Análise

Descolamento do Brasil frente à Argentina, por Fernando Nogueira da Costa

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por Fernando Nogueira da Costa*

Estima-se a economia brasileira produzir um PIB por Paridade do Poder de Compra em cerca de US$ 3 trilhões, colocando-a em 8º lugar no ranking mundial. Nesse indicador, considerando o real poder de compra em bens e serviços de cada país, o da economia argentina se aproxima de US$ 900 bilhões.

O PIB PPC Per Capita o divide pela população. Esse indicador do poder de compra médio da população mostra a menor qualidade de vida do povo brasileiro. Como US$ 14.100 / ano é uma média aritmética e há enorme concentração de renda no país, a renda mediana está bem abaixo dessa média per capita. O da Argentina é US$ 19.700.

A população brasileira está atingindo 215 milhões pessoas, sétima no mundo e metade da população sul-americana, enquanto a argentina ultrapassa 46 milhões. Ultrapassa 10% da continental.

O Brasil tem o 5º. maior território no mundo (8,5 milhões Km2). Possui 48% do território continental. A Argentina tem o segundo tamanho na América do Sul (2,8 milhões Km2) ou 15,7% dela. Os dois países representam quase 2/3 do território total sul-americano.

No ranking mundial, entre os dois vizinhos se colocam a Austrália (7,7 milhões Km2) e a Índia (3,3 milhões Km2). O Brasil é menor face à Rússia (17 milhões Km2), Canadá (10 milhões Km2), Estados Unidos (9,8 milhões Km2) e China (9,6 milhões Km2).

Grandes territórios tendem a garantir disponibilidade de recursos naturais. Ambos os países do hemisfério sul até hoje são esnobados por analistas do norte rico como meros exportadores primários de soja. Será verdade?

A Argentina, no início do século XX, inspirava ditados populares na Europa, como os franceses usavam a comparação: “rich comme un argentine”. Um argentino era em média per capita 29% mais rico comparado a um francês, 14% face a um alemão, três vezes frente a um japonês e cinco vezes em comparação a um brasileiro.

Buenos Aires, em 1913, inaugurou o primeiro metrô da América Latina, 55 anos antes de São Paulo. Era, então, a capital da oitava nação mais rica do planeta.

Os Estados Unidos, em plena Guerra Civil, no ano 1862, promulgaram o chamado “homestead act”, distribuindo terras para colono emigrar do sul confederado e conquistar o oeste americano, exterminando os nativos. Ao contrário, os argentinos optaram por um modelo concentrador de riqueza, vendendo terras a afortunados. Cerca de 30% da população do país era composta por imigrantes europeus.

A Argentina era uma potência agrícola, fruto de terras abundantes e produtivas nos pampas, mas habitados por uma população muito mais pobre se comparada à da metrópole cosmopolita em Buenos Aires. Sua elite, habituada ao consumo de luxo, não capitalizava as empresas não-financeiras para empreendimentos.

Quando comparadas às empresas listadas na bolsa de Chicago, maior bolsa agrícola do mundo, as empresas de Buenos Aires possuíam até 75% menos capital por trabalhador. A produção se dava de maneira extensiva pela expansão da quantidade de terras com exploração dos trabalhadores do campo, cujos proprietários não lá viviam.

No Brasil, devido à EMBRAPA, a tecnologia propiciou novas terras serem cultivadas no Centro-Oeste, o Cerrado brasileiro similar às savanas africanas. Com multisafras e a evolução do maquinário agrícola, desde os anos 90, a vantagem comparativa argentina decaiu.

O PIB brasileiro em 1960 era US$ 188,5 bilhões e o da Argentina, US$ 150,8 bilhões. Em dólares constantes de 2010, segundo The World Bank, o brasileiro em 2020 atingiu US$ 1.749,1 bilhões e o argentino US$ 514,8 bilhões. Em 2014, o brasileiro tinha se multiplicado por 10 vezes com US$ 1.868,5 bilhões. O maior argentino foi US$ 598,8 bilhões em 2017. Multiplicou-se por 4 vezes em relação ao do ano inicial dessa série temporal de 60 anos.

