As Águas da Cobiça
por Valton de Miranda Leitão
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quinta, 25 de abril de 2024
Os bens que deveriam ser públicos tornaram-se a base da mais estúpida desigualdade produzida pela cultura do Capital.
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O crescimento civilizatório ocorre historicamente na medida em que o homem domina a natureza. Esse domínio está sempre subordinado às guerras travadas entre povos e nações, tanto pela posse territorial quanto pelos produtos naturais como minérios e agora recentemente até o oxigênio do ar e a água. A criatura humana tem no impulso agressivo o poderoso desejo de dominação e posse. O poder é o guarda-chuva simbólico debaixo do qual se abrigam mazelas como o darwinismo social de Spencer, que justifica a selvageria do supostamente mais apto. A posse do ouro motivou historicamente guerra e destruição.
O ouro como produto natural não possui valor, sendo a valoração consequência daquilo que Marx chama de reificação. O tema é tratado em um artigo por Martonio Mont’Alverne e Walquiria Leão Rego, mostrando como no terceiro livro de O Capital, Marx analisa esse processo. Conforme Marx, a reificação é a passagem de um bem natural para a condição de valor de troca, seja na renda fundiária ou no lucro do empréstimo bancário. Essa metamorfose é o instrumento mágico que dará ao dinheiro seu potencial como moeda cobiçada pelo homem. O movimento reificante seguinte será a inscrição no sistema jurídico-político da renda fundiária e da propriedade privada como cláusulas pétreas constitucionais.
Nesse ponto Marx e Freud se entrecruzam, pois Freud mostrará que o fetichismo é a recusa da castração simbólica que transmuda o ser humano da sua condição natural para a vida política civilizada. O fetichismo da mercadoria e sua vertente produzida no inconsciente humano combinam-se para dar ao conjunto a aparência de verdade histórica inamovível e inelutável. Goethe no segundo livro do Fausto mostra esse percurso do transformismo do ouro que assombra o Imperador e sua divinização na deidade do dinheiro. O metal precioso transfigurado no fetiche dinheiro tornou-se a medida mais importante do mercado, acumulando gigantescas fortunas nas mãos de poucos indivíduos mundo afora. Essa monumental concentração deu aos donos do lucro o prestígio, a fama e o poder.
O equivalente inconsciente desta tendência antropológica é o narcisismo que alimenta o desejo de acumular ao infinito, estimulando desenfreada compulsão que no presente se traduz pela existência, no mundo, de pouquíssimas trilionárias fortunas. Os bens que deveriam ser públicos tornaram-se a base da mais estúpida desigualdade produzida pela cultura do Capital. O filme de Akira Kurosawa, Dersu Uzala, retrata de modo contundente e sublime essa disposição perversa do homem. Uzala é um siberiano que conhece os mais íntimos segredos do meio ambiente em que vive. O geógrafo militar que o tomara como guia na demarcação do território russo fica impressionado com sua capacidade tanto de respeitar a natureza quanto de amar e confiar na pessoa humana. A sua natural sabedoria enfrenta as intempéries com decisão e equilíbrio ao mesmo tempo em que mostra sua preocupação com os outros que poderão vir em seguida, deixando nos acampamentos fósforo, sal e açúcar. O comandante militar e os homens que o acompanham são tomados de admiração, e o desdém inicial pelo rústico homem se transforma no respeito sem palavras. O capitão geógrafo e Uzala estabelecem grande amizade e este o convida para passar algum tempo em sua casa na cidade. Uzala, a despeito dos esforços do seu anfitrião, não consegue se ajustar ao ambiente citadino, mostrando sinais de melancolia. O episódio marcante é quando, observando um homem vendendo água numa carroça-pipa, destrói completamente o equipamento, exclamando: “água é um bem da natureza e vendê-la desonra o homem”.
Freud mostra no Mal Estar, concordando com a maioria dos pensadores da política, que o homem é mais propenso ao conflito e ao narcisismo egocêntrico do que ao consenso fundante da paz e da civilização. A pulsão destrutiva mostrou historicamente que não é dominável, e uma de suas piores facetas é a privatização dos bens naturais no atual estágio do mercado capitalista. O Brasil, num momento tenebroso da sua história, adotou no Congresso Nacional, aproveitando o doloroso transe da pandemia corona, a privatização da água. O disfarce para esta ignomínia é o necessário saneamento das cidades brasileiras, mas o objetivo perverso dos legisladores foi beneficiar o lucro. Isto é feito na contramão de 265 cidades que já voltaram atrás nessa política de lesa-humanidade. Certamente, que os idólatras do dinheiro apresentarão mil argumentos, porém sabemos que Narciso filho do rio Cefiso só desiste do culto à sua imagem, na morte.
Valton de Miranda Leitão – Psicanalista Didata da Sociedade Psicanalítica de Fortaleza – SPFOR