Noites africanas
por Daniel Afonso da Silva
Segue incerta a situação no Gabão. Como de resto, em todo o Sahel e na maior parte da África. Os choques da descolonização voltaram a avivar as sombras da colonização. Foram muitos os pecados. Alguns, originais. A fatura, agora, começou a vir bem alta.
Às vésperas da confirmação de sua segunda reeleição, na quarta-feira, 30 de agosto de 2023, o presidente Ali Bongo foi destituído do cargo. O general Oligui, chefe da guarda presidencial, liderou a ação. Outro presidente, militar indicado pelos militares, foi designado. E, assim, o terceiro mandato consecutivo do presidente Ali Bongo foi interditado.
Ficaram exorbitantes as suspeitas – e confirmações – de fraude as eleições. A nenhuma agência, país ou instituição internacional se permitiu acompanhar o processo eleitoral. As fronteiras todas foram bloqueadas. Jornalistas e agências de informações estrangeiros foram interditados de cobrir os movimentos da eleição. Estações de rádio e televisão locais veicularam apenas fragmentos do processo. Foram imensos os constrangimentos. Superiores aos anteriores. Tudo para favorecer o presidente em campanha.
A população, especialmente a mais jovem, abaixo dos quarenta anos, considerou insuportáveis essas manobras. Desceu às ruas, protestou em ato contínuo, pediu a intervenção e apoiou a deposição do presidente.
Diferente de seu pai, Omar Bongo, que presidiu o Gabão por 42 anos, de 1967 a 2009, Ali Bongo encontrou um Gabão, uma África e um mundo em decomposição. Sem a vigência de nenhum dos princípios da transição da colônia para a tutela franco-francesa nos anos de 1960. Sem a valência de nenhum dos valores dos tempos do general De Gaulle. Sem nenhuma das justificativas que garantiram a entronização do patriarca Omar Bongo em 1967. Sem nenhuma concessão ao paternalismo pós-colonial ambiente. Nenhuma paciência com os abusos e lições de moral intermitentes. Nenhuma complacência com o cinismo de autoridades locais e estrangeiras estruturalmente corruptas. Nenhuma benevolência com predadores contumazes de petróleo e muito mais. Nenhuma amnésia diante dos “biens mal acquis” (fortunas incomensuráveis fruto toda sorte de malversação de dinheiro público) dos Bongo por toda Paris. Nenhuma ingenuidade frente à retórica das bondades samaritanas do Ocidente. Nenhuma condescendência com os modelos de prosperidade veiculados pelos europeus e norte-americanos. Nenhum interesse em seguir seguindo os passos por eles sugeridos. A gente do povo sabe que por seguir esses passos estão onde estão.
Todas – repita-se, todas – as investidas eleitorais no Gabão portaram altíssima suspeição e variados níveis de contestação. O estado de direito no país sempre funcionou como uma extensão da dinastia Bongo e da já desgastada e esquecida plataforma France-Afrique. A promoção de eleições como sinônimo de disputa verdadeira entre ideias, ideais e convicções democráticas nunca passou de um simulacro.
Todos os envolvidos sempre souberam. Desde os mais humildes eleitores locais até as mais altas castas de poder político e econômico entre Paris e Washington. A realidade das esferas de poder no Gabão sempre se tratou de um crime perfeito. Um pecado consentido. Uma ilusão partilhada. Os gaboneses, agora, decidiram dar um basta à farsa.
O posicionamento da França na tensão russo-ucraniana foi recebido como ofensa imperdoável entre os gaboneses. O tipo e o nível de envolvimento francês na proteção dos ucranianos ativaram muitos ressentimentos adormecidos entre africanos. Especialmente do Sahel. Ninguém notou nenhum cuidado francês similar no Mali, em Guiné, Burkina Faso ou na Nigéria.
Desde a aventura na Líbia, em 2011, que a presença europeia vem sendo agudamente rechaçada. O pedido de socorro do Mali em 2013 foi rapidamente transformado num episódio inglório. Efeito colateral das Primaveras Árabes, ele foi imprescindível para a manutenção da integridade do país. Mas a presença militar francesa não demorou a gerar arrependimentos irremediáveis.
Na realidade, franceses, europeus e norte-americanos deixaram de ter uma política para a África desde o final do século anterior. Sua presença por lá funciona, especialmente, apenas para a manutenção do statu quo de lascívias políticas com mandatários locais. Enquanto russos, chineses, indianos e afins aportam investimentos, estradas, portos e aeroportos, os antigos (que ainda se querem atuais) metropolitanos vêm com dedo em riste. Ninguém na África suporta mais.
Segue incerta a situação no Gabão. Mesmo com a designação de um novo presidente e o início da transição. Mas está bem claro que a atenção dos gaboneses segue mais fixada em Brasília, Moscou, Joanesburgo, Nova Deli ou Pequim que em Paris, Londres, Bruxelas ou Washington.
O Ocidente na África já virou coisa do passado. Plenamente mundializado, o conjunto do continente africano nos países não-ocidentais e, notadamente nos BRICS, o seu passaporte para algum futuro. O ingresso do Egito e da Etiópia nos BRICS aumentou em muito a sua dose de esperança em dias bons.
Europeus, franceses e norte-americanos seguem povoando as noites africanas. Mas, com eles, os africanos deixaram de sonhar ou manter sonhos comuns. Os tempos mudaram. Os sonhos e parceiros também. Os africanos ainda aguardam e projetam o seu lugar ao sol. Um sol que, agora, vem do sul.
Daniel Afonso da Silva é doutor em História Social pela Universidade de São Paulo e autor de “Muito além dos olhos azuis e outros escritos sobre relações internacionais contemporâneas”.
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