Um direito indiscutível de monitorar todos o tempo todo?, por Fábio de Oliveira Ribeiro

O ‘não contrato’ não é um espaço de relações contratuais, mas uma execução unilateral que torna essas relações desnecessárias.

Um direito indiscutível de monitorar todos o tempo todo?

por Fábio de Oliveira Ribeiro

No texto anterior desta série https://jornalggn.com.br/artigos/dark-data-e-a-ilusao-da-eliminacao-total-de-todas-as-incertezas/, vimos como o capitalismo de vigilância começou a migrar para o mundo real através da adesão da indústria automobilística e das seguradoras. Convém agora explorar as estratégias que, segundo Shoshana Zuboff, estão sendo utilizadas para impor o novo modelo aos cidadãos e algumas consequências jurídicas da submissão contratual aos imperativos de predição impostos à economia pelos capitalistas da vigilância.

“Deloitte acknoledges that according to its survey data, most consumers reject telematics on the basis of privacy concerns ad mistrust companies that want monitor their behavior. This relutance can be overcome, the consultants advise, by offering cost savings ‘significant enough’ that people are willing ‘to make the [privacy] trade-off’ in spite of ‘lingering concerns…’ If price inducements don’t work, insurers are counseled to present behavioral monitoring as ‘fun’, ‘interative’, ‘competitive’ and ‘ gratifying’ rewarding drivers for improvements on their past record and ‘relative to the broader policy holder pool’. In this approach, known as ‘gamification’, drivers can be engaged to participate in ‘performance base contests’ and ‘incentive based challenges’.

If all eles fails, insurers are advised to induce a sense of inevitability and helplesness in their customers. Deloitte counsels companies to emphasize ‘the multitude of other technologies already in play to monitor driving’ and that ‘enhanced surveillance and/or geo-location capabilities are part of the world we live in now, for better or worse.”

Behavioral underwriting offers auto insurers cost savings and efficiencies, but it is not the endgame for a revitalized insurance industry. The analytics thar produce targeted advertesing in the online word are repurposed for the real world, laying the foundation for new behavioral future markets that trade in predictions of customer behavior.” (The Age of Surveillance Capitalism, Shoshana Zuboff, PublicAffairs, New York, 2019, p. 216/217)

Tradução:

“A Deloitte reconhece que, de acordo com os dados da pesquisa, a maioria dos consumidores rejeita a telemática com base em questões de privacidade e desconfia de empresas que desejam monitorar seu comportamento. Essa relutância pode ser superada, aconselham os consultores, oferecendo uma economia de custos “suficientemente significativa” para que as pessoas estejam dispostas a ‘renunciar [á privacidade]’, apesar de ‘preocupações persistentes …’. Se os incentivos de preços não funcionarem, as seguradoras são aconselhadas a apresentar o monitoramento comportamental como ‘motivadores’, ‘gratificantes’, ‘divertidos’, ‘interativos’, ‘competitivos’, premiando os consumidores por melhorias em relação seus registros anteriores e ‘em relação ao conjunto mais amplo de segurados’. Nessa abordagem, conhecida como ‘gamificação’, os motoristas podem ser envolvidos a participar de ‘concursos baseados em desempenho’ e ‘desafios baseados em incentivos’.

Se todas as estratégias falharem, as seguradoras são aconselhadas a induzir uma sensação de inevitabilidade e dificuldade em seus clientes. Deloitte aconselha as empresas a enfatizar ‘a infinidade de outras tecnologias já em jogo para monitorar a direção’ e que ‘recursos aprimorados de vigilância e/ou localização geográfica fazem parte do mundo em que vivemos agora, para melhor ou para pior’.

A subscrição comportamental oferece economia e eficiência aos custos das seguradoras, mas não é o fim do jogo para um setor de seguros revitalizado. As análises que produzem anúncios direcionados na palavra on-line são reaproveitadas para o mundo real, estabelecendo as bases para novos mercados comportamentais futuros que negociam previsões de comportamento do cliente.”

No Brasil essas duas estratégias têm sido precedidas pela introdução de câmeras e sensores de distância nos modelos de carros mais novos. Um amigo meu comprou um carro equipado com esses dispositivos. Em menos de um ano ele foi obrigado a trocar a câmera, pois o suporte da original se rompeu. Ele me disse que o preço pago pela nova câmera foi uma bagatela. A substituição da câmera foi tão fácil que o carro nem precisou ser levado à assistência técnica.

Ele já está se acostumado a utilizar os novos recursos do veículo. Em breve eles se tornarão indispensáveis. O próximo carro novo que meu amigo comprar provavelmente virá com sensores mais modernos que poderão ser conectados ao servidor da montadora ou da seguradora. O revendedor dirá a ele que a novidade não acarretou nenhum acréscimo no preço do veículo. Muito pelo contrário, a utilização dos dados coletados em tempo real do veículo dele poderão ser empregados para, levando em conta o histórico dele, reduzir o custo do seguro. Localização por GPS garantida em caso de furto.

Não sei se meu amigo fará objeções ao monitoramento em tempo real. Se ler os textos dessa série ele ficará preocupado com questões relativas à privacidade? Isso é possível, mas não sei exatamente como ele reagirá. Ele é usuário de internet. Os dois filhos dele tem entre 20 e 30 anos e cresceram num ambiente informatizado gostam de novidades tecnológicas. Se ele não aderir às novidades pode sofrer algum tipo de constrangimento familiar.

Após narrar as estratégias utilizadas para obrigar os consumidores a fornecer cada vez mais excedente comportamental, a Zuboff cita a declaração de um administrador do Google:

“… ‘Because transactions are now computer-mediated we can observe behavior that was previously unobservable and write contratcs on it. This enables transactions that were simply not feasible before’; Varian’s ‘we’ refers to those with privileged access to the shadow text into which behavioral data flow. Our behavior, once unobservable, is declared as free for the taking, theirs to own, and theirs to decide how to use and how to profit from. This includes the production of ‘new contratual forms’ that compel us in ways that would not have been possible but for surveillance capitalist’s original declarations of dispossession.” (The Age of Surveillance Capitalism, Shoshana Zuboff, PublicAffairs, New York, 2019, p. 218/219)

Tradução:

“…‘Como as transações agora são mediadas por computador, podemos observar um comportamento anteriormente inobservável e escrever contratos com base neles. Isso permite transações que antes não eram possíveis’; O ‘nós’ a que Varian refere-se obviamente àqueles com acesso privilegiado ao texto sombra para o qual os dados comportamentais fluem. Nosso comportamento, que já foi inobservável, é declarado livre para expropriação, a propriedade é deles, o direito de decidir como usar e como lucrar também é deles. Isso inclui a produção de ‘novas formas contratuais’ que nos obrigam de maneiras que não seriam possíveis, mas apenas para reforçar as declarações originais de expropriação feitas pelo capitalista de vigilância.”

Um pouco adiante Shoshana Zuboff faz uma reflexão sobre esses novos contratos:

“…What Varian celebrates here is not a new form of contract but rather a final solution to the enduring uncertainty that is the raison d’être of ‘contract’ as means of ‘private ordering’. In fact, the use of the word contract in Varian’s formulation is a perfect example of the horseless-carriage syndrome. Varian’s formulation is unprecedented and cannot be understood as simply another kind of contract. It is, in fact the annihilation of contract; this invention is better understood as the uncontract.

The uncontract is a feature of the larger complex that is the means of behavioral modification, and it is therefore an essential modality of surveillance capitalism. It contributes to economies of action by leveraging proprietary behavioral surplus to preempt and foreclose action alternatives, thus replacing the indeterminacy of social processes with the determininsm of programmed machine processes. This is not the automation of society, as some might think, but rather the replacement of society with machine action directated by economic imperatives.

The uncontract is not a space of contractual relations but rather a unilateral execution that makes those relations unnecessary. The uncontract desocializes the contract, manufacturing certainty through the substitution of automated procedures for promises, dialogue, shared meaning, problem solving, disput resolution, and trust: the expressions of solidarity and human agency that habe been gradually institutionalized in the notion of ‘contract’ over the course of millennia. The uncontract bypasses all that social work in favor of compulsion, and it does só for the sake of more-lucrative prediction products that approximate observation and therefore guarantee autcomes.” (The Age of Surveillance Capitalism, Shoshana Zuboff, PublicAffairs, New York, 2019, p. 220/221)

Tradução:

“… O que a Varian celebra aqui não é uma nova forma de contrato, mas uma solução final para a incerteza duradoura que é a razão de ser do ‘contrato’ como meio de ‘interação privada’. De fato, o uso da palavra contrato na formulação de Varian é um exemplo perfeito da síndrome da carruagem sem cavalos. A formulação da Varian é sem precedentes e não pode ser entendida como simplesmente outro tipo de contrato. É, de fato, a aniquilação de contrato; esta invenção é melhor entendida como o ‘não contrato’.

O ‘não contrato’ é uma característica do complexo maior que é o meio de modificação comportamental e, portanto, é uma modalidade essencial do capitalismo de vigilância. Contribui para as economias de ação, alavancando o excedente comportamental de seu proprietário para antecipar e excluir alternativas de ação, substituindo assim a indeterminação dos processos sociais pelo determinismo dos processos da máquina que foram programados. Esta não é a automação da sociedade, como alguns podem pensar, mas a substituição da sociedade pela ação da máquina dirigida por imperativos econômicos.

O ‘não contrato’ não é um espaço de relações contratuais, mas uma execução unilateral que torna essas relações desnecessárias. O ‘não contrato’ dessocializa o contrato, fabricando certezas através da substituição de procedimentos automatizados por promessas, diálogo, significado compartilhado, resolução de problemas, resolução de disputas e confiança: as expressões de solidariedade e autonomia humana que foram gradualmente institucionalizadas na noção de ‘contrato’ ao longo de milênios. O ‘não contrato’ ignora todo esse trabalho social em favor da compulsão, e o faz pelo bem de produtos de previsão mais lucrativos que aproximam a observação e, portanto, garantem resultados.”

A perspectiva levantada por Shoshana Zuboff fica mais interessante se compararmos um contrato de seguro tradicional com o “não contrato” que possibilita a expropriação gratuita de excedente comportamental que poderá ser utilizado para moldar as ações futuras do consumidor.

Mesmo que seja um contrato padrão de adesão, o contrato de seguro tradicional impõe direitos e deveres mútuos. Isso significa que tanto o segurado quanto a seguradora podem ser punidos se não cumprirem suas obrigações. As obrigações contratuais que extrapolem determinados limites impostos pela legislação podem ser consideradas nulas pelo Judiciário.

O “não contrato” referido pela autora do livro cria direitos para o capitalista de vigilância. Ele poderá extrair todos os dados que forem possíveis, empregá-los da maneira que bem entender e, eventualmente, comercializá-los no mercado de predições com outras empresas que exploram o capitalismo de vigilância.

O consumidor por sua vez, receberá em troca apenas três coisas: a obrigação de agir dentro dos parâmetros estabelecidos, sob pena de punição: desligamento remoto do veículo em caso de falta de pagamento da parcela; rejeição do pagamento do prêmio do seguro caso os dados revelem que ele violou os parâmetros contratuais ou legais

Os supostos incentivos recebidos (como por exemplo a redução do preço do seguro) se tornam irrelevantes quando levamos em consideração as consequências em caso de acidente. Sinto muito, senhor, mas os dados provam inequivocamente que o senhor estava à 90 Km/hora por hora na rua Fulana de Tal e naquela rua a velocidade máxima é 50 Km/h conforme a legislação municipal.

Em caso de disputa judicial com a seguradora, a legislação não obriga o segurado a fazer prova contra sua própria pretensão. No caso do “não contrato” mencionado por Shoshana Zuboff a prova contra a pretensão do segurado terá sido pré-constituída. A exatidão dos dados não deixa qualquer margem para discussão judicial.

O motorista violou o limite de velocidade porque precisava levar urgentemente a esposa grávida ao Hospital? Isso é irrelevante. Do ponto de vista jurídico sua obrigação era inexcusável e não foi a seguradora que engravidou a esposa dele. O outro motorista que causou a colisão vinha na contramão numa rua de mão única? Desculpe-me senhor segurado, mas o comportamento do terceiro não é suficiente para eliminar a conclusão de que o senhor mesmo infringiu a legislação. A seguradora não pode ser obrigada a indenizar o dano causado pelo terceiro nesse caso.

Se o acidente resultar em lesão corporal ou em morte, o problema jurídico será ainda maior. A Constituição da República garante diversos princípios que funcionam como limites do poder estatal de impor punições. Um deles é o princípio da presunção de inocência, outro é o do réu não ser obrigado a produzir prova contra si mesmo.

Suponhamos que no dia do acidente o veículo do réu estava sendo remotamente monitorado por múltiplos sensores que enviaram informações ao servidor da montadora, da seguradora ou de uma empresa qualquer. O excedente comportamental do motorista poderia ser utilizado como meio de prova? Qual seria o alcance dessa prova? As informações do GPS e de outros sensores podem, por exemplo, colocar o carro no local do acidente sendo conduzido na contramão ou sendo conduzido na mão certa em velocidade inadequada. Mas nada disso colocaria necessariamente o réu na direção do veículo.

Vamos agora complicar um pouco a situação. Suponha que entre os dados expropriados por sensores do carro estão as imagens e/ou as conversas dos ocupantes mas a empresa não tenha autorização para fazer capturar e armazenar essas informações. Elas poderiam ser relevantes para a solução do processo. Todavia, como elas poderiam ser consideradas provas lícitas se foram as informações foram obtidas de maneira ilícita por um capitalista da vigilância que abusou do poder que tinha em relação ao usuário do seu produto? Se tivesse autorização para expropriar as informações e elas confirmarem que o réu realmente estava dirigindo o veículo cometendo uma grave infração de trânsito isso equivaleria a uma confissão do crime?

Os limites da confissão no processo penal brasileiro são bem conhecidos:

“…Se o réu confessa o fato, isso é suficiente no processo civil para tornar incontroversa a afirmação de que ele existe na forma como alegada pela parte contrária (CPC, art. 374, II). No processo penal, se o réu confessa o fato, isso não é suficiente para afirmar sua existência e, assim, fundar uma condenação, em face do princípio da presunção de inocência, que tem que ser preservado como interesse público pelo Estado.” (Prova e Verdade, Juarez Tavares e Rubens Casara, editora Tirant lo Blanch, São Paulo, p. 24)

“… uma confissão proferida fora dos autos não é válida, a não ser que for confirmada em juízo em todos os seus termos…” (Prova e Verdade, Juarez Tavares e Rubens Casara, editora Tirant lo Blanch, São Paulo, p. 27)

De qualquer maneira, essas são tecnicalidades que dizem respeito apenas às consequências derivadas do próprio uso do carro e do excedente comportamental expropriado de seu proprietário. Existem outras questões que merecem ser consideradas.

Como enquadrar juridicamente a ação furtiva dos capitalistas de vigilância que instalam múltiplos sensores ocultos para, por exemplo, capturar as imagens e as conversas dos usuários do veículo ou para expropriar dados dos Smartphones das pessoas que entram nele? O Código de Defesa do Consumidor poderá ser aplicado à lide se o consumidor tiver inadvertidamente dado autorização para a violação de sua intimidade?

As relações entre terceiros e o proprietário do carro podem ser facilmente resolvidas recorrendo-se ao Código Civil. Mas aquelas que derivam da ação furtiva do capitalista de vigilância em relação ao passageiro, autorizada pelo dono do veículo, pode gerar muita discussão jurídica. Não teria a vítima renunciado à privacidade ao entrar num veículo sabendo que ele estava equipado com recursos tecnológicos potencialmente invasivos?

A assimetria que existe entre os capitalistas da vigilância e os consumidores dos novos produtos que eles fabricam e/ou utilizam para expropriar excedente comportamental realmente possibilita discussões desta natureza no Poder Judiciário? No próximo texto desta série essa questão será objeto de discussão.

A modernidade é muito sedutora, mas nem sempre foi capaz de seduzir todo mundo. Em meados de 1992 ou 1993, por causa de minha profissão, tive a oportunidade de conhecer dois sindicalistas alemães. Eles vieram ao Brasil para uma série de atividades e ficaram hospedados na casa de um diretor do Sindicato que eu trabalhava. Durante a estadia deles em Osasco SP, tive a oportunidade de conversar com ambos várias vezes através de um intérprete.

Os dois utilizavam computadores. Um deles estranhou o fato do Sindicato ter apenas uma máquina de escrever eletrônica à sua disposição. Contei a ele que meu escritório particular já era informatizado. Isso é muito bom, disse ele.

O mais velho, na faixa etária de uns 50 anos, era adepto de novas tecnologias veiculares. O carro dele na época já tinha equipamentos que ainda não existiam no Brasil. O mais novo, na faixa etária de 40 anos, preferia carros antigos sem qualquer tipo de inovação tecnológica. A internet estava engatinhando no Brasil no início dos anos 1990. Na Alemanha ela já era uma realidade.

Não sei dizer como ambos estão reagindo às novidades automotivas impostas pelo capitalismo de vigilância. Mas tenho certeza de que preocupação com privacidade é maior na Europa do que no Brasil. Nossa vulnerabilidade cultural às novidades impostas pelo capitalismo de vigilância é muito grande. É por isso que comecei esta série de textos sobre o livro de Shoshana Zuboff.

Fábio de Oliveira Ribeiro

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