Balanço, por Lúcio Verçoza

Na estrada, só eu e ele acordados. Descemos a ladeira São Gonçalo com os dois em silêncio, escutando a voz do Milton Nascimento

Foto: Arquivo Pessoal/Lúcio Verçoza

Balanço

Por Lúcio Verçoza

 

Para o meu pai

 

Na estrada, só eu e ele acordados. Descemos a ladeira São Gonçalo com os dois em silêncio, escutando a voz do Milton Nascimento:

De novo na esquina os homens estão. Todos se acham mortais, dividem a noite, a lua e até solidão.  

Depois da ladeira uma longa reta, e no meio da reta ele apontou para a margem da pista. Havia um imenso pasto verde e morros ao fundo. – Foi atrás daquele cocuruto de morro que eu nasci. Atrás daquele morro era o Sítio Balanço. Ele não lembrava bem como era o sítio. Recordava apenas do cheiro, de imagens dispersas que pareciam sonhos e de histórias contadas pelos mais velhos. Não sabia se eram imagens criadas pelas memórias herdadas ou se eram imagens vividas. Deixou o sítio quando era uma criança pequena. E desde então, nunca mais retornou.

O carro aos poucos foi se afastando do morro, se aproximava da entrada da cidade de Porto Calvo. O cocuruto do morro que escondia o Balanço não era calvo. Eu tentava gravar a silhueta do cocuruto e imaginava meu pai criança se balançado debaixo de uma árvore frondosa. Foi nessa hora que entrou o som da faixa Morro Velho:

Filho do branco e do preto, correndo pela estrada atrás de passarinho. Pela plantação adentro, crescendo os dois meninos sempre pequeninos.

A voz do Milton vinha como que detrás do morro, e os olhos do meu pai se encheram de lágrimas. Ele não falou mais nada. Eu senti o que ele estava sentindo e ficamos calados. Cada um chorando a sua maneira metida a de homem, enquanto meus irmãos e minha mãe dormiam.

Filho do senhor vai embora, tempo de estudos na cidade grande. Parte, tem os olhos tristes, deixando o companheiro na estação distante.

Seguíamos em direção a Recife, sem tocar mais no assunto. Não precisava. Sabíamos que éramos cúmplices. Ele do desejo oculto de voltar à infância e eu por ter visto, ainda que por alguns instantes, o meu pai criança. E era uma criança tão doce que se permitia chorar na frente do filho, mesmo que escondido.

Ainda hoje quando eu desço a São Gonçalo, fico procurando a silhueta do cocuruto do morro. E traço planos de um dia subir o morro e ir procurar o que restou do Balanço, de vasculhar rastros da infância do meu pai, de encontrar a sombra de uma jaqueira que já não há, as memórias adormecidas e as trilhas do que ele é e do que eu sou. E faço promessas a mim mesmo de voltar ao Balanço junto com ele.

Não esqueça, amigo, eu vou voltar. Some longe o trenzinho ao deus-dará.

Redação

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