A oposição domesticada e acomodada que Bolsonaro precisa para se reeleger, por Álvaro Miranda

Se aqueles que, mesmo toscos, falando que não brocham na cama ou na política, sabem fazer marketing melhor do que outros, precisamos entender, mesmo, o que está acontecendo com a cabeça do brasileiro.

A oposição domesticada e acomodada que Bolsonaro precisa para se reeleger, por Álvaro Miranda

Dois tipos de populismo duvidoso (se isso não for um pleonasmo) andaram se debatendo, um contra o outro, nas redes sociais nos últimos dias. De um lado, os que defendem que o povo não é “burro” e que qualificá-lo assim é coisa de intelectual pequeno burguês arrogante. De outro, os que não veem outro adjetivo possível a não ser esse, ou “um povo de asnos”, por exemplo, dentre outros, para explicar o apoio a Bolsonaro entre parcelas significativas da população, conforme apontam pesquisas.

O primeiro expressa, de forma clara ou subjacente, a ideia de que o povo apoia o governante que “resolve” seus problemas imediatos e empíricos, “independente de ideologias”, numa referência aos 600 reais da pandemia, se a ajuda vai continuar ou não, com o mesmo valor, e até quando, ou ainda à criação de um novo programa de “renda mínima”.

Se é assim que as coisas acontecem, trata-se de uma espécie de pragmatismo clientelista que embute a crença de que a política sempre implica algum tipo de tutela – e que, portanto, de forma velada, inconfessável, esse tipo de discurso também admitiria, no fundo, que o povo não tem noção alguma quando apoia Bolsonaro.

Já o segundo estaria esquecendo de relacionar ideologia com a “fome” de comida, mas também de saúde, educação e moradia, além de cultura. Ao dizer que o povo é burro, esquece que o tal pragmatismo clientelista só é possível com a chancela de instituições, isto é, do conjunto de regras formais e informais, inclusive os costumes. Como se fosse possível orientar-se num labirinto sem placas ou sinalizações. Na falta destas, é claro que o jeito é agir, falar ou apoiar de forma errática, intuitivamente, ou por qualquer outro tipo de impulso.

Certamente, ambas tentam, sem êxito, explicações para se compreender a transformação do absurdo em normalidade. Ambas ficam reticentes em relação a um dos problemas centrais das instituições (organizações, leis, mercados e outras), qual seja, o de como se dá a interação entre estruturas e indivíduos, bem como, dentre outros, os dilemas das mudanças, se se deve enfatizar mais o papel e a importância dos indivíduos e grupos ou o da dinâmica já posta pelo passado e o curso presente desse “passado” nos processos.

Ambas talvez ouçam como ruídos inaceitáveis a ideia schumpeteriana de que vivemos uma democracia de elites, uma democracia de araque, cheia de lances de Mandrake para inglês ver. Esquecem também que o político em si virou um objeto de marketing e que a própria política estabelecida pelas regras dessa democracia hipócrita é também objeto das prestidigitações do marketing. É a noção de que democracia se resume às urnas.

Se aqueles que, mesmo toscos, falando que não brocham na cama ou na política, sabem fazer marketing melhor do que outros, precisamos entender, mesmo, o que está acontecendo com a cabeça do brasileiro. Sim, é verdade, o povo não é burro, mas, por favor, não venham me dizer que o povo não esteja ampla e profundamente desinformado. Isso, apesar da quantidade de informação que circula por diferentes meios tradicionais e das novas tecnologias.

Se setores da classe média e dos mais ricos já são desinformados, dentre outras razões, por sua condição de especialização excessiva, no dia a dia do contexto doméstico ou no trabalho, por categoria profissional, o que poderíamos dizer dos que possuem somente as redes de televisão aberta e seus grupos de whatsApp? É dose para qualquer labirinto sem saída.

Afinal, bem sabemos, não se trata da quantidade de informação, mas sim da qualidade do que circula por aí. Pode-se arriscar uma hipótese para se compreender a desorientação geral que não se confunde com burrice – qual seja, a de que na experiência cotidiana de diferentes dores e carências relacionadas à fome, saúde, educação, habitação e outras necessidades básicas, fica difícil olhar as coisas com amplo discernimento. A não ser para resolver o problema mais básico – não mais o de vida inteira – o discernimento que sobra é para aquele de um dia atrás do outro.