Em Investimento, nesse período de descolamento, o pico argentino foi 30,9% do PIB em 1977. O brasileiro foi 26,9% em 1989. Em 2020, a taxa de investimento no Brasil ficou em 15,4% e a da Argentina 14,0%. A média brasileira nos 60 anos (1960-2020) foi 19,85% do PIB, praticamente, empatando com a argentina: 20% do PIB.

Em Consumo como percentagem do PIB, o pico argentino foi 82% em 1992. O brasileiro foi 78% em 1984. O “fundo do poço” foi em 1989 no Brasil (54%) e em 1976 na Argentina (57%). Em média das últimas seis décadas, o consumo representou 65% do PIB brasileiro e 67% do PIB argentino.

Então, o “descolamento” teria se dado em função da industrialização? A Indústria Geral agrega valor em transformação, construção, extrativa (petróleo e mineração) e serviços de utilidade pública (eletricidade, água e gás).

O Valor Adicionado (Va) é a produção líquida de um setor depois de somar todas as saídas (valor de produção) e subtrair as entradas de insumos (consumo intermediário). É calculado sem fazer deduções por depreciação de bens fabricados ou esgotamento e degradação de recursos naturais.

Apesar da marcante tendência de queda de 50,9% do PIB em 1976 para 23,3% do PIB em 2020, a média do VA da Indústria Geral no PIB da Argentina em 55 anos (1965-2020) foi 34,4% do PIB, ou seja, superior à média brasileira em 60 anos (1960-2020) de 29,6% do PIB. Esse VA industrial brasileiro teve uma evolução nitidamente cíclica: saiu do “vale” em 1960 (28,32% do PIB), para subir até o “pico” em 1984 (46,2% do PIB), e depois declinar acentuadamente até 1995 (23,4% do PIB).

De 1995 a 2014, a média anual baixou para 22,7% do PIB. Piorou mais após o fim da Era Social-Desenvolvimentista: média de 18,5% do PIB. No primeiro ano da pandemia (2020), era 17,7% do PIB.

As formas das curvas do VA da Indústria de Transformação no PIB dos dois países não se diferenciam muito das do VA da Indústria Geral. Por definição, os valores relativos ou percentuais são menores.

Na Argentina, de 41,2% do PIB em 1965 seguiu uma nítida tendência de queda até 15,4% do PIB em 2020. No Brasil, partiu-se de 22,6% do PIB em 1960 para atingir o pico de 34,3% do PIB no ano de 1984, fim do regime ditatorial-militar. No ano final da série (2020), o VA da Indústria de Transformação representou apenas 9,7% do PIB!

Como a “desindustrialização” brasileira é ainda mais grave face à argentina, é necessário pesquisar outros fatores explicativos do “descolamento”.

Quanto à força de trabalho, o pico no Brasil foi atingido em 2019 com 104,38 milhões de pessoas. No mesmo ano, na Argentina, 20,43 milhões de pessoas foi seu máximo, ou seja, 1/5 da brasileira. Demonstra o potencial do Brasil obter maior valor adicionado.

A taxa de desemprego no ano anterior à pandemia foi 11,9% no Brasil e 9,8% na Argentina. Nela, houve dois picos de desemprego: 18,8% em 1995 e 19,6% em 2002. A pior taxa na economia brasileira aconteceu em 2021: 14,4%. Sua média, no período 1991-2021, foi 8,9% e a argentina 11%.

Há um falso debate, exposto quando ao tratar da atividade econômica como um dos componentes de um sistema complexo, emergente de interações entre múltiplos componentes, inclusive instituições financeiras e outras, além de interferência de diversos instrumentos de política econômica e social. Trata-se do engano em buscar uma única causa explicativa da perda de posição de alguns países da “periferia”, outro reducionismo binário ao tratar dessa complexidade com países periféricos tão distintos, embora possam ser vizinhos.

Não podemos reduzir toda a diferença a um problema de estrutura produtiva, como a malfadada “desindustrialização”, ou, alternativa e exclusivamente, um problema de ordem monetário-financeira, como a incompreendida “financeirização”. Nem tampouco ao “imperialismo” norte-americano ou à “hierarquia internacional das moedas”.

Por razão de espaço, continuaremos em outro artigo a exposição de nossa pesquisa dos demais fatores explicativos do descolamento entre a economia brasileira e a argentina.

Por ora, adiantamos uma parte da análise do diferencial financeiro. De 1960 a 2020, a média brasileira crédito bancário doméstico ao setor privado resultou em 41,7% do PIB, mas em um gráfico (veja abaixo) observa-se nitidamente a tendência crescente, em especial após 2003 (27,7%) até 70% do PIB no fim da série. Ocorreram dois “picos fora-da-curva”, em 1989 (127,7%) e 1993 (133,1%). Foram anos durante o Regime de Alta Inflação com experiências de congelamento de preços em vãs tentativas de estabilidade.

No caso argentino, de 1960 a 2017, a média foi apenas 16,4%. Demonstra a precariedade da “função financiamento” em seu sistema financeiro nacional. Lá parece ter havido uma desintermediação financeira. Continuaremos em próximo artigo.


*Fernando Nogueira da Costa é professor Titular do IE-UNICAMP. Autor do livro digital “Liberalismo versus Esquerdismo” (2022). Baixe em “Obras (Quase) Completas”: http://fernandonogueiracosta.wordpress.com/ E-mail: fernandonogueiracosta@gmail.com.

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem um ponto de vista diferente? Mande seu artigo para dicasdepauta@jornalggn.com.br.

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Fernando Nogueira da Costa

Fernando Nogueira da Costa possui graduação em Economia pela Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG (1974), mestrado (1975-76), doutorado (1986), livre-docência (1994) pelo Instituto de Economia da UNICAMP, onde é docente, desde 1985, e atingiu o topo da carreira como Professor Titular. Foi Analista Especializado no IBGE (1978-1985), coordenador da Área de Economia na Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo - FAPESP (1996-2002), Vice-presidente de Finanças e Mercado de Capitais da Caixa Econômica Federal e Diretor-executivo da FEBRABAN - Federação Brasileira de Bancos entre 2003 e 2007. Publicou seis livros impressos – Ensaios de Economia Monetária (1992), Economia Monetária e Financeira: Uma Abordagem Pluralista (1999), Economia em 10 Lições (2000), Brasil dos Bancos (2012), Bancos Públicos do Brasil (2017), Métodos de Análise Econômica (2018) –, mais de cem livros digitais, vários capítulos de livros e artigos em revistas especializadas. Escreve semanalmente artigos para GGN, Fórum 21, A Terra é Redonda, RED – Rede Estação Democracia. Seu blog Cidadania & Cultura, desde 22/01/10, recebeu mais de 10 milhões visitas: http://fernandonogueiracosta.wordpress.com/

Fernando Nogueira da Costa

Fernando Nogueira da Costa possui graduação em Economia pela Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG (1974), mestrado (1975-76), doutorado (1986), livre-docência (1994) pelo Instituto de Economia da UNICAMP, onde é docente, desde 1985, e atingiu o topo da carreira como Professor Titular. Foi Analista Especializado no IBGE (1978-1985), coordenador da Área de Economia na Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo - FAPESP (1996-2002), Vice-presidente de Finanças e Mercado de Capitais da Caixa Econômica Federal e Diretor-executivo da FEBRABAN - Federação Brasileira de Bancos entre 2003 e 2007. Publicou seis livros impressos – Ensaios de Economia Monetária (1992), Economia Monetária e Financeira: Uma Abordagem Pluralista (1999), Economia em 10 Lições (2000), Brasil dos Bancos (2012), Bancos Públicos do Brasil (2017), Métodos de Análise Econômica (2018) –, mais de cem livros digitais, vários capítulos de livros e artigos em revistas especializadas. Escreve semanalmente artigos para GGN, Fórum 21, A Terra é Redonda, RED – Rede Estação Democracia. Seu blog Cidadania & Cultura, desde 22/01/10, recebeu mais de 10 milhões visitas: http://fernandonogueiracosta.wordpress.com/

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