As novas armadilhas criadas pelo capitalismo de vigilância, por Fábio de Oliveira Ribeiro

O que os capitalistas de vigilância querem? Eles querem absolutamente tudo que diz respeito a você.

As novas armadilhas criadas pelo capitalismo de vigilância

por Fábio de Oliveira Ribeiro

Antes de discutir os detalhes da invasão que o capitalismo de vigilância promove nas casas e nos corpos das pessoas, precisamos falar sobre dois conceitos importantes debatidos por Shoshana Zuvoff: inevitabilidade e capitulação.

“A senior systems architect laid out the imperative in the clearest terms: ‘The IoT [Internet of Things] is inevitable like getting to the Pacif Ocean was inevitable. It’s manifest destiny. Ninety-eitgt percent of the things in the world are not conected. So we’re gonna connect them. It could be a moisture temperature that sits in the ground. It coud be your liver. That’s your IoT. The next step is what we do with the data. We’ll visualize it, make sense of it, and monetize it. That’s our IoT.” (The Age of Surveillance Capitalism, Shoshana Zuboff, PublicAffairs, New York, 2019, p. 225)

Tradução:

“Um arquiteto de sistemas sênior estabeleceu o imperativo [da inevitabilidade] nos termos mais claros: ‘A IoT [Internet das Coisas] é inevitável, como era inevitável chegar ao Oceano Pacífico. É um destino manifesto. Noventa e oito por cento das coisas no mundo não estão conectadas. Então, nós vamos conectá-los. Pode ser uma temperatura de umidade que fica no chão. Poderia ser o seu fígado. Essa é a sua IoT. O próximo passo é o que fazemos com os dados. Vamos visualizá-lo, entendê-lo e gerar receita. Essa é a nossa IoT.”

Em razão do poder tecnológico, comercial e politico que conquistaram, os capitalistas de vigilância estão em condição de transformar o imperativo de extração numa dinâmica social que não pode ser freada. A expropriação de excedente comportamental avança em todas as direções, quer porque inexiste regulamentação legal, quer porque os capitalistas da vigilância tem condições econômicas de combater inovações legislativas que visem garantir a privacidade ou obrigá-los a pagar pelas novas informações que eles desejam obter gratuitamente.

Os novos produtos colocados no mercado (camas, brinquedos, geladeiras, aspiradores de pó robotizados, escovas de dente, garrafas de bebidas alcoólicas etc…) contém sensores, câmeras e dispositivos capazes de coletar informações e enviá-los ao fabricante. Alguns desses produtos fazem isso sem autorização do comprador. Outros agem furtivamente apesar do comprador não ter autorizado. Equipamentos eletrônicos mais sofisticados (termostatos e centrais de segurança caseiros, assistentes virtuais, etc…) não funcionam adequadamente se o comprador não autorizar a expropriação de dados.

Em virtude de disposições contratuais raramente lidas pelos compradores desses produtos, as informações obtidas podem ser utilizadas livremente por quem adquirir a custódia delas. De fato, não raro essas informações podem até mesmo ser vendidas para terceiros interessados em utilizá-las para seus próprios propósitos lucrativos. Não há escapatória, a nova modalidade econômica se impõe obrigando os cidadãos a capitular de uma maneira ou de outra ao ‘inevitável’ imperativo de expropriação gratuita de excedente comportamental.

O sucesso do conceito de capitulação está intimamente ligado ao de ausência de regulamentação e ao de inevitabilidade.

“Surveillance capitalism’s rendition practices overwhelm any sensible discussion of ‘opt in’ and ‘opt out’. There are no more leaves. The euphemism of consent can no longer divert attention from the bare facts: under surveillance capitalism, rendition is typically unauthorized, unilateral, gluttonous, secret, and blazen. These characteristics summarize the asymmetries of power that put the ‘surveillance’ in surveillance capitalism. They also highlight a harsh truth: it is difficult to be where rendition is not. As industries far beyond the technology sector are lured by surveillance profits, the ferocity of the race to find and render experiencie as data has turned rendition into a global projetct of surveillance capital.” (The Age of Surveillance Capitalism, Shoshana Zuboff, PublicAffairs, New York, 2019, p. 241)

Tradução:

“As práticas de capitulação do capitalismo de vigilância superam qualquer discussão sensata sobre ‘optar por participar’ e ‘optar por não participar’. Não há mais saídas. O eufemismo do consentimento não pode mais desviar a atenção dos fatos: sob o capitalismo de vigilância, a entrega é tipicamente não autorizada, unilateral, gulosa, secreta e ardente. Essas características resumem as assimetrias de poder que colocam a ‘vigilância’ no capitalismo de vigilância. Eles também destacam uma verdade dura: é difícil estar onde a capitulação não existe. À medida que indústrias muito além do setor de tecnologia são atraídas pelos lucros da vigilância, a ferocidade da corrida em encontrar e tornar a experiência à medida que os dados transformaram a renderização em um projeto global de capital de vigilância. ”

O que os capitalistas de vigilância querem? Eles querem absolutamente tudo que diz respeito a você.

“Today our homes are in surveillance capitalism’s crosshairs, as competitors chased a $ 14,7 billion market for smart-home devices in 2017, up from $6,8 billion just a year earlier and expected o reach more than $101 billion by 2021. You may have already encontered some of the early absurdities: smart toothbrushes, smart lighbulbs, smart coffee mugs, smart ovens, smart juicers, and smart utensils said to improve your digestion. Others are often more grim: a home security camera with facial recognition; an alarm system thar monitors unusual vibrations before a break-in occurs; indoor GPS locators; sensors that attach to any objetct to analyze movement, temperature, and other variables; every kind of connected applience; cyborg cockroaches designed to detect sound. Even the baby’s nursery is reconceived as a source of fresh behavioral surplus.” (The Age of Surveillance Capitalism, Shoshana Zuboff, PublicAffairs, New York, 2019, p. 239)

Tradução:

“Hoje, nossas casas estão na mira do capitalismo de vigilância, pois os concorrentes perseguiram um mercado de US $ 14,7 bilhões em dispositivos de casa inteligente em 2017, acima dos US $ 6,8 bilhões do ano anterior e esperaram atingir mais de US $ 101 bilhões até 2021. Você pode já ter encontrado alguns dos primeiros absurdos: escovas de dentes inteligentes, lâmpadas inteligentes, canecas de café inteligentes, fornos inteligentes, espremedores de suco inteligentes e utensílios inteligentes que melhoram sua digestão. Outros costumam ser mais sombrios: uma câmera de segurança doméstica com reconhecimento facial; um sistema de alarme que monitora vibrações incomuns antes que ocorra uma invasão; localizadores GPS internos; sensores acoplados a qualquer objeto para analisar movimento, temperatura e outras variáveis; todo tipo de utilidade conectada; baratas ciborgues projetadas para detectar som. Até o berçário do bebê é reconcebido como uma nova fonte de excedente comportamental.”

Segundo Shoshana Zuboff os capitalistas da vigilância não querem apenas reduzir todas as suas atividades diárias em informações que podem ser expropriadas para fins lucrativos. Na verdade eles querem inclusive e principalmente o seu próprio corpo. O GPS do seu celular que usa Android, acionado ou não, fornece ao Google todas as informações acerca dos seus hábitos de deslocamento. Aplicativos que supostamente visam melhorar sua performance ao fazer exercícios podem expropriar e enviar aos criadores deles (ou a terceiros com quem eles mantém negócios) informações pessoais do seu Smartphone que não tem absolutamente nada a ver com suas atividades esportivas. Isso é feito sem o seu conhecimento ou autorização ou apesar de você ter optado pelo não compartilhamento de dados. Algo semelhante já ocorreu caso de alguns aplicativos médicos.

“There are many new territories of body rendition: organs, blood, eyes, brain waves, faces, gait, posure. Each of these expresses the same patterns and purpose that we have seen here. The surveillance capitalists relentlessly fight any attempts to constrain rendition. The ferocity with which they claim ther ‘right to rendition’ out of thin air is ample evidence of its foundational importance in the pursuit of surveillance revenues.” (The Age of Surveillance Capitalism, Shoshana Zuboff, PublicAffairs, New York, 2019, p. 251)

Tradução:

“Existem muitos novos territórios de representação corporal: órgãos, sangue, olhos, ondas cerebrais, rostos, marcha, postura. Cada um deles expressa os mesmos padrões e propósitos que vimos aqui. Os capitalistas da vigilância combatem incansavelmente qualquer tentativa de restringir a capitulação [em relação aos dados biométricos]. A ferocidade com que afirmam ter o direito de renderizar do nada é uma evidência ampla de sua importância fundamental na busca de receitas de vigilância.”

Especialistas que pesquisaram esses produtos inovadores descobriram que as informações coletadas através deles podem ser hackeadas. Os fabricantes não dão garantia de sigilo, quando fazem isso a garantia é irrelevante. As únicas coisas que os capitalistas da vigilância guardam a sete chaves são os segredos tecnológicos que garantem os lucros deles mediante a expropriação de excedente comportamental.

Como vimos no texto anterior desta série https://jornalggn.com.br/artigos/um-direito-indiscutivel-de-monitorar-todos-o-tempo-todo/, os reflexos dos imperativos de inevitabilidade e capitulação do capitalismo de vigilância já se fazem sentir na esfera do Direito. A ferocidade com que os capitalistas da vigilância defendem seu privilégio de conquistar novos territórios dentro das nossas casas e corpos somente é possível em razão da inexistência de regulamentação legal ou da existência de leis ambíguas que permitem a eles fazer o que eles querem quando eles querem da maneira que eles bem entenderem para expropriar excesso comportamental gratuitamente com fins lucrativos.

“This ferocity is well illustrated in surveillance capitalist’s determination to discourage, eliminate, or weaken any laws governing the rendition of biometric information, especially facial recognition. Because there is no federal law in the US that regulates facial recognition, these battles occur ate the state level. Currently, the Illinois Biometric Privacy Act offers the most comprehensive legal protections, requiring companies to obtain written consent before collecting biometric information from any individual and, among other stipulationsm granting individual the right to sue a company for unauthorized rendition.

The Center for Public Integrity, along with journalists, privacy advocates, and legal scholars, has documented the active opposition of surveillance capitalists to the Illinois law and similar legislative proposals in other states. With its unique competitive advantages in facial recognition, Facebook is considered the most uncompromising of all tech companies when it comes to biometric data, described as ‘working feverishly to prevent other states from enacting a law like the one of Illinois.’” (The Age of Surveillance Capitalism, Shoshana Zuboff, PublicAffairs, New York, 2019, p. 251)

Tradução:

“Essa ferocidade é bem ilustrada na determinação do capitalista de vigilância em desencorajar, eliminar ou enfraquecer quaisquer leis que governem a capitulação de informações biométricas, especialmente o reconhecimento facial. Como não há lei federal nos EUA que regule o reconhecimento facial, essas batalhas ocorrem no nível estadual. Atualmente, a Lei de Privacidade Biométrica de Illinois oferece as proteções legais mais abrangentes, exigindo que as empresas obtenham consentimento por escrito antes de coletar informações biométricas de qualquer indivíduo e, entre outras estipulações, concede ao indivíduo o direito de processar uma empresa por entrega não autorizada.

O Center for Public Integrity, em conjunto com jornalistas, defensores da privacidade e especialistas em Direito, documentou a oposição ativa dos capitalistas da vigilância à lei de Illinois e propostas legislativas similares em outros estados. Com suas vantagens competitivas únicas no reconhecimento facial, o Facebook é considerado a mais intransigente de todas as empresas de tecnologia quando se trata de dados biométricos e descrito como ‘trabalhando febrilmente para impedir que outros estados decretem uma lei semelhante a de Illinois’”.

Os regimes totalitários dos anos 1930 também desprezavam a privacidade. Como não tinham capacidade tecnológica para fazer o que os capitalistas de vigilância tem feito, nazistas e fascistas construíram um poder absoluto que dependia de uma rede crescente de informantes. Os objetos produzidos e comercializados com a finalidade de vigiar os consumidores para garantir a rentabilidade crescente dos capitalistas da vigilância estão ajudando a criar um pesadelo em que a propaganda pode perseguir o consumidor onde quer que ele esteja. Shoshana Zuboff nos fornece um exemplo de como essa tecnologia já está sendo colocada a serviço da polícia.

“… Google represents the vanguard of location-based tracking. A 2016 affidavit from law-enforcement officials seeking a search warrant for a California bank robber made plain why Google location data are unparalled: ‘Google collects and retains location data from Android-enabled mobile devices. Google collects this data whenever one of their services is activated and/or whenever there is an event on the mobile device such as a phone call, text messages, internet access, or e-mail access.’ The officials on the case requested location information from Google because it offers far more detail than even the phone companies can provide. The location systems in Android combine cell-tower data with GPS, Wi-Fi networks, and other information culled from photos, videos, and oher sources.: ‘That lets Android pinpoint users to a single building, rather than a city block.’ In November 2017 Quartz investigative reporters discovered that since early 2017, Android phones had been collecting location information by triangulating the nearest cell tower, even when location information services were disable, no apps were running, and no carriem SIM card was installed in the pohone. The information was used to manage Google’s ‘push’ notifications and mesages sent to users on their Android phones, enabling the company to track ‘whether an individual with Android phone or running Google apps has ser foot in a specific store, and use that to target the advertising a user subsequently sees.” (The Age of Surveillance Capitalism, Shoshana Zuboff, PublicAffairs, New York, 2019, p. 244)

Tradução:

“… O Google representa a vanguarda do rastreamento baseado em localização. Um depoimento de 2016 de autoridades policiais que requisitaram de um Mandado de Busca contra um ladrão de bancos da Califórnia esclareceu por que os dados de localização do Google são inigualáveis: ‘O Google coleta e retém dados de localização de dispositivos móveis habilitados para Android. O Google coleta esses dados sempre que um de seus serviços é ativado e/ou sempre que houver um evento no dispositivo móvel, como uma ligação telefônica, mensagens de texto, acesso à Internet ou acesso a e-mail.’ Os policiais responsáveis pelo caso solicitaram informações de localização do Google porque oferece muito mais detalhes do que as empresas de telefonia podem fornecer. Os sistemas de localização no Android combinam dados da torre de celular com GPS, redes Wi-Fi e outras informações extraídas de fotos, vídeos e outras fontes: ‘Isso permite que o Android localize os usuários em um único edifício, em vez de em um quarteirão’. Em novembro de 2017, os repórteres investigadores da Quartz descobriram que, desde o início de 2017, os telefones Android coletavam informações de localização triangulando a torre de celular mais próxima, mesmo quando os serviços de informações de localização estavam desativados, nenhum aplicativo estava em execução e nenhum cartão SIM havia sido instalado no telefone. As informações foram usadas para gerenciar as notificações e mensagens “push” do Google enviadas aos usuários em seus telefones Android, permitindo à empresa rastrear ‘se um indivíduo com telefone Android ou executando aplicativos do Google tem suporte em uma loja específica e usá-lo para segmentar a publicidade que um usuário verá posteriormente’.”

Não existe escapatória. Todos nós estamos fadados a alimentar de alguma maneira o apetite crescente de empresas que expropriam gratuitamente excedente comportamental para auferir lucros. Parte do faturamento delas provavelmente será reinvestido na criação de sistemas e produtos ainda mais invasivos, bem como para preservar um sistema legal que reduza ou elimine a privacidade como princípio jurídico. Impossível dizer o que ocorrerá quanto todas essas informações forem colocadas a serviço de um Estado realmente totalitário que resolva localizar e eliminar qualquer dissidência política.

Você sabe exatamente o que os aplicativos do seu telefone Android estão fazendo nesse momento? Ok. Quando dirigida especificamente a você essa pergunta é apenas retórica. Afinal, apenas os capitalistas de vigilância são capazes de respondê-la, mas eles não farão isso.

Fábio de Oliveira Ribeiro

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