O terraplanismo que submete o país aos acionistas da Petrobras, por Luis Nassif

Aí talvez parem de encarar o bolsonarismo como acidente de percurso e entendam que é filho direto das teorias que desmontaram qualquer resquício de solidariedade e, das quais, eles são meros arautos e repetidores de bordões.

Na UOL, é anunciado “entrevista exclusiva” com o ex-presidente do Banco Central Gustavo Loyola. No jornalismo, o “exclusiva” é palavra reservada para eventos “exclusivos” relevantes. Por exemplo, uma entrevista com o presidente do Banco Mundial, com o líder dos democratas no Congresso americano. Loyola é uma das fontes mais ouvidas pela mídia há 20 anos.

E o que ele diz? Subsidiar gasolina é dar dinheiro público para rico. Em O Globo, Mirian Leitão repete o mesmo bordão. E o mesmo bordão é repetido na CNN pelo conservadorismo ilustrado de William Waack e pelo conservadorismo tosco de Boris Casoy. Já a jornalista de mercado diz que quem propõe segurar os preços dos combustíveis não entende das leis do mercado, como se o mercado fosse regulado por leis científicas, independentemente das circunstâncias. E o procurador do Ministério Público denuncia o governo, por tentar interferir nos preços da Petrobras. E, como leitor atento dos jornais, o vice-presidente general Hamilton Mourão faz ar grave e pontifica: “Mexer nos preços provocará desastres posteriores, que já conhecemos”.

É um besteirol continuado. E porque besteirol? Porque ignoram – por ignorância ou por malícia – outras leis verdadeiramente essenciais, de mercado e de políticas públicas.

Antes, vamos dar um pequeno mergulho na retórica desenvolvida por seguidores de Ludwig Von Mises para combater os críticos dos abusos de mercado.

A lógica do mercado

O trabalho  “O viés cognitivo por trás das leis anti-explosão de preços – análise”, de Patrick Carrol dá uma boa pista sobre os argumentos dos nossos mercadistas.

É um roteiro para os seguidores de Von Mises rebater as críticas contra altas repentinas de preços.

Segundo o autor, a reação das pessoas se deve ao “viés do status quo”, uma “preferência infundada pelo estado atual das coisas e, portanto, uma aversão irracional à mudança”.  O que equivaleria dizer que a jovem que reage ao estupro se move por uma “aversão irracional à mudança”.

Por mais terraplanista que seja, a tática de Carrol é seguida à risca pelos mercadistas brasileiros, de acordo com uma receita simples:

“A ideia de que os sentimentos anti-exploração de preços podem estar enraizados no viés do status quo é uma teoria promissora. Se pudermos provar que esse é o caso, podemos mostrar que as objeções a aumentos repentinos de preços são realmente irracionais. Em suma, podemos desmascarar o argumento anti-exploração de preços”.

Ele propõe, então, o que denomina de “teste de reversão”.

“Quando uma proposta para alterar um determinado parâmetro é considerada como tendo consequências gerais ruins, considere uma alteração no mesmo parâmetro na direção oposta. Se isso também for considerado como tendo consequências gerais ruins, então o ônus recai sobre aqueles que chegam a essas conclusões para explicar por que nossa posição não pode ser melhorada por meio de mudanças nesse parâmetro”.

O combate aos cartéis

Por exemplo, uma companhia como a Petrobras tem poder de definir preços em mercado. Comanda um cartel, um quase monopólio, com poder de fixar preços.

Ela produz todo petróleo que utiliza ou vende. Segundo o ex-presidente José Gabrielli, o custo final de extração, pela Petrobras, é de 30 dólares – incluída, aí, a margem de lucro de uma empresa normal. Quando as cotações internacionais saltam para US $120,00, ela passa a remunerar toda sua produção por um valor 4 vezes maior, à custa dos consumidores.

Seu lucro não reverte para ela: foi totalmente distribuído para os acionistas, grande parte dos quais é estrangeiro.

