Eutanásia sem Câmaras de Gás, por Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva

Independentemente do nome que se dê ao movimento que pretende deixar a “sociedade mais forte”, tentar fortalecer a sociedade pelo desamparo é contraditório em essência.

Eutanásia sem Câmaras de Gás

por Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva

                Alguns meses atrás, numa rede social, ouvi que “Os benefícios sociais deixam a sociedade mais fraca”. Trata-se de um amigo que conheço desde o nascimento, cujos pais eu prezo do mais fundo de meu coração. Fiquei estarrecido, depois lembrei que ele estudou na mesma universidade para qual o atual ministro da educação serviu como reitor. Sim, este que disse que crianças com deficiência, em sala de aula, atrapalham o rendimento dos demais alunos. Em 1968, essa mesma universidade protagonizou o que se chamou de “Guerra da Maria Antônia”, quando, juntamente com o CCC (Comando de Caça ao Comunista), promoveu-se um embate contra estudantes da USP. Hoje, o mesmo estabelecimento mantém um departamento chamado “Liberdade Econômica”, que defende o anarco-capitalismo. Trata-se da assunção de uma posição política em que é a lei do mais forte que deve vigorar, doutra forma, rechaçar políticas sociais que visem a dar oportunidades iguais a todos não faria o menor sentido. O problema é que se trata de uma visão equivocada em essência,

                Para nossos índios, há o entendimento tradicional de que uma pessoa, que não se consiga  manter sozinha na floresta, deve ser descartada à nascença. Claro que isso já não é usual, mas o conceito atávico ainda persiste em várias de nossas etnias. Os espartanos atiravam de um penhasco todas as crianças que tinham alguma deficiência congênita. Os romanos criaram o termo “expor” para o ato de lançar os bebês indesejados na Cloaca Máxima de Roma. Numa sociedade em que o butim era fonte importante de recursos, em que as guerras se travavam com os músculos, filtrar os fracos para que sobrem os forte faz sentido. Ocorre que que a sociedade humana foi ficando mais intelectual e as máquinas assumiram o lugar de tendões e músculos , seja na paz, seja na guerra. Isso aumentou a oferta de alimentos e o ser humano passou a dar-se ao luxo de não matar bebês cegos, surdos, com deficiências intelectuais, motoras, ou por questões simplesmente estéticas.

                O avanço da Medicina, por sua vez, fez com que muitas pessoas com deficiências fatais passassem a sobreviver, aumentando ainda mais a presença do que, primitivamente, seria indesejado. A mesma Medicina aumentou a expectativa de vida, elevando o número de idosos em relação à população em idade laboral. Todos esses eventos impulsionaram alterações fundamentais na visão que o capitalismo tem da massa de consumidores. Pessoas com deficiência e idosos consomem, portanto, empregam, consequentemente, dão lucro. Dessa forma, rechaçar os programas sociais é, antes de tudo, uma contradição ao próprio sistema econômico que um anarco-capitalista, ou um pretenso libertário, alegam defender.

                A indústria voltada à mitigação de deficiências não é nova. Nasceu com o primeiro cajado a sustentar um velho ou um coxo. Tornou-se mais elaborada com a introdução dos óculos na Idade Média, quando ainda se chamavam de “vitra ad legendum) (vidros para leitura). Muitas vezes, assumiu uma face cruel, como em “Os Miseráveis” de Victor Hugo, quando a protagonista vende seus dentes para alimentar sua filha. Importante é ter em mente que alguém sempre ganhou dinheiro com isso, da mesma forma com que fabricantes de armas ganham dinheiro com a morte.

                A eugenia, surgida na França do século XIX, ganhou ares de ciência no primeiro quartel do século XX nos Estados Unidos, sendo absorvida pelo nazismo e levado ao extremo por Hitler, com seus campos de eutanásia, onde morreu a bisneta de D. Pedro II em 1943. Ela, independentemente da ascendência nobre, por ser “desequilibrada” não merecia viver.

                A rigor, rechaçar os programas sociais tem efeito extremamente semelhante ao dos campos de eutanásia. Não se matam os “inválidos”, que deram nome a um bairro de Paris, em câmaras de gás. Faz-se pior, corta-se lhes o sustento, eliminam-se as compensações para que sigam competindo em condições de igualdade, expulsam-nos do convívio, jogam-nos na indigência.

                Independentemente do nome que se dê ao movimento que pretende deixar a “sociedade mais forte”, tentar fortalecer a sociedade pelo desamparo é contraditório em essência. O que deixa a sociedade mais forte é ter laços fortes. É o indivíduo saber desde sempre que a sociedade está do seu lado nas três fases que compõem a vida humana. Durante o período de formação, dando-lhe meios para tornar-se competitivo; durante sua vida laboral, permitindo que compita em pé de igualdade com os demais; na velhice, pelo suprimento digno de suas necessidades.

Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva é economista, estudou mestrado na PUC-SP, é pós-graduado em Economia Internacional pela Columbia University (NY) e doutor em História Econômica pela USP. No terceiro setor, sendo o mais antigo usuário vivo de cão-guia, foi o autor da primeira lei de livre acesso do Brasil (lei municipal de São Paulo 12492/1997), tem grande protagonismo na defesa dos direitos da pessoa com deficiência, sendo o presidente do Instituto Meus Olhos Têm Quatro Patas (MO4P). Nos esportes, foi, por mais de 20 anos, o único cavaleiro cego federado no mundo, o que o levou a representar o Brasil nos Emirados Árabes Unidos, a convite de seu presidente Khalifa bin Zayed al Nahyan, por 2 vezes.

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN

Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva

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