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Vommaro: “Se eleito, Milei vai precisar de um pouco mais de caos para poder levar a cabo seu programa”

Um pilar do discurso de Milei é a questão anti-establishment, que é a questão que mobiliza a raiva e o descontentamento de pessoas

UNSAM

Vommaro: “Se eleito, Milei vai precisar de um pouco mais de caos para poder levar a cabo seu programa”

O cientista político e professor da UFMG Leonardo Avritzer entrevista o cientista político argentino Gabriel Vommaro sobre o cenário eleitoral no país.

LEONARDO AVRITZER – Eu gostaria de começar esta conversa te perguntando: como compreender o fenômeno Javier Milei?

GABRIEL VOMMARO – Acredito que as duas coordenadas fundamentais para entender Milei são, por um lado, o crescimento do espaço da direita na Argentina, para qual, sem dúvida, o Juntos por el Cambio [coalizão pela qual concorreu Patricia Bullrich] foi e, sobretudo, para o qual o PRO foi um grande precedente. Não havia partidos de centro-direita competitivos; o PRO [partido fundado por Mauricio Macri em 2005] foi o primeiro da Argentina moderna pós-peronista. Especialmente nos últimos anos, um sector do PRO tinha também começado com um discurso mais ideológico sobre a economia e mais duro sobre segurança, e tinha-se aberto um espaço maior para um público disposto a ouvir discursos mais radicais em termos de direita. Esta situação foi também agravada pela pandemia, que provocou um forte sentimento anti-estatal em muitas camadas da população.

Milei, cujo discurso está fortemente ancorado na economia, foi um grande intérprete, digamos, de parte desse eleitorado, e de uma segunda parte que é fundamental, que é o fracasso das duas grandes coligações políticas argentinas nos últimos anos em termos de economia e de economia política, e que produziu a crise. Uma crise muito prolongada que já leva ao menos seis anos, que no discurso de Milei tem dois pilares principais: o primeiro é o econômico anti-estatal, com uma ideia muito crítica sobre a maioria dos consensos dos anos 2000 ligados à inclusão através dos direitos, à inclusão através do gasto público.

AVRITZER – No Brasil, a minha experiência é que a inclusão se dá de modo muito lento, as pessoas querem outras vidas. No Brasil até o crime é também uma forma de inclusão.

VOMMARO – Exatamente. Esse é um ponto muito bom. O outro pilar do discurso de Milei é a questão anti-establishment – anti-casta, como ele lhe chama – que é a questão que mobiliza a raiva e o descontentamento de pessoas que não são ideologicamente de direita, não são conservadoras, mas que acreditam que os políticos são responsáveis por tudo e com alguma razão, enfim, acreditam que tanto uma coligação como a outra levaram a esta situação. E aqui acho que há uma grande diferença com o Brasil, com os Estados Unidos, com estes fenômenos de emergência de lideranças semelhantes à de Milei, que é o fato de esta dimensão da crise econômico-social, a inflação na Argentina, ter desorganizado uma grande parte da vida quotidiana, sobretudo nos setores médios-baixos.

Há pouco eu mencionei que a inclusão através do gasto público não é suficiente, que é lenta, mas também que é muito sensível aos ciclos econômicos. E quando se tem ciclos econômicos tão instáveis como os da Argentina, os últimos anos retiraram, por assim dizer, uma parte dessa inclusão alcançada através do gasto público, porque a inflação tem um impacto direto nos setores de rendimento médio-baixo, que são os setores que não se beneficiam tanto das políticas dos programas sociais. Por exemplo, os Bolsa Família, digamos, que não chegam ao fundo da escala. Estão muito zangados com estes programas porque sentem que o Estado gasta demais com outros que não são eles.

AVRITZER – Há uma disputa pela distribuição por baixo?

VOMMARO – Exatamente. Sentem que a inflação produz uma impossibilidade de prever economicamente suas vidas e organizar o trabalho nos sectores informais ligados ao trabalho manual, às reparações domésticas, à construção, aos serviços, que foram duramente atingidos pela inflação e pela crise. Penso que esta dimensão da crise prolongada, a raiva contra as duas coligações e algo do sentimento anti-estatal, que tem um ingrediente produzido pelo próprio PRO, que o alimentou um pouco, e outro pouco pela pandemia, que também gerou muitos atritos com o Estado, são as coordenadas básicas, penso eu, para compreender este fenômeno Milei.

AVRITZER – E sobre a questão de valores, há uma agenda conservadora que não parecia realmente tão forte na América do Sul. No Brasil, sim, um pouco, porque o Brasil é mais religioso do que os outros países do Cone Sul, mas isso aparece na Argentina de uma forma diferente. Como é que se pode pensar nisso?

VOMMARO – É interessante, porque, em primeiro lugar, até agora não há voto evangélico na Argentina, não há, como em países como o Brasil. Nem sequer o voto religioso, enquanto tal, é um voto organizado aqui. Pode-se dizer que o peronismo aqui tem um componente católico sem dúvida muito forte e conservadora em parte, mas também não há um partido católico. Os evangélicos ainda não se organizaram politicamente aqui, são menos importantes do que no Brasil, mas também creio que na Argentina a secularização – digamos em termos de aquisição, de perda do peso da religião, na revolução da vida sexual, da vida familiar – é um processo bastante sólido.

AVRITZER – A agenda de gênero, sexualidade, aborto, teve um impacto muito diferente, separando Brasil e Argentina no tempo em termos de influência religiosa.

VOMMARO – Acho que aí o Milei foi muito inteligente. Embora quando se olha de perto para o seu espaço político ele tenha setores conservadores, a sua vice foi uma das principais ativistas dos lenços azuis, do movimento anti-aborto, tem uma boa parte dos ingredientes da direita alternativa – antigênero, anti-ideologia de gênero, etc.–, mas não é um componente central do seu discurso; em parte porque o conservadorismo cultural não é uma caraterística definidora da sua base.

Há sectores conservadores que estão ali, sem dúvida, mas não é algo que explique o todo do voto em Milei. Ele é muito inteligente em não falar sobre isso. Quase não fala de gênero ou de aborto, nem a sua vice. A questão do aborto, que é a mais controversa, pode voltar à ordem do dia, mas não a questão gay, não a questão dos direitos das mulheres, não os direitos do movimento LGBT. Talvez os temas que possam voltar a entrar na agenda conservadora via Milei sejam a questão do aborto e a questão do movimento feminista, porque é um movimento que circula pela esquerda, mais anti-esquerda do que anti-mulher, digamos assim.

AVRITZER – Em um governo Milei, sua relação com o Congresso, com o Parlamento, certamente não teria maioria diante de três forças políticas. No Brasil,o que aconteceu é que o bolsonarismo destruiu a direita tradicional, mesmo durante o processo eleitoral. Mas eu não vejo isso na Argentina, também vejo os seus fracassos, mas com uma agenda diferente da do Milei. Como podemos pensar o que poderia ser um Congresso e a sua capacidade de governar?  Ou seja, falaram de uma revolução contra o pós-materialismo, contra os valores abstratos da individualidade, porque nesse sentido a Argentina parece-me ser um dos países mais avançados do Cone Sul. Penso que é exatamente mais progressista em termos de valores do que o Chile, o Brasil, o Uruguai.

VOMMARO – O Uruguai seja talvez mais parecido com a Argentina. Penso que a questão da economia distributiva é fundamental na Argentina, muito mais do que a questão cultural, e também a questão dos direitos humanos, embora me pareça que o componente anti-establishment que Milei tem muito fortemente como espinha dorsal possa levar a que algo do discurso conservador sobre a cultura e contra o consenso ligado aos direitos humanos tenha peso, tenha algum espaço. Sobretudo porque parte destes consensos sociais, culturais e cívicos fizeram parte do establishment, digamos, nas últimas décadas.

Então, pode haver algo disso no discurso de Milei, mas penso que o componente principal é a questão anti-establishment político e a questão da economia distributiva. Há alguma coisa nesta questão que é central e que gera o grande problema de Milei, no sentido de o seu programa ser muito maximalista em termos de transformação econômica.

Ele quer fazer reformas radicais e funcionais ligadas à moeda com apoio empresarial e social muito fraco, com apoio partidário muito fraco. Ele não tem o seu próprio partido, ao contrário de Macri, que chega ao poder depois de uma década de construção partidária. Milei chega com um veículo personalista sem qualquer construção organizacional por trás, sem qualquer partido, sem apoio orgânico de qualquer força democraticamente importante, relevante para a política argentina, sem apoio empresarial sólido até agora e sem apoio social organizado. Portanto, eu diria que, nesse contexto, ele chegaria com um bloco parlamentar de 40 a 50 deputados na melhor das hipóteses, com 10 ou 12 senadores no melhor dos casos.

AVRITZER – Nas eleições regionais, por exemplo em Santa Fé, ele não parecia ser competitivo, ou seja, contava com uma competitividade muito individualizada.

VOMMARO – Exatamente. Em todo o caso, como os deputados e senadores são eleitos com base na mesma cédula nacional, Milei pode arrastar votos para os seus deputados e senadores por todo o país. Mas bem, suponhamos que o faz e que se saia muito bem, chegaria ainda com blocos parlamentares muito pequenos, sem governadores próprios, pode fazer com que alguns queiram responder a ele, mas sem governadores do seu partido. Então, haveria uma associação verdadeiramente paradoxal do drama mais maximalista dos últimos 40 anos de democracia com a menor quantidade possível de recursos políticos. Eu diria que há dois pontos fundamentais. Um deles é: o que Macri vai ser?

AVRITZER – Eu vejo os peronistas como os que foram mais derrotados nas eleições primárias, mas vejo que Massa se recuperou.