Em qualquer economia de mercado civilizado, a empresa seria alvo de sanções e limites por parte dos órgãos reguladores. O conceito de cartel é combatido nos Estados Unidos desde os tempos iniciais da Standard Oil. No Brasil, essa regulação é exercida pelo Conselho Administrativo de Direito Econômico (CADE).

Por que, então, Loyola, Leitão, Waack, Casoy, toda a imprensa financeira e e o procurador do MP, insistem na intocabilidade dos preços da Petrobras, tratando como prioridade única a defesa dos acionistas?

Casoy e o procurador provavelmente por ignorância; os demais, por tática discursiva. Ao ignorar o conceito de cartel, e de abuso de poder econômico, eles ficam mais à vontade para defender sua bandeira principal: os interesses do mercado financeiro.

E a tática é a teoria da reversão.

Há uma literatura centenária sobre cartéis. Mas todos eles invocam – como o anti exemplo – o período de compressão dos preços por Dilma Rousseff, 

Na época, a Petrobras foi afetada por:

  1. Queda drástica nos preços internacionais do petróleo.
  2. Campanha negativa massacrante da Lava Jato, expondo a empresa a ações judiciais nos Estados Unidos, alimentadas pela própria Lava Jato,

No mesmo período, a empresa lançou debêntures perpétuas na praça de Nova York, com uma demanda 4 vezes superior à oferta – maior comprovação da solidez da empresa. Mesmo assim, criou-se a lenda de empresa quebrada, alimentada principalmente pelo sistema Globo. E o argumento central da teoria da reversão foi o controle de preços no período Dilma.

A segurança nacional

É de uma obviedade assustadora a constatação de que governos têm a obrigação de interferir em situações que afetam a segurança nacional.

Uma alta dos combustíveis tem as seguintes implicações sobre o país:

  1. Efeitos sociais, já que impacta diretamente as famílias de menor renda, na alimentação (gás de cozinha), no transporte público. E tem impacto indireto no preço dos alimentos e dos produtos básicos.
  2. Desarticulação de áreas críticas. Uma delas, o transporte de mercadorias, dos caminhoneiros. Outra, dos aplicativos de transporte, que foram uma válvula de escape para o desemprego.
  3. Competitividade da economia. Trata-se de um preço que impacta a estrutura de custos de toda a produção industrial brasileira.
  4. Segurança nacional. Uma crise de combustíveis para o país.
  5. Impacto na inflação, nas taxas de juros da economia, encarecendo rolagem da dívida pública, aprofundando a crise econômica.

Mesmo assim, a mera possibilidade de uma intervenção pública no mercado de combustíveis provoca um alarido dos “especialistas”. Colocam a tal lógica de mercado acima das responsabilidades constitucionais do governo. E invoca-se o argumento padrão para a teoria da reversão, o período Dilma.

Progressividade e regressividade

Progressividade e regressividade são dois conceitos econômicos para qualificar medidas em relação às disparidades de renda. 

Um conceito básico de direito tributário é que as políticas tributárias devem ser progressivas – isto é, taxar proporcionalmente mais quem ganha mais.

A lógica é simples. Os primeiros reais de ganhos das pessoas são utilizados para atender às necessidades básicas de sobrevivência. A partir desse limite, os ganhos restantes vão para consumo não essencial, para consumo conspícuo, ostentatório, poupança etc.

Como os gastos essenciais representam um percentual inversamente proporcional à renda – quanto maior a renda, menor o percentual comprometido com gastos essenciais -, o conceito de progressividade é aplicado assim: alíquotas menores para os primeiros reais de rendimento de todos os contribuinte, e progressivamente maiores para os reais seguintes.

O sistema fiscal brasileiro é essencialmente regressivo, taxando mais quem ganha menos. E essa regressividade se baseia essencialmente na concentração em impostos indiretos – os que são cobrados sobre bens e serviços. Quando se tributa um medicamento, rico e pobre passam a pagar imposto no mesmo valor nominal. Mas a proporção sobre os rendimentos do pobre é, por definição, muito maior do que sobre os rendimentos superiores.

Por isso mesmo, alta de combustíveis é movimento regressivo – porque atinge proporcionalmente mais quem ganha menos. Na ordem inversa, uma limitação da alta beneficiará proporcionalmente mais as pessoas de baixa renda do que as de alta.

