Pilhagem e repatriação (1), por Walnice Nogueira Galvão

Essa é uma longa história, de injustiças sem par, de holocaustos e de genocídios.

Pilhagem e repatriação (1)

por Walnice Nogueira Galvão

Em gesto simbólico, o sabre cerimonial do xeque El Hadji Omar Tall foi repatriado agora em Dacar, Senegal, pelo premiê francês, que o depositou nas mãos do presidente senegalês. Junto à arma do líder das guerras anticoloniais seguiram mais 26 peças do Museu de Branly, de Paris. No auge das campanhas pela descolonização, o recém-criado Museu das Civilizações Negras em Dacar está encabeçando as reivindicações pela devolução do muito que foi pilhado pelas potências europeias após a Partilha da África na conferência de Berlim, em 1884. Desde que o imperialismo sem peias se apoderou do continente, estima-se que 90% da arte africana foram expatriados.

É quando surgem os museus etnográficos especializados, ou departamentos dentro de museus pré-existentes, por toda parte na Europa. Datam dessa época as “exposições coloniais”, que exibiam uma espécie de zoo africano, mostrando num cercadinho exemplares humanos vestidos a caráter. Como não fechavam no inverno, era comum que os expostos morressem de frio.

Essa é uma longa história, de injustiças sem par, de holocaustos e de genocídios.

O museu de Tervuren, nos arredores de Bruxelas, tem a reputação de ser o maior museu africano do mundo, com suas 20 galerias e 200 mil peças. Perpetua a lembrança do mais tremendo holocausto, calculado em 6 milhões de pessoas, no Congo Belga, colônia particular do rei Leopoldo II.  A colônia era 84 vezes maior que a metrópole. De passagem, também mataram 80 mil elefantes, apenas para extrair as presas. Se os nativos não cumprissem as cotas, primeiro de marfim, depois de borracha, tinham a mão direita decepada. Há fotos tiradas por missionários de africanos sem mãos junto a mãos amontoadas.

Na inauguração do museu em 1898, foram comboiados 267 congoleses que ficaram vivendo num simulacro de aldeia, ao ar livre, com sua indumentária original, dos quais 7 morreram de frio. Agora cerrou as portas por 5 anos enquanto passava por uma reorganização, incluindo assessores africanos. Segundo porta-vozes,  o alvo da reforma foi abrir mão da propaganda imperialista para tornar-se um museu de vanguarda, com objetivos didáticos, crítico do colonialismo, contando a narrativa de sua própria constituição e sem esconder o que os belgas fizeram aos africanos.

Quem viu o museu antes  da reforma não esquece o  choque sentido.  O renomado O coração das trevas, de Joseph Conrad, é a mais terrível peça de acusação ao colonialismo, no caso, belga. Depois inspirariao filme Apocalypse now, transferindo a ação para o Vietnã, então invadido pelos Estados Unidos.

Outros museus de relevância são o Etnológico de Berlim, com 500 mil objetos, esse número incluindo China, Oceania e Ásia. O British tem na reserva técnica 350 mil objetos da África/Oceania/Américas, sendo a maioria de proveniência africana.  O Museu do Quai de Branly, hoje chamado de Jacques Chirac, o presidente que o idealizou, é bem mais recente. Intitulado de “Arts Prémiers”, reúne acervos africanos de outros museus.

Dois recentíssimos documentários tratam da questão da pilhagem e repatriamento, podendo ser vistos na TV5 Monde. São eles:  Restituer? L´Afrique en quête de ses chefs-d´oeuvre (dir. Philippe Nora, 2021) e Restituer l´art africain, les fantômes de la colonisation (dir. Laurent Védrine, 2021). Trazem numerosas entrevistas com gente ligada ao tema, tanto na África quanto na Europa, inclusive com uma integrante da comissão que deu parecer ao presidente Emmanuel Macron. Argumentam que um dos pivôs da querela é uma estátua que fica no Louvre, representando o deus Gu, um dos reputados bronzes do Benin. Escreveram a seu respeito ninguém menos que Apollinaire e Le Corbusier, enquanto Picasso viu ali um modelo. Todos sabem do impacto da chose nègre entre os modernistas: lá está Picasso pintando máscaras africanas nas Demoiselles d´Avignon.

Em iniciativa inédita – e dando o bom exemplo – o presidente  Macron, em 2017, em público, prometeu que em cinco anos tudo que a França saqueara seria devolvido. Isso, após ter encomendado um relatório a uma comissão de experts europeus, que concluiu por recomendar a devolução. É o primeiro chefe de estado a tomar posição oficialmente e é ver a celeuma que causou.

Walnice Nogueira Galvão é Professora Emérita da FFLCH-USP

Walnice Nogueira Galvão

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