VOMMARO – Sem dúvida, é esse o caso. Se olharmos para o que aconteceu nas eleições primárias, a votação das duas coligações ficou reduzida ao seu núcleo duro. No final, o que Milei fez foi absorver todas as partes menos rígidas do voto peronista e do voto do Juntos por el Cambio, mais o voto mais duro da direita, se você quiser. Mas o que ele levou foi aquele terceiro, que é aquele eleitor indeciso, que vai e vem. E o terço peronista é um pouco mais sólido hoje, historicamente, do que o terço do Juntos por el Cambio e, sem dúvida, pode potencialmente crescer um pouco mais. Tem o governo e tem os instrumentos que este lhe dá em termos de uma ofensiva, se quiser um pouco demagógica de entregar, redução de impostos, aumento de alguns benefícios do Estado, de alguns salários, o que poderia ajudá-lo um pouco, mas também é responsável por esta economia catastrófica que a Argentina tem.

AVRITZER – Praticamente fora do padrão pensado pela ciência política, porque é ele que está diretamente no comando.

VOMMARO – Ele é o Ministro da Economia, claro. Pensem qual foi o custo do ajuste no Brasil para a Dilma, teve um custo político muito grande, acho que é sem dúvida uma das causas do impeachment.

AVRITZER – Ou, pelo menos, pela esquerda.

VOMMARO – Que a esquerda deixou de a apoiar tão fervorosamente, que a deixou cair, entre aspas, um pouco. Bem, aqui poder-se pensar que Massa, paradoxalmente, tem muita força para o contexto em que se encontra e para a sua posição nesse contexto. Mas penso que o fato de ser peronista aliado ao kirchnerismo e de ser ministro deste governo são dois grandes obstáculos à conquista de novos eleitores no segundo turno. É por isso que eu penso que é muito difícil para o peronismo saber onde pode encontrar novos eleitores que os aceitem. Pensemos que há 20% dos votos de Bullrich que estarão disponíveis no segundo turno. O discurso do Juntos é um discurso muito anti-kirchnerista, muito baseado na ideia de acabar com o kirchnerismo.

AVRITZER – Isso foi dito no encerramento da campanha do primeiro turno, mais anti-kirchnerista do que anti-Massa, do que anti-Milei. No fim, diz que Milei também tem alguns problemas…

VOMMARO – Penso que Macri, de forma muito maliciosa, mas também muito inteligente, jogou de forma muito ambígua até o primeiro turno, e no último dia, disse: “Eu me libero de toda a responsabilidade ao dizer que apoio Bullrich”, mas disse de uma forma muito fria, por assim dizer, muito tarde. E na carta que enviou aos seus eleitores, ele diz que Milei não tem força para levar a cabo o seu programa, não diz que o seu programa está errado, diz que não tem força para levá-lo a cabo. E que por ter um partido fraco, pode ser infiltrado, ele usa esse termo, pela velha política, por exemplo, Barrionuevo.

AVRITZER – Bullrich também falou sobre isso, há mais peronistas do partido de Milei na Unión por la Patria.

VOMMARO – Então esse eleitor, para que em termos de identidade é muito custoso votar num candidato peronista, eu não vejo como fácil isso acontecer. Para os eleitores que não são fervorosamente não-peronistas ou anti-Kirchneristas é muito complicado votar no ministro das finanças deste desastre. Portanto, eu digo que há muitos obstáculos para Massa obter votos. É realmente uma incógnita pensar nisso, como é que a maioria dos votos de Bullrich pode não ir para Milei ou para o voto em branco.

AVRITZER: Se eleito, Milei chegaria ao fim do seu mandato?

VOMMARO – Penso que Milei eleito terá o paradoxo de precisar de um pouco mais de caos para poder levar a cabo o seu programa. Ou seja, precisará de uma hiperinflação ou algo do gênero para viabilizar o seu programa. E o problema é saber se esse caos não o coloca no meio, diria eu. Portanto, é aí que reside a questão de saber o que é que lhe vai acontecer. Ele vai jogar duro, eu acho, porque não tem outra escolha, e temos que ver se jogar duro não acaba sendo a bola que o levará também.

Em relação ao Juntos por el Cambio, diria que entra numa nova fase, em que os termos do acordo entre as partes têm de ser recontratados, temos de ver o que acontece com o PRO internamente. E o peronismo também está num turbilhão muito, muito complexo em termos socioeconômicos. Mas também é uma coligação quebrada, fraturada. O Kirchnerismo, que tinha sido a espinha dorsal do peronismo nos últimos 20 anos, está muito delimitado. O kirchnerismo está em crise, Cristina Kirchner é mais uma líder em retirada do que qualquer outra coisa; não parece tão claro o que é, se há uma sucessão em jogo ou não. Kicillof parece ser um possível sucessor, mas o kirchnerismo de linha-dura não o quer, existe um conflito interno muito complexo e não é claro como será resolvido. E o próprio peronismo, que está condenado a ocupar finalmente a centro-esquerda, porque o centro já está ocupado, temos de ver se consegue encontrar os recursos para se reinventar no lugar onde a história o colocou. Acho que esse é o seu grande desafio para os próximos anos, com Massa como presidente ou sem.

AVRITZER – Em outras palavras, grandes desafios.

VOMMARO – Grandes desafios para um país que, acho que pelo menos desde 2001, nunca conheceu uma crise tão prolongada e grave, e nunca teve uma sociedade tão revoltada e com tão pouca paciência para esperar que seus políticos resolvam esses grandes desafios.

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