Michel Aires
Graduação em filosofia pela UNESP. Mestre em filosofia pela UFSCAR. Doutor em educação pela USP. Tem experiência nas áreas de Filosofia e Educação, com ênfase na Teoria Crítica, em particular, nos pensamentos de Herbert Marcuse e Theodor Adorno. Possui artigos publicados nas áreas de educação, filosofia e ciências sociais.
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Como formamos nossa personalidade e visão de mundo?, por Michel Aires de Souza Dias

O que faz do indivíduo uma personalidade, é que ele ocupa um lugar no espaço social, adquirindo uma compreensão da realidade, uma vez que desde sua origem ele foi exposto a suas influências.

Como formamos nossa personalidade e visão de mundo?

Por Michel Aires de Souza Dias[1]

É uma ilusão pensar que somos  personalidades autônomas, conscientes,  com um conjunto de características e qualidades particulares. A personalidade é antes de tudo uma produção histórica e social. Cada indivíduo se constitui a partir de uma bagagem socialmente adquirida, onde ele incorpora estruturas sociais em forma de disposições. O sociólogo francês Pierre Bourdieu deu uma enorme contribuição sobre esse assunto. Ele compreendeu o sujeito como um “habitus”, ou seja, como um sistema de disposições herdadas.  Para ele, a gênese de nossos modos de ser, pensar, agir e valorizar surge da incorporação de estruturas sociais objetivas.   

É vivendo em sociedade que assimilamos as normas, regras, valores, preceitos e formas de comportamento de nosso grupo ou classe social. É por meio do habitus que desenvolvemos a nossa visão de mundo. A partir de nosso sistema de disposições herdadas percebemos a realidade, nos guiamos e somos capazes de julgá-la. O habitus pode ser entendido como uma forma de condicionamento, que produz um sistema de disposições duradouras para a ação, organizadora de práticas, esquema de percepção e representação, geradora de princípios e valores interiorizados, que regula a conduta dos agentes na estrutura social (BORDIEU, 1980). Segundo Setton (2001), a noção de habitus pode ser pensada como uma identidade social, uma experiência biográfica, um sistema de orientação. Nesse sentido, é uma matriz cultural que predispõe os indivíduos a fazerem suas escolhas.

O que faz do indivíduo uma personalidade, é que ele ocupa um lugar no espaço social, adquirindo uma compreensão da realidade, uma vez que desde sua origem ele foi exposto a suas influências. É por meio do lugar que ele ocupa no espaço social que ele adquire um sistema de disposições para a ação e para a compreensão do mundo. Como avalia Bourdieu (2001), o indivíduo como um ser abstrato, intercambiável, sem qualidades, também se constitui como agente real, ou seja, enquanto habitus, com sua história, suas propriedades incorporadas, tendo a característica de estar aberto e exposto ao mundo. Nesse sentido, são as condições materiais e culturais de existência que  condicionam e moldam a personalidade.

Na teoria do sociólogo francês,  o corpo do indivíduo biológico está situado em um lugar, topos, ocupando uma posição no espaço físico e no espaço social.  O espaço social é uma estrutura de justaposição de posições sociais, é o lugar da exclusão mútua, é o lugar das distinções, das relações de força e poder. A busca da distinção no espaço social é o motor de toda conduta humana.         

Como explica Bourdieu (2004), o espaço social é determinado por estruturas sociais objetivas. Essas estruturas ele denomina campos sociais, que são independentes do indivíduo, mas que são capazes de orientar seu comportamento, suas representações e as práticas sociais. Por exemplo, o mundo acadêmico com sua hierarquia de títulos é um campo social. A Igreja com todos os seus dogmas e rituais é um campo social. O mundo da política com suas instituições e relações de poder é um campo social. Durante toda nossa vida vamos sendo socializados por nosso grupo, por nossa classