Washington não pode proclamar González
por Manuel Domingos Neto, Roberto Amaral e José Genoino Neto
A política tem sua lógica, nem sempre clara à primeira vista, notadamente em tempo de mudanças radicais.
Está em curso a mais espetacular virada desde a queda de Roma. A supremacia anglo-saxã, imposta paulatinamente desde as circunavegações e revoluções burguesas, busca sobrevida perante a arrancada, até há pouco implausível, de desafiantes poderosos.
Os sinais de hecatombe se anunciam com a exibição de instrumentos de destruição em massa, o cerco à Rússia, a concentração de arsenais em torno da China, o estimulado ressurgimento da capacidade militar da Alemanha e do Japão, a tentativa de naturalização do genocídio em Gaza, os massacres incontáveis e invisíveis de africanos, a ardilosa capacidade de manipulação de comportamentos de indivíduos, sociedades e Estados pelas novas mídias e pelos múltiplos estímulos à bestialidade neonazista.
Ontem à tarde, Washington avisou aos latino-americanos: percam as ilusões de autonomia, domínio da riqueza própria, desenvolvimento integrado, respeito aos direitos humanos, superação de valores racistas e patriarcais, reconhecimento de povos originários e vida social em harmonia com a natureza: nada disso nos interessa, o mundo é dos fortes e nós somos os fortes. Washington não se move por nossos interesses.
Anthony Blinken, em outras palavras, encarnou a religiosidade consagrada em 4 de julho de 1776, segundo a qual o novo país seria terra da promissão e, por mandato divino, surgira para dominar o mundo. Encarnou também o recado de Monroe, emitido em 1823, segundo o qual ninguém d’além-mar se metesse em terras americanas.
Pleno de autoridade, Blinken declarou encerrada as eleições na Venezuela e proclamou eleito Edmundo González. Santificou os baderneiros à soldo de golpistas, atribuindo-lhes a condição de cidadãos de bem. Exigiu que as forças da lei não reprimissem o quebra-quebra terrorista.
Diante de um governo venezuelano envolto em procedimentos eleitorais demorados e de líderes latino-americanos demasiado prudentes, para não dizer desavisados, Washington atribuiu-se poderes de junta eleitoral no país que abriga a maior reserva de petróleo do mundo, projeta-se sobre o Atlântico e o Pacífico e é porta de entrada para a Amazônia.
Anthony Blinken ungiu-se da condição de porta-voz do povo venezuelano e da “comunidade internacional”. Ditou regras para “uma transição transparente” do poder na Venezuela. Com uma penada, jogou ao córner tratativas de entendimento com os maiores países latino-americanos: Brasil, México e Colômbia. Deixou três respeitáveis líderes democratas na condições de atores irrelevantes.
Trata-se de intervenção direta, sem meneios.
A arrogância desmesurada acaba prestando serviços aos latino-americanos: alerta os crédulos na profissão de fé democrática dos candidatos a donos do mundo.
Não há grandes novidades no processo vivido pela Venezuela. Muitos imaginavam que a lisura das eleições seria o grande objetivo de Washington. Preferiam esquecer o longo rol de intervenções que, desde o século XIX, impossibilitaram o exercício efetivo da soberania, a estabilidade política, o desenvolvimento socioeconômico, as reformas sociais e a integração latino-americana. Depositaram fé em bons propósitos de quem se acredita credenciado por Deus a organizar a vida no Planeta.
Os democratas e reformistas sociais latino-americanos estão diante de duas opções: acatar a sina de colono submisso ou rejeitar a vontade imperialista. Não se trata de apoiar ou rejeitar Maduro ou Gonzáles. Trata-se de defender a soberania venezuelana e, por extensão, a soberania dos países latino-americanos, lembrando que nenhum deles pode se defender sozinho.
Não se trata, ainda, de simpatizar ou não com programas governamentais que afetem a vida do povo venezuelano, eternamente saqueado pelo Império. Trata-se simplesmente do direito de cada Estado definir com autonomia suas políticas públicas e erradicar de vez a condição de Washington de xerife e tribunal do mundo.
A carência de petróleo de Washington não pode ser resolvida através da guerra. Aliás, a guerra amplia desmesuradamente tal carência. A ordem mundial será digna quando as práticas de pilhagem forem substituídas por negócios vantajosos para as partes interessadas. Essa proposição se choca com a experiência histórica, mas não podemos deixar de sonhar com um mundo de paz.
Não existem perspectivas alvissareiras para a América Latina sem a formação de uma grande corrente que conjugue a luta contra o imperialismo com a luta pela democracia e por reformas sociais. A integração de esforços da América Latina não pode ser postergada.
Não vivemos numa ilha isenta das turbulências planetárias. Podemos entrar subitamente no olho do furacão provocado pela mudança da ordem mundial. As pretensões de Washington estão nos conduzindo neste sentido. É hora de nosso subcontinente tomar decididamente partido contra a presunção da unipolaridade.
A política tem lógica e a intervenção estadunidense na Venezuela escancara as pretensões imperiais dos Estados Unidos. Washington não tem direito de proclamar González presidente da Venezuela.
Defendendo o povo e o Estado venezuelano, defenderemos os povos do mundo.
O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected]. O artigo será publicado se atender aos critérios do Jornal GGN.
“Democracia é coisa frágil. Defendê-la requer um jornalismo corajoso e contundente. Junte-se a nós: www.catarse.me/jornalggn “
Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.
Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.
O posicionamento de certos intelectuais, jornalistas, e progressistas diante do que ocorre na Venezuela chama a atenção. Não cabe citar nomes. Aqueles(as) que visitam espações como o GGN sabem a quem me refiro. Inacreditável que pessoas que se dizem de “esquerda” apoiem a ditadura de Nicolás Maduro. A retórica anti-imperialista parece perturbar a capacidade de raciocínio, mas é incapaz de esconder a militarização do país, o êxodo de cerca de 20 por cento da população (seriam extremistas de direita?), a violência desmedida contra aqueles que não concordam e protestam. Os defensores do regime de Maduro não querem enxergar que o que ocorre no país vizinho é o mesmo que ocorreria no Brasil se o golpe tentado por Bolsonaro e seus cúmplices tivesse sido bem sucedido. Afinal, não houve aqui a cooptação das Forças Armadas, cujos integrantes e familiares ocuparam milhares de cargos em comissão durante o mandato das trevas? Hoje mesmo, não há na página do GGN um artigo dizendo que o regime de Maduro é uma nova forma de democracia? O próprio ditador disse em alto e bom som: já prendemos dois mil manifestantes! Enquanto isso, Lula manda os opositores recorreram à Justiça. Qual seria? A justiça de deus? Lula talvez pense que vai ter alguma influência nas decisões desse criminoso. Não terá nenhuma. Talvez pense que é um Maquiavel do século XXI. Talvez se considere um novo Guia Genial dos Povos. Vai acabar mesmo é como capacho de um bandido. Com essas declarações canhestras, Lula apenas leva água ao moinho da extrema direita brasileira. Não percebe isso? Ou talvez pense que as pretas e pretos, o povo nordestino, os mais pobres que o elegeram pela terceira vez não tenham capacidade de pensar. Pode ser. Os argumentos daqueles que apoiam Maduro são parecidos com os empregados pelo regime stalinista na antiga URSS: infiltrados fascistas, sabotadores, agentes do imperialismo, etc. Pergunto, por fim: o que leva o PT, Lula, e setores da esquerda a apoiar essa ditadura: ignorância, falta de capacidade intelectual, uma mentalidade autoritária, má-fé? Claramente, não cabem as duas primeiras possibilidades. Fiquemos com as duas últimas: um saudosismo do stalinismo (os bigodes não se parecem?), personalidades autoritárias ou o mais deslavado cinismo. No grande livro 1984, um dos lemas do Partido não era esse: GUERRA É PAZ – LIBERDADE É ESCRAVIDÃO – IGNORÂNCIA É FORÇA ? Atenção, Orwell não era um “esquerdista gourmet”. O pior de tudo é empregar as palavras socialismo e esquerda para defender facínoras. O pior cego não é aquele que não quer ver. É aquele que fura os próprios olhos.