Marx é um deles, que nos últimos anos tem sido fortemente atacado e distorcido pelos ultraliberais em todo mundo, em especial pela tosca direita brasileira, composta pelos líderes políticos e uma parte da classe dominante e média.

A teoria de Marx, como teoria crítica do capitalismo, está mais presente do que nunca nesse cenário de crises ininterruptas em todos os âmbitos que o grande capital financeirizado mundial nos coloca de desintegração, mudanças, lutas e contradições.

Parafraseando a célebre frase de Marx (do livro “O Manifesto Comunista”): “Tudo o que é sólido desmancha no ar”, podemos dizer que tudo o que é sólido desmancha com o coronavírus. É nesse turbilhão que se encontra o mundo contemporâneo “sólido, da ordem e da harmonia” que o vírus chega com toda força para anular todas as fronteiras nacionais e internacionais, colocando em cheque a força do Deus mercado, das ideologias, das religiões, classes sociais.

É nessa superfície de “sólida aparência” que o mundo vive, da expansão e crescimento dos mercados, das novidades tecnológicas, do consumo desenfreado e dos valores individualistas e destrutivos da alma humana, que são sequestrados cotidianamente.

É nesse desenvolvimento magnífico, iniciado com a era moderna e contemporânea, que assistimos a formação de uma sociedade contraditória e antagônica, de autolibertação e autodestruição.

“O Manifesto Comunista” expressa todas essas contradições existentes da sociedade que vivemos, na passagem: “Tudo o que é sólido desmancha no ar, tudo que é sagrado é profano, e os homens são finalmente forçados a enfrentar com sentidos mais sóbrios suas reais condições de vida e sua relação com os outros homens (…) estão todos aí juntos, ao mesmo tempo agentes e pacientes do processo diluídor que desmancha no ar o que é sólido”.

O coronavírus mostra à humanidade o quanto esse sistema de expansão e desenvolvimento de mercados cruel e excludente é frágil e se desfaz. Atinge todos os países em todos os campos, recolocando a geopolítica mundial em outro patamar. Também nos mostra com toda a sua força as formas e possibilidades desumanas impostas por uma ideologia dominante em nome de um novo e maravilho mundo para os “sólidos cidadãos”.

Além disso, escancara todas as crises constantes desse sistema, sejam elas sociais, políticas, ambientais, ecológicas, econômicas, bem como anuncia que estamos diante de uma catástrofe mundial, onde todos são atingidos e unidos ao mesmo tempo diante da vida e da morte.

Entretanto, apesar dessa unidade que o vírus nos impõe a repensar os valores humanitários, é importante enfatizar que a grande maioria da população se encontra em situação de alta vulnerabilidade social, vivendo nas periferias e nas ruas das cidades.

O coronavírus retira o “véu” do cruel mundo civilizado da “ordem e do progresso” e coloca o real mundo da desordem e da cruel desigualdade social existente. A fome, a violência, a ganância, o desemprego, a ausência de água, de habitação digna, abandono do Estado.

Diante desse cenário, comungo do pensamento do médico e cientista Miguel Nicolelis quando afirma: “Já não é possível vivermos dessa maneira… Criamos um mundo frágil em nome do Deus mercado. Diante de tudo isso, é preciso resgatar o humanismo, um outro movimento mundial… Uma outra sociedade”.

É possível criarmos outra sociedade? Acredito que sim. Não concordo que os homens sejam eternamente “Homens ocos e Homens massa”, conforme o ceticismo de Marx Weber. Fico com a esperança de Karl Marx que diz que “Logo eles sejam forçados a enfrentar suas verdadeiras condições de vida e suas relações com os outros companheiros… os homens desacomodados se unirão em uma vida coletiva capaz de alimentar uma nova vida comunitária”.

Estamos diante de muitos desafios e lutas. Para isso é preciso matar o “rato de consciência hipertrofiada” (citando Dostoiévski) e deixar emergir um novo homem do século XXI, que construa incansavelmente outro projeto de sociedade.

Esse pequeno, cruel e impressionante coronavírus nos aponta para esse caminho.

*A opinião dos colunistas não reflete, necessariamente, a opinião do Observatório do Terceiro Setor.

MÁRCIA MOUSSALLEM – É socióloga, assistente social, mestre e doutora em Serviço Social, Políticas Sociais e Movimentos Sociais pela PUC-SP. Tem MBA em Gestão para Organizações do Terceiro Setor. Professora da PUC-Cogeae/SP  e da FGV-Pec/SP. 

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