A nova auctoritas e sua verdade: o não pertencimento, por Fábio de Oliveira Ribeiro

O poder hierarquiza a sociedade. A autoridade possibilita uma governança fundamentada na profunda sensação de pertencimento.

A nova auctoritas e sua verdade: o não pertencimento, por Fábio de Oliveira Ribeiro

No texto anterior desta série comentamos as primeiras características que Shoshana Zuboff atribui ao instrumentarianismo https://jornalggn.com.br/artigos/o-instrumentarianismo-como-poder-e-como-auctoritas/. No capítulo 13 da obra a autora continua explorando essa forma de poder que, segundo ela, não tem precedentes. É nesse capítulo que ela introduz o conceito de Grande Outro, que segundo ela é o fantoche sensato, computacional e conectado que processa, monitora, calcula e modifica o comportamento humano.

“Instrumentarianism power cultivates an unusual ‘way of knowing’ that combinates the ‘formal indiference’ of neoliberal worldview with the observational perspective of radical behaviorism. Thanks to Big Other’s capabilities, instrumentarian power reduces human experience to measurable obsesrvable behavior while remaining steadfastly indifferent to the meaning of that experience. I call this new way of knowing radical indiference. It is a form of observation without witness that yields the observe of an intimate violent political religion and bears an uttlerly different signature of havoc: the remote and abstracted contempt of impenetraby complex systems and the interests that author them, carrying individual on a fast-moving currente to the fufillment of other’s ends. What passes for social relations and economic exchange now occur across the medium of this robotized veil of abstraction.

Instrumentarianism’s radical indifference is operationalized in Big Other’s dehumanized methods of evaluation that produce equivalent without equality. These methods reduce individuais to the lowest commom denominator of sameness – an organism among organisms – despite all the vital ways in which we are not the same.” (The Age of Surveillance Capitalism, Shoshana Zuboff, PublicAffairs, New York, 2019, p. 376/377)

Tradução:

“O poder do instrumentarianismo cultiva uma ‘maneira de saber’ incomum que combina a ‘indiferença formal’ da visão de mundo neoliberal com a perspectiva observacional do behaviorismo radical. Graças às capacidades do Grande Outro, o poder instrumentarianista reduz a experiência humana a um comportamento mensurável e obsessivo, permanecendo firmemente indiferente ao significado dessa experiência. Eu chamo essa nova maneira de conhecer a indiferença radical. É uma forma de observação sem testemunha que produz a observação de uma religião política violenta íntima e tem uma assinatura extremamente diferente de destruição: o desprezo remoto e abstrato dos sistemas impenetráveis complexos e os interesses que os criam, levando o indivíduo em uma corrente veloz para a realização dos fins de outros. O que passa por relações sociais e trocas econômicas agora ocorre no meio desse véu robotizado de abstração.

A indiferença radical do instrumentarianismo é operacionalizada nos métodos desumanizados de avaliação do Grande Outro, que produzem equivalentes sem igualdade. Esses métodos reduzem os indivíduos ao menor denominador comum de semelhança – um organismo entre organismos – apesar de todas as maneiras vitais pelas quais não somos os mesmos.”

Um pouco adiante Zuboff esclarece que:

“Thanks to Big Other’s capabilities, instrumentarian power aims for a condition of certainty without terror in a form of ‘guaranteed outcomes’. Because it does no claim our bodies for some grotesque regime of pain and murder, we are prone to undervalue its effects and lower our guard. Instead of death, torture, reeducation, or conversion, instrumentarianism effectively exiles us from our own behavior. It serves our insides from our outsides, our subjectivity and interiority from our observable actions. It lends credibility to the behavioral economist’s hypotesis of the frailty of human reason by making it só, as otherized behavior takes on a life of its own that delivers futures to surveillance capitalism’s aims and interests.” (The Age of Surveillance Capitalism, Shoshana Zuboff, PublicAffairs, New York, 2019, p. 378)

Tradução:

“Graças às capacidades do Grande Outro, o poder instrumentário visa uma condição de certeza sem terror na forma de ‘resultados garantidos’. Por não reivindicar nosso corpo por algum regime grotesco de dor e assassinato, somos propensos a subestimar seus efeitos e baixar nossa guarda. Em vez de morte, tortura, reeducação ou conversão, o instrumentarianismo nos exila efetivamente de nosso próprio comportamento. Ele serve nosso interior de fora, nossa subjetividade e interioridade de nossas ações observáveis. Dá credibilidade às hipóteses do economista comportamental da fragilidade da razão humana, tornando-a assim, pois o comportamento diferenciado ganha vida própria que entrega futuros aos objetivos e interesses do capitalismo de vigilância.”

O Grande Outro não foi criado para impor a submissão em massa às normas de comportamento predeterminadas. Nem tampouco oferece qualquer tipo de retribuição em razão do pertencimento ao grupo.

“In this way instrumentarian power produces endlessly accruing knowledge for surveillance capitalists and endlessly diminishing freedon for us as it continuously renews surveillance capitalim’s domination of the division of learning in society. False consciousness is no longer produced by the hidden facts of class and their relation to production but rather by the hidden facts of instrumentarian power’s command over the division of learning in society as it usurps the rights to answer the essential question: Who knows? Who decides? Who decides who decides? Power was once indentified with the owner ship of means of production, but it is now identified with ownership of the means of behavioral modification that is Big Other.” (The Age of Surveillance Capitalism, Shoshana Zuboff, PublicAffairs, New York, 2019, p. 379)

Tradução:

“Dessa maneira, o poder instrumentário produz conhecimento acumulando incessantemente para os capitalistas da vigilância e diminuindo continuamente a liberdade para nós, enquanto renova continuamente o domínio do capital de vigilância da divisão da aprendizagem na sociedade. A falsa consciência não é mais produzida pelos fatos ocultos da classe e sua relação com a produção, mas pelos fatos ocultos do comando do poder instrumentário sobre a divisão da aprendizagem na sociedade, uma vez que usurpa os direitos de responder à pergunta essencial: Quem sabe? Quem decide? Quem decide quem decide? O poder já foi identificado com a propriedade dos meios de produção, mas agora é identificado com a propriedade dos meios de modificação comportamental que é o Grande Outro.”

Após relatar como o nascimento e consolidação do capitalismo de vigilância ocorreu justamente no período histórico em que as pessoas começaram a desconfiar mais e mais das autoridades estatais, a autora do livro explica como o instrumentarianismo foi convocado a preencher a lacuna existente entre governos fragilizados e sociedades voláteis para garantir a estabilidade do Estado. Depois ela mostra como China e EUA fizeram a mesma coisa trilhando caminhos diferentes.

“In the US, local law enforcement has joined the queue of institutions seeking access to instrumentariam power. Surveillance-as-a-service companies eagerly sell their wares to local police departaments also determined to find a shortcut to certainty. On startup, Geofeedia, specializes in detailed location tracking of activists and protesters, such as Greenpeace members or union organizers, and the computation of individualized ‘threat scores’ using data drawn from social media; Law-enforcement agencies have been among Geofeeedia’s most proeminet clients. When Boston Police Departament annouced its interest in joing this roster in 2016, the city’s police commissioner described to the Boston Globe his belief in machine certainty as the antidote to social breakdown: ‘The attack… in the Ohio State University campus is just the latest illustration of why local law-enforcement authorities need every tool they can muster to stop terrorism and other violence before it starts’. An ACLU attorney countered that the government is using tech companies ‘to build massive dossiers on people’ based on nothing more than their constitutionally protected speech. Another, more prominent surveillance-as-a-service company, Palantir, once touted by Bloomberg Businessweek as ‘the war on terror’s secret weapon’, was found to be in a secret collaboration with the New Orleans Police Departament to test its ‘predictive policing’ technology. Palantir’s software not only identified gang members but also ‘traced people’s ties to other gang members, outined criminal histories, analyzed social media, and predicted the likehood that individuals woud commit violence or become a victim’.” (The Age of Surveillance Capitalism, Shoshana Zuboff, PublicAffairs, New York, 2019, p. 387/388)

Tradução:

“Nos EUA, as polícias locais entraram na fila de instituições que buscam acesso ao poder instrumentário. As empresas cuja atividade é a vigilância vendem ansiosamente seus produtos a departamentos policiais locais, também determinados a encontrar um atalho para a certeza. A empresa Geofeedia é especializada em rastreamento e localização detalhado de ativistas e manifestantes, como membros do Greenpeace ou organizadores de sindicatos, e no cálculo de ‘pontuações de ameaças’ individualizadas usando dados extraídos das mídias sociais; As agências policiais estão entre os clientes mais proeminentes da Geofeeedia. Quando o Departamento de Polícia de Boston anunciou seu interesse em participar da lista em 2016, o comissário de polícia da cidade descreveu ao Boston Globe sua crença na segurança das máquinas como o antídoto para o colapso social: ‘O ataque… no campus da Universidade Estadual de Ohio é apenas o exemplo mais recente por que as autoridades policiais locais precisam de todas as ferramentas possíveis para impedir antecipadamente o terrorismo e outras violências’. Um advogado da ACLU respondeu que o governo está usando empresas de tecnologia ‘para criar dossiês em massa das pessoas’ com base em nada mais do que seu discurso constitucionalmente protegido. Outra empresa de vigilância mais proeminente, Palantir, considerada uma vez pela Bloomberg Businessweek como ‘a arma secreta na guerra ao terror’, foi encontrada fazendo uma colaboração secreta com o Departamento de Polícia de Nova Orleans para testar sua tecnologia de ‘policiamento preditivo’. O software de Palantir não apenas identificou os membros da gangue, mas também ‘esboçou os laços das pessoas com outros membros da gangue, delineou histórias criminais, analisou as mídias sociais e predisse a probabilidade de que os indivíduos cometam violência ou se tornem vítimas’.”

Nos EUA, os órgãos estatais estão dispostas a comprar os serviços das empresas privadas que construíram um novo tipo de poder expropriando e analisando excedente comportamental. Na China o Estado está mais inclinado a incorporar os atributos do instrumentarianismo utilizando sistemas privados de premiação e punição de consumidores criados por capitalistas da vigilância.

“According to a report in China Daily, debtors on the list were automatically prevented from flying 6.15 million times since the blacklist was launched in 2013. Those in contempt of court were denied sales of high-speed train tickets 2.22 million times. Some 71,000 defaulters have missed out on executive positions at enterprises as a result ot their debts. The Industrial and Commercial Bank of China said it had refused loans worth more than 6.97 billion yuan ($ 1,01 billion) to debtors on the list. No one is sent to a reeducation camp, but they may not be allowed to purchase lusury goods. According to the director of the Institute of the Chinese Academy of International Trade and Economic Cooperation, ‘Given this inconveniense, 10 percent of people on the list started to pay bank the money they owed spontaneously. This shows the system is starting to work. Economies of action were perfoming to plan.

For the 400 million users of Sesame Credit, the fusion os instrumentariam and state power bites hard. Those who might find thenselves on the balcklist discover that the credit system is designe to thrust their scores into an inexorable downward spiral: ‘First your score drops. Then your friends hear you are on the blacklist and, fearful that their scores might be affected, quietly drop you as a contact. The algorithm notices, and your score plummets further’.

The Chinese government’s vision may be impossibly ambitious: the big dream of total awareness and perfect certainty mediated by algorithms that filter a perpetual flood of data flows from private and public supples, including online and offline experience culled from every domain and able to ricochet back into the individual lives of 1.5 billion people, automating social behavior as the algorithms reward, punish, and shape action right down to the latest bus ticket. So far the project is fragmented acroos many pilots, not only in the tech companies but also in cities and regions, só there is no real test of the scale that the government envisions. There are plenty of experts who belive that a single system of that scale and complexity will be difficult if not impossible to achieve.” (The Age of Surveillance Capitalism, Shoshana Zuboff, PublicAffairs, New York, 2019, p. 391/392)

Tradução:

“De acordo com um relatório do China Daily, os devedores da lista foram automaticamente impedidos de voar 6,15 milhões de vezes desde o lançamento da lista negra em 2013. Os que desrespeitaram o Tribunal tiveram a venda negada de bilhetes de trem de alta velocidade 2,22 milhões de vezes. Cerca de 71.000 inadimplentes perderam posições executivas nas empresas como resultado de suas dívidas. O Banco Industrial e Comercial da China disse ter recusado empréstimos no valor de mais de 6,97 bilhões de yuans (US $ 1,01 bilhão) a devedores da lista. Ninguém foi enviado para um campo de reeducação, mas eles podem não ter permissão para comprar bens de consumo. Segundo o diretor do Instituto da Academia Chinesa de Comércio Internacional e Cooperação Econômica, ‘Dado esse inconveniente, 10% das pessoas da lista começaram a pagar ao Banco o dinheiro que deviam espontaneamente. Isso mostra que o sistema está começando a funcionar. Economias de ação estavam se desenvolvendo para planejar.

Para os 400 milhões de usuários de Sesame Credit, a fusão de instrumentarianismo e poder estatal é difícil. Quem se encontra na lista negra descobre que o sistema de crédito é projetado para lançar suas pontuações em uma espiral descendente inexorável: ‘Primeiro, sua pontuação diminui. Então seus amigos descobrem que você está na lista negra e, com medo de que suas pontuações possam ser afetadas, deixam de considerar você um contato. O algoritmo percebe e sua pontuação cai ainda mais ‘.

A visão do governo chinês pode ser impossivelmente ambiciosa: o grande sonho de total consciência e perfeita certeza mediado por algoritmos que filtram um fluxo perpétuo de dados de fontes privadas e públicas, incluindo a experiência online e offline de todos os domínios e capazes de ricochetear de novo nas vidas individuais de 1,5 bilhão de pessoas, automatizando o comportamento social à medida que os algoritmos recompensam, punem e moldam a ação até a última passagem de ônibus. Até o momento, o projeto está fragmentado em muitos pilotos, não apenas nas empresas de tecnologia, mas também nas cidades e regiões; portanto, não há um teste real na escala que o governo imagina. Muitos especialistas acreditam que um sistema único dessa escala e complexidade será difícil, se não impossível, de alcançar.”

Nenhum sistema de controle social precisa ter total capilaridade. Nem todos os alemães eram nazistas, mas a esmagadora maioria deles apoiou o nazismo. Muitos porque perceberam que suas vidas haviam melhorado. Outros porque odiavam os judeus e comunistas. E alguns pelo simples fato que não desejavam ser vistos como pessoas diferentes numa sociedade que se tornava mais e mais homogênea à medida que o projeto totalitarista ganhava corpo premiando a adesão e punindo cruelmente qualquer disconformidade.

Shoshana Zuboff diz claramente que o instrumentarianismo não exige e não precisa da conformidade das pessoas. Em razão das características do Grande Outro, as pessoas estão fadadas a continuar usando a internet, a fornecer excedente comportamental que será usado por outros para obter lucro modelando comportamentos individuais de consumo (caso dos EUA) ou impondo padrões coletivos de comportamento (caso da China). Tanto num país como no outro, com maior ou menor intensidade, o instrumentarianismo poderá ser empregado para fins policiais e políticos.

Nesse ponto retomo o que dito sobre a ‘auctoritas’ no texto anterior desta série.

“Auctoritas, non veritas facit legem”.

Hannah Arendt fez uma distinção sutil entre poder e autoridade. O primeiro se caracteriza pela imposição forçada das decisões, pressupondo uma evidente distinção entre quem governa e quem é governado. A autoridade existe quando o cumprimento das decisões é voluntária e nenhuma distinção é percebida entre governados e governantes.

O poder hierarquiza a sociedade. A autoridade possibilita uma governança fundamentada na profunda sensação de pertencimento.

Shoshana Zuboff termina esse capítulo dizendo que existe uma bifurcação no caminho. Se nós seguirmos um deles, aquele que leva à limitação do poder conquistado pelos capitalistas da vigilância, a democracia poderá ser fortalecida. Se o outro for seguido, o resultado será uma modernidade antidemocrática em que a certeza será conquistada sem violência, mas com uma evidente perda de autonomia política, de dignidade humana e de liberdade pessoal.

O instrumentarianismo está sendo convocado a se tornar a única fonte de autoridade num mundo em que a confiança popular nas instituições estatais está decrescendo velozmente. Mas essa ‘auctoritas’ construída no mundo virtual e exercida no mundo real é baseada num “não pertencimento”.

Chineses, norte-americanos, brasileiros, etc, todos os usuários de internet não pertencem ao grupo seleto e reduzido de empresários em condições de expropriar excedentes comportamentais e de exercer essa nova forma de “auctoritas”, compartilhando-a com lucro ou cedendo-a parcialmente aos seus respectivos Estados. Curiosamente, o “não pertencimento” a que os usuários de internet foram condenados não é percebido como algo desagradável. Essa é uma face do problema.

A outra é a impossibilidade de combater uma nova forma de governança que conseguiu hackear tanto o imaginário dos capitalistas ocidentais quanto o dos comunistas chineses. Só existe uma maneira das pessoas não se submeterem aos caprichos da nova ‘auctoritas’: desligar os computadores e não usar os Smartphones que instrumentalizam o “não pertencimento”. Todavia, isso não é possível. Quase tudo o que nós fazemos fora da internet já é de alguma maneira representado dentro dela.

Fábio de Oliveira Ribeiro

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