A captura do debate da Auditoria da Dívida pelos economistas acadêmicos, por Rogério Mattos

O que me chamou a atenção, contudo, foi o foco na parte matemática e não nos casos concretos de atuação do grupo chamado Auditoria Cidadã da Dívida.

A captura do debate da Auditoria da Dívida pelos economistas acadêmicos

por Rogério Mattos

Formou-se um curioso debate entre professores, pesquisadores e pessoas que ocuparam cargos importantes no governo federal – todos economistas de profissão -, com o objetivo de dar maior precisão ao “gráfico em forma de pizza” da Auditoria Cidadã da Dívida. Correndo por fora do debate, pôde ser visto a dedicação do inteligente blogueiro do Cafezinho em corrigir a hipotética inflação do impacto da dívida pública no orçamento público, após a repetição de Ciro Gomes, em live, dos números do “gráfico em pizza”.

Paulo Gala, o ex-ministro Nelson Barbosa, articulistas do portal Disparada, ou seja, pessoas bastante preparadas para o debate, se esmeraram para a correção dos números e para se chegar a um cálculo mais preciso a respeito do endividamento publico no Brasil. O que me chamou a atenção, contudo, foi o foco na parte matemática e não nos casos concretos de atuação do grupo chamado Auditoria Cidadã da Dívida.

No Equador, a atuação desse grupo ajudou na diminuição em 70% da dívida pública bruta do país, depois de amplas negociações conduzidas durante o governo de Rafael Correa. Segundo a Auditoria, a dívida real estaria em menos de 5% do total. Ao final, de acordo com um debate mais político do que econômico (em sentido acadêmico), chegou-se a uma cifra negociada, cujo resultado foi uma folga considerável do orçamento público no país.

Igualmente na Grécia, quando o partido SYRIZA foi eleito ao executivo federal, a Auditoria encontrou inúmeras fraudes nos contratos estabelecidos com a Troika. Em um dos casos, num dos inúmeros anexos embutidos na documentação relativa ao socorro financeiro a Grecia, foi encontrada uma cláusula segundo a qual o dinheiro destinado ao pais seria transferido para um paraíso fiscal em Luxemburgo e depois, sob a forma de títulos podres, chegaria finalmente ao Tesouro nacional.

Sabe-se dos fracassos repetidos do partido grego, que afinal sucumbiu à pressão transnacional, liberal-banqueiro-financista, da Troika. Nada invalida, contudo, as descobertas menos de ordem econômica do que jurídica dos auditores brasileiros.

Aqui existem alguns pontos a serem destacados.

A Auditoria é necessária como análise completa de todo o sistema da dívida e está longe de se resumir a gráficos de pizza ou a outros tipos de gráficos melhores adaptados à escolha do freguês. Trata-se de uma intervenção eminentemente política e que considera, para além dos aspectos econômicos da dívida pública de cada pais, dos intricados mecanismos jurídicos a partir dos quais ela é legitimada. Uma análise menos apressada no trabalho dos auditores, existe também toda uma escrita da história da formação da dívida pública no Brasil, cujo inicio se deu no governo militar e posteriormente com as renegociações da divida, na redemocratização, conhecido como Plano Brady. A auditoria da dívida implica mostrar suas implicações históricas, econômicas, jurídicas, políticas e sociais. Não é um mero fator contábil.

A atual mobilização para o aumento da base monetária nacional, atitude saudável de um modo geral, deve igualmente considerar outras variáveis. A mera emissão de títulos ou de papel moeda poderá ser danoso para o país num cenário futuro de aumento de juros pelo Copom. A necessária emissão de dívida deve vir acompanhada de outras medidas, como a taxação das grandes fortunas e, como expresso em documento do Partido dos Trabalhadores alguns meses atrás, com o resgate de parte das reservas internacionais para reativação em especial das obras paralisadas.

O gasto deve ser compartilhado ao máximo. Com uma ampla auditoria da dívida, ou seja, um processo que poderia mostrar o que há de legítimo ou não no endividamento estatal, boa parte dos futuros débitos poderiam ser descartados, assim como as famigeradas renegociações. A dívida bruta nacional, que tende a chegar a 90% do PIB (lembrar que com Dilma ela chegou abaixo dos 60%), não pode crescer ainda mais em razão de meros cálculos de modernas teorias monetárias.

Ainda mais, o crédito deve ser direcionado exclusivamente para a economia física. O aumento da produtividade é o único meio de conter qualquer espiral hiperinflacionária, ao mesmo tempo que cria empregos e aumenta os salários. A atual PEC da Guerra, ao comprar títulos podres para forçar os bancos a liberarem crédito, entram num jogo de apostas. O Tesouro pode perder parte de seus investimentos com tais compras e, por fatores diversos e conhecidos, o impacto na disponibilidade de crédito na ponta ser mínima ou até nula.

A Auditoria é um meio eficaz de mostrar as ilegalidades em que se baseiam nossa dívida histórica, criar os meios para a negociação para a diminuição da dívida pública total e, assim, permitir não apenas liberar recursos do Tesouro que não seja para a manutenção do sistema da dívida, como para aumentar os investimentos do estado na economia como um todo.

Não se pode falar de “gráfico de pizza” sem antes ver os casos concretos de atuação da Auditoria, pelo menos, no Equador e na Grécia. Continuar a abordá-la assim, só mostra como economistas se acomodam no ofício de meros contadores e, como de praxe, se colocam bem distantes da economia política, pelo menos a praticada nos grandes surtos industrializantes do século XIX, com Alexandre Hamilton, Nicolas Biddle, Henry Carey, Fredrich List e tantos outros. Fora o profundo desconhecimento da eficaz medida de FDR, com a lei Glass-Steagall e a Comissão Pecora (quase o equivalente do que propõe a Auditoria, porém sem implicações criminais).

Sugiro a leitura do projeto de lei para restaurar o Banco Nacional original dos EUA onde, em seu preâmbulo, se estabelecem as diretrizes de um sistema de crédito. Para ler, clique aqui.

Rogério Mattos, professor e tradutor da revista Executive Intelligence Review. Formado em História e doutorando em Literatura Comparada. Mantém o site oabertinho.com.br onde publica alguns de seus escritos.

Redação

2 Comentários
  1. Milito, há alguns anos, no movimento ‘Auditoria Cidadã da Dívida’ e achei oportuna a discussão do tema, nas dimensões que o articulista propõe. Por outro lado, a abordagem simplista expressa neste parágrafo aqui colado, causou-me um certo espanto … “Uma análise menos apressada no trabalho dos auditores, existe também toda uma escrita da história da formação da dívida pública no Brasil, cujo inicio se deu no governo militar e posteriormente com as renegociações da divida, na redemocratização, conhecido como Plano Brady.” Este ciclo apontado, pode ser tratado como um dos que agravaram consideravelmente, o crescimento e os desequilíbrios que esta fase produziu, mas o ‘início’ da dívida pública entre nós, compulsada a nossa História, teve início na nossa Independência, quando assumimos, como suposta compensação a Portugal, pacote de dívidas lusas com a Inglaterra … Desde aqueles tempos, viramos ‘clientes preferenciais’ dos Rotschild, mega banqueiros londrinos daqueles tempos e de muitos outros tempos subsequentes. O tal ‘Plano Brady’ foi um divisor de águas, pois mudou radicalmente as regras do jogo, com graves prejuízos para o Brasil – mas o ‘início’ da nossa dívida é bem mais distante.

  2. Wilson, compreendo sua intervenção. Parece corroborar o que eu disse. Existia uma historiografia a ser feita a respeito da dívida, inclusive uma de longa duração como a que você propõe. Quis enfatizar apenas os aspectos mais recentes. Só aí já tem bastante discussão… Se for me aprofundar em cada ponto, escreveria um longo ensaio e não um pequeno artigo de alerta, cujo objetivo foi mostrar o reducionismo a que estão submetendo agora o trabalho da Auditoria.

Comentários fechados.

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador