A Amazônia pronta para servir é o fim da Amazônia, por Luis Fernando Novoa Garzon

Não é possível abstrair a pilhagem da Amazônia do cenário de agudização da crise internacional, simultaneamente financeira e comercial.

A Amazônia pronta para servir é o fim da Amazônia

por Luis Fernando Novoa Garzon

Ao longo dos últimos 50 anos, a região amazônica, em sua porção brasileira, foi sendo acossada por dinâmicas de incorporação compulsória: a) de caráter governamental-geopolítico (Projeto de Integração Nacional – PIN, Projeto Calha Norte, Sistema de Vigilância da Amazônia; b) de caráter governamental-empresarial: Eixos Nacionais de Integração e Desenvolvimento – ENIDs, Implementação de corredores de exportação contidos no Programa de Aceleração do Crescimento – PAC e no Programa Integrado de Logísitica – PIL; c) de caráter não-governamental e/ou multilateral (Programa Piloto para Proteção das Florestas Tropicais – PPG7, Iniciativa para Conservação da Bacia Amazônica – ABCI, entre outros). Essas dinâmicas invariavelmente menosprezaram encadeamentos econômicos intrarregionais duradouros e compromissos com a singularidade cultural, com o bem-estar da população amazônida e  com o protagonismo das comunidades tradicionais.

Esta panóplia de iniciativas expressa distintos projetos, interesses, experiências e imaginários. São “Amazônias”, como frisou Carlos Walter Porto-Gonçalves, que resultam do entrechoque e convivência de formações sociais e espaciais diferenciadas: áreas de conservação, áreas de uso sustentável, reservas extrativistas, terras indígenas, assentamentos rurais, terras de quilombos, áreas de posse tradicional de ribeirinhos e de agroextrativistas, áreas de posse recente de migrantes das últimas décadas,  territórios empresariais, pequenas e médias cidades, regiões metropolitanas. Não se trata aqui do arrolamento de diversidades territoriais fixadas, mas sim de identificar tensões territoriais continuadas e que podem gerar desenlaces, seja em direção a uma maior homogeneidade funcional-mercantil, seja em direção a uma maior pluralidade socioeconômica.

Não é possível abstrair a pilhagem da Amazônia do cenário de agudização da crise internacional, simultaneamente financeira e comercial. Acordos setoriais entre conglomerados de soja, carne, ferro e energia têm origem ou incidência em constelações geoeconômicas e políticas. O arroubos de Governos da União Europeia e advertências do G7, sinalizando cortes de ajuda internacional e sanções comerciais, evidenciam uma tentativa de reenquadramento dos estoques de capital natural disponíveis no mundo, contabilizados nos termos dos regimes climáticos do Acordo de Paris. A União Europeia, em seu Acordo com o Mercosul,  reforça a especialização regressiva do bloco em commodities, tendo a Amazônia como principal “estoque”, sem que haja qualquer tipo de proposição para fazer compartilhar avanços tecnológicos que seriam característicos de uma “4ª revolução industrial” ou de uma “sociedade do conhecimento”.

Exploração incondicionada ou autorregulada parece ser o dilema permitido entre os que promovem ou admitem a instrumentalização da Amazônia. O que continua em jogo é o livre trânsito para apropriações de riqueza em bloco, seja nos territórios, seja nos fundos públicos. O sinal verde para devastação negocia com o sinal amarelo as condicionalidades e salvaguardas para que a acumulação prossiga célere e esverdeada. É muito barulho só para garantir minoração de danos ou para manter a obtusidade desse modelo dissimulada. 

O problema não são apropriações e privatizações “selvagens”, mas civilizadas demais, por isso apresentadas como necessárias e inevitáveis. O aumento vertiginoso do desmatamento seguido de queimadas na Amazônia, nos meses de julho e agosto de 2019, pode ser interpretado como um teste do que pode e do que não pode ser feito na região. Como a concepção de injustiça depende do nível de tolerabilidade que vigore num dado arranjo societal, a tolerância frente à injustiça e os danos socioambientais se torna um exercício de renovação da desordem organizada. 

É notório o estrago produzido por décadas de desregulamentação dos setores especializados em recursos naturais, mas reverter esse desmanche está fora de pauta no país das commodities. No brinde e na reverência aos investidores que sustentam o país pelo cangote, parece não haver divergência. Intercambiaram-se de tal modo os papéis e funções entre licenciadores e empreeendedores que já praticamente não se distinguem. Ao final, tem-se um bloco de poder interescalar móvel, descolado e desaforado que é resultante das alianças entre segmentos de conglomerados em competição e burocracias políticas capturáveis. 

 O arranjo territorial concebido para a região como um mosaico de terras protegidas em meio de corredores de ocupação que respeitassem o marco do zoneamento econômico-ecológico já não cabe nem mesmo como marco lógico. O brutal ajuste espacial imposto à Amazônia está agora sendo acompanhado por um “ajuste institucional” que normaliza e programa a extinção da região. 

A meta conjugada é regularizar o vale-tudo para os setores dedicados a commodities com a varredura e sabotagem dos últimos intrumentos de efetivação de direitos territoriais e de normativas ambientais. A Amazônia se tornou o palco preferencial de sacrifícios que servem para solidificar acordos entre esses agentes. Para converter a Amazônia em um não-lugar, guerra total e assimétrica não basta para descrever o que será preciso. Não vai ser possível calcular quanta dor se acumulará nas dobras dos próximos dias, meses, anos, para que finalmente terra e territórios nus se rendam, amortecidos, à exploração compulsória do agronegócio, da hidroeletricidade e da mineração. 

Exemplo disso é o projeto Barão do Rio Branco que faz uso de um simulacro de ideologia de segurança nacional para disponibilizar aos “bons parceiros” novas levas de rios, terras e jazidas minerais na Amazônia. Trata-se de um subproduto do alinhamento incondicional do bolsonarismo à potencia militar norte-americana para destravar negócios inaceitáveis com bens públicos. Esta é a utilidade total e o valor de troca do pseudonacionalismo: embalar um pacote de grandes obras estratégicas somente para um conjunto apátrida de capitais.

O projeto teve sua formatação civil-empresarial abortada para posteriormente se disseminar em sua versão paramilitar-empresarial. Depois de entregar a Amazônia a toda sorte de intervenções desfiguradoras, revindicar soberania formal sobre a região soa a artimanha de leiloeiro interessado em oficializar os próximos lances. Se a cortina de fogo  que percorreu os principais eixos de expansão dos setores de commodities na Amazônia foi uma sinalização de acordos tácitos entre grupos empresariais, grupos políticos e suas milícías entrelaçadas, o projeto assumidamente aloprado anuncia explicitamente que quer integrar para entregar. 

Luis Fernando Novoa Garzon – Professor da Universidade Federal de Rondônia. Doutor em Planejamento Urbano e Regional pelo IPPUR/UFRJ. [email protected]

Redação

3 Comentários

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  1. O grande problema que enfrentamos deve-se a contraposição de utilização/devastação x não utilização/preservação.
    Ao aceitar está argumentação, principalmente em tempos de crise recorrente, a preservação fica extremamente prejudicada e largada a toda sorte de oportunistas com discursos patrióticos e economicistas.
    É preciso voltar a discussão da exploração racional da Amazônia demonstrando que a floresta de pé vale mais do que devastada.
    Vale mais porque hoje a exploração madeireira, por exemplo,não precisa devastar toda uma área para retirar umas poucas toras e ainda garante a perpetuação da exploração madeireira sem praticamente nenhum novo investimento.
    Além disso,uma infinidade de outras atividades podem ser desenvolvidas,dos fármacos a cosmética e ao turismo.
    A exploração mineral ,em um momento em que qualquer discussão minimamente racional não é possível no país, deve ser completamente abortada já que,podem esconder interesses contra o país e contra as empresas nacionais.
    Por fim,a importância da Amazônia como grande corredor hídrico para o mundo,deve ensejar uma participação financeira do resto do mundo para a sua efetiva manutenção, uma espécie de royalties do ar e da água.

  2. Esta semana Jornalista de Rondônia estava apresentando o JN da RGT : “- Visitem Rondônia. Rondônia não é Roraima”. Explica a ignorância do Povo Brasileiro quanto ao seu País, à sua Nação. Explica a ignorância e interesses internacionais sórdidos e canalhas quanto à Amazônia. Que Amazônia? Tudo é Amazônia. Não existem Pessoas, Cidadãos Brasileiros, Empresas, Escolas, Cidades, Estados, Estradas,…Tudo deve ser o grande Jardim Zoológico dos Países Industrializados. Não é o mesmo discurso do Jardim Zoológico África? Tudo é África. Quantos Países? Um Continente? Mas é só girafas, elefantes, leões, hienas,…E o Cidadão Africano? Aquela Caçador, Devastador do “Nosso Lar”? Aqueles “Invasores” que querem entrar com sua pobreza, no Nosso Continente ‘Loiro de Olhos Azuis’? Finjamos que não existem, enquanto afundam no Mediterrâneo. Nós, Nossos Bilhões e Nossas ONG’s gastarão fortunas para preservar a Nossa Humanidade, Nosso Meio Ambiente e ‘Nosso Lar’. Rondônia não é Roraima? Somente o estado do Amazonas os separam. A distância entre o Rio de Janeiro e Porto Alegre. O que são ‘apenas’ uns 1.500 Kms?!! Mas Cariocas e Gaúchos não são os mesmos Brasileiros? Não tem a mesma Cultura e mesma História? Então tudo é Amazônia? Creio que a Jornalista Brasileira e Rondoniense do JN, pensa que não. Pobre país rico. Mas de muito fácil explicação.

  3. A Amazônia enquanto um bosque cultivado milenar tem um valor inestimável. Muito além da precificação imposta à nossa burguesia cosmopolita e parasita que fez a opção pelo mercado.

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