No entanto, seguindo a máxima repetida monocordicamente pelo grupo, controlar o preço dos combustíveis significará beneficiar os ricos com o dinheiro público.

Aliás, qualquer medida que possa beneficiar o conjunto da população é taxada depreciativamente como “populismo”, por ir contra as leis de mercado.

Conclusão

Esse besteirol continuado obedece a uma lógica de mercado, que está na raiz da desmoralização do modelo de democracia pós-guerra e na expansão da ultra direita e da intolerância pelo mundo.

Mas os defensores dessas teses são pessoas do bem, a favor do meio ambiente, do combate genérico à miséria. E acreditam que todas essas bandeiras dependem da preservação do lucro absurdo dos acionistas da Petrobras.

Nenhuma solução bancada pela turma coloca o menor risco para os ganhos dos acionistas. O que já se aventou como saída:

  1. O governo utilizar os dividendos recebidos por ele, governo, para subsidiar os consumidores de baixa renda. Ou seja, retirar dinheiro do orçamento para não mexer nos dividendos privados.
  2. Usar os roylaties do petróleo para os subsídios, retirando recursos destinados à educação e à saúde.
  3. Mexer no ICMS dos estados, cuja destinação é preferencialmente para saúde e educação.

Uma maneira de entender, de perto, o embromation desse pessoal é o próximo livro de Luiz Felipe Miguel, “Democracia na Periferia Capitalista”. Miguel procede a um levantamento crítico dos melhores sobre o avanço da ciência política para decifrar o enigma da falência das democracias, a partir do observatório Brasil.

Se a “turma” ler o livro, se verá descrita em cada etapa, no vezo de que pobres são classes ignaras, sem direito de participar de governos de especialistas. Ou a maneira como foi desenvolvido o “populismo” como conceito depreciativo de qualquer benefício endereço às populações de menor renda. Ou ainda, o avanço da ordem neoliberal, o primado do estado da dívida – no qual os governos respondem aos credores, e não aos eleitores -, o controle da opinião pública, tornando os núcleos decisórios do Estado praticamente impermeáveis às demandas populares.

Aí talvez parem de encarar o bolsonarismo como acidente de percurso e entendam que é filho direto das teorias que desmontaram qualquer resquício de solidariedade e, das quais, eles são meros arautos e repetidores de bordões.

De Gilberto Bercovici

Caro Nassif, tudo bem? Li o seu texto e tenho um pequeno reparo, se você me permitir.

Você afirma a certa altura: “Por exemplo, uma companhia como a Petrobras tem poder de definir preços em mercado. Comanda um cartel, um quase monopólio, com poder de fixar preços”. A Petrobras define os preços porque exerce, em nome da União, um monopólio constitucional (artigo 177 da Constituição), não um cartel. O monopólio do petróleo é um monopólio determinado pela Constituição e pela lei, não é um monopólio proveniente da concentração capitalista ou do abuso do poder econômico. Por esse motivo está fora da esfera de competências do Cade. O Cade não tem competência no setor petrolífero, à exceção da distribuição de combustíveis, pois todas as demais etapas da indústria do petróleo e do gás são monopólio da União.

É por isso que os conselheiros do Cade cometeram uma flagrante ilegalidade ao promover o acordo com a Petrobrás para a venda das refinarias. O acordo é nulo, o artigo 177 da Constituição e a própria Lei do Petróleo (Lei 9478, de 1997, do FHC) determinam todas essas atividades como monopólio exclusivo da União. O que mudou com a Emenda 9, de 1995, foi a obrigatoriedade da União ter que atuar por intermédio de uma empresa estatal (a Petrobrás), possibilitando-se que a União, caso tenha interesse, conceda a exploração das várias atividades do setor para empresas privadas. O monopólio do petróleo continua existindo, continua previsto no artigo 177 da Constituição e a legislação antitruste não se aplica às suas atividades nem à Petrobrás enquanto executora destas atividades em nome da União.

Um abraço, Gilberto

Luis Nassif

1 Comentário

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador