Bolsonaro e a antidiplomacia da morte, por Larissa Ramina

Como preservar a independência nacional e ao mesmo tempo adotar uma política externa entreguista, subordinada, subserviente, subalterna, vassala, capachista, servil, caudatária, pelega e, o mais grave, sem reciprocidade?

Bolsonaro e a antidiplomacia da morte

por Larissa Ramina

Analistas qualificados concordam no fato de que, nunca antes em 200 anos de história, a diplomacia brasileira alcançou tamanho desprestígio e miserabilidade no âmbito interno e internacional, regional e universal.

Uma das demonstrações desta constatação está na carta chamada “A reconstrução da política externa brasileira”, publicada em diversas mídias em maio de 2020, e assinada por ex-chanceleres, um ex-presidente e outras autoridades consideradas inimigos históricos, como FHC, Aloysio Nunes Ferreira, Celso Amorim, Celso Lafer, Francisco Rezek e José Serra, entre outros. Na referida carta, a atual política externa foi acusada de violar a Constituição Federal e de impor ao país danos gravíssimos e irreparáveis.

De fato, basta atentar para alguns dos princípios constitucionais que norteiam a atuação internacional brasileira elencados no artigo 4º da Carta Magna para chegar a essa conclusão. O primeiro deles é o princípio da independência nacional, seguido pela prevalência dos direitos humanos, autodeterminação dos povos, não-intervenção, igualdade entre os Estados, defesa da paz, repúdio ao terrorismo e ao racismo, cooperação internacional e a busca pela integração latino-americana, entre outros. Todos eles, sem exceção, foram brutalmente violados.

Como preservar a independência nacional e ao mesmo tempo adotar uma política externa entreguista, subordinada, subserviente, subalterna, vassala, capachista, servil, caudatária, pelega e, o mais grave, sem reciprocidade? Como promover a integração regional atentando contra o Mercosul, a Unasul e a Celac e adotando discursos e atitudes belicosas contra nossos vizinhos e parceiros comerciais? Como repudiar o racismo fazendo alianças com regimes xenófobos da Europa, que flertam com o autoritarismo e o racismo? Como preservar a soberania promovendo interesses alienígenas que inclusive arrastam o Brasil para situações de conflitos com outros Estados, ameaçando a paz, a cooperação internacional, a autodeterminação dos povos e inclusive ferindo de morte o princípio da prevalência dos direitos humanos? Como proteger os direitos humanos diante da catástrofe ambiental sem precedentes e diante das ações que deixaram o Brasil de fora do esforço mundial para a busca da vacina contra a covid-19, como os ataques a OMS, o apoio à manutenção das patentes das vacinas e os esforços para destruir as boas relações com a China?

Mas não se trata só de inconstitucionalidade, colonialismo e antinacionalismo: a “antidiplomacia” brasileira, como tem sido chamada, é também ilícita e criminosa, inclusive violadora de normas imperativas do direito internacional, as normas de direito cogente. A antidiplomacia da morte menospreza a ciência e desdenha do direito à vida.

Graças e ela, o Brasil se converteu em verdadeiro pária internacional, motivo de orgulho para o atual chanceler Ernesto Araújo, fonte inesgotável de controvérsias. Mas o que esperar de uma diplomacia alinhada à ideologia lunática olavista contra o suposto ‘globalismo’, ou seja, a negação do multilateralismo?

A antidiplomacia da morte atacou a proposta feita pela Índia em 2020 para a quebra de patentes sobre vacinas, que visava permitir sua produção em laboratórios genéricos. Agora, a Índia argumenta que é justamente a falta de produção de versões genéricas da vacina que impede o abastecimento global. O Brasil foi o único país em desenvolvimento a se opor à proposta, abandonando sua posição tradicional de apoiar a democratização do acesso a medicamentos e abalando a confiança da Índia. Também desdenhou inicialmente de uma coalizão global pelas vacinas; optou por uma política que minava a confiança na Coronavac; apostou todas as fichas em uma única vacina e investiu num discurso negacionista. Por fim, reiteradamente atacou a China com tom xenófobo e ideológico, fazendo estremecer as boas relações entre os dois grandes parceiros comerciais e prejudicando os interesses nacionais. Por isso, não seria estranho que a demora na liberação da matéria-prima chinesa para produção das vacinas no Brasil seja uma forma de retaliação às agressões do governo Bolsonaro.

Tantos erros da antidiplomacia da morte comprometeram o combate à pandemia e ameaçam causar um colapso na recém-iniciada campanha de imunização nacional, provocando… mais mortes.

Do ponto de vista retórico, o negacionismo fez prosperar a narrativa anticientífica da pós-verdade, levando à exposição da população ao vírus, à contaminação e a mortes evitáveis numa cruzada ideológica, racista, classista e sexista. O discurso negacionista via fake news deu origem a uma guerra de narrativas e ações que levaram ao desmonte da proteção social, sanitária e ambiental. O resultado foi uma confusão na opinião pública, afetando os comportamentos coletivos e promovendo um efeito genocida consubstanciado na perda de vidas por incompetência, negligência, omissão, decisões sem base científica e descaso para com a crise sanitária.

Entretanto, esse panorama desnuda algo que é muito mais grave, que é a presença de absoluta falta de vontade política para salvar vidas. Tudo indica que estamos diante de uma necropolítica deliberada e criminosa de violação dos direitos humanos, e de uma antidiplomacia da morte. Quando se despreza a vida, entramos numa era de barbárie, que ultrapassa os limites civilizatórios. A saída mais imediata para estancar o genocídio é o impeachment, com base no animus genocida do usurpador do poder. Trata-se de um impeachment em prol do direito à vida.

Larissa Ramina – Professora de Direito Internacional da UFPR e membro da ABJD – Associação Brasileira de Juristas pela Democracia

Redação

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