Ou agora vão me convencer que o povo está com discernimento quando apoia um governo que vem destruindo o estado nacional, desmantelando as condições para geração de emprego, tirando recursos da educação e saúde e provocando outros tantos escombros na cultura, nas artes e outras áreas?

Isso não é desqualificar o povo e taxá-lo de burro ou asno, mas sim lembrar as condições em que as coisas se processam. A transitividade do voto em políticas públicas está intimamente ligada à capacidade de informação do eleitor, seja ele pobre, rico, classe média, desempregado ou porra louca. O que aconteceu com nosso voto? Na situação limite da fome e do desemprego, ninguém pode ter discernimento algum, a não ser o de optar por aquilo que acredita vai resolver seu problema mais imediato.

Lembrem que, quando o Brasil abolia formalmente a escravidão no fim do século XIX, a Europa já vivia a ebulição dos movimentos socialistas no lastro dos acontecimentos que sucederam a Revolução Francesa. Enquanto aqui as elites agrárias e escravocratas fundavam uma “república” abstrata, na Europa sindicatos e partidos socialistas protagonizavam as lutas de classes nas questões nacionais e internacionais já como fenômenos imbricados.

Não se trata, por outro lado, de pensar o Brasil como país “atrasado” que chegou depois à suposta “modernidade”. Ou que nossos problemas seriam questão de amadurecimento e de tempo, ou ainda de mero “catching up” em relação aos países ditos mais ricos. Subdesenvolvimento não é uma etapa do desenvolvimento, conforme ensina Celso Furtado, mas sim que ambos fazem parte do mesmo processo contraditório. Que um necessita do outro para ser o que é.

Escrevo essas linhas também desorientado, tentando compreender as dificuldades de se formar ampla frente contra Bolsonaro, a fim de se propor um projeto para o país. Problemas imediatos da população podem ser amenizados temporariamente – isso faz parte do velho mecanismo do adiamento das crises do sistema capitalista.

Porém, sem projeto nacional, mesmo os problemas imediatos não serão solucionados amanhã ou depois. O governo vem enxugando gelo e não tem proposta alguma de políticas públicas. Dizer que Bolsonaro está ganhando apenas por um retrato momentâneo é jogar a toalha por antecipação.

Nossa questão central é nacional, projeto nacional. Esse é o nosso labirinto. Estamos desorientados não é de hoje, nem a partir só de Bolsonaro. Mas sim desde quando, após 1988, as esquerdas toparam participar desse jogo de elites como sendo um jogo representativo de uma sociedade abstrata.

Estamos desorientados por acreditar nessa democracia liberal hipócrita e concordar com a ideia de que, se a democracia tem problemas, não teria aparecido até hoje regime melhor do que ela. E ambos os populismos, preocupados em saber se o povo é burro ou não, acreditam nessa democracia, sentem-se confortáveis no seu registro. Talvez nossa luta ainda passe, sim, por enquanto, pelos mecanismos da tal democracia do pragmatismo clientelista que ainda não foi substituída por algo melhor. Mas, precisamos refundá-la do nosso jeito, isto sim, e não bater palmas para esta que aí está.

Nosso labirinto não está carente só de sinalizações ou placas, mas também de pulso firme para não aceitar o absurdo como normalidade. Lamentavelmente, porém, os fatos parecem mostrar que mesmo certa oposição de esquerda – tirando movimentos sociais diversos importantes – é composta por elites que pouco sofrerão se as coisas continuarem como estão, inclusive, com um eventual segundo mandato de Bolsonaro. Pela mudança de tom, o atual governo percebeu que está muito feliz com sua oposição, pois sabe que precisa de uma oposição domesticada e acomodada pela democracia liberal.

Redação

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  1. “Nosso labirinto não está carente só de sinalizações ou placas, mas também de pulso firme para não aceitar o absurdo como normalidade. Lamentavelmente, porém, os fatos parecem mostrar que mesmo certa oposição de esquerda – tirando movimentos sociais diversos importantes – é composta por elites que pouco sofrerão se as coisas continuarem como estão, inclusive, com um eventual segundo mandato de Bolsonaro. Pela mudança de tom, o atual governo percebeu que está muito feliz com sua oposição, pois sabe que precisa de uma oposição domesticada e acomodada pela democracia liberal.”
    Um bom exemplo é o fato de três governadores petistas – Camilo Santana, Wellington Dias e Rui Costa – terem trabalhado nos bastidores para que o texto final do desmonte da Previdência fosse aprovado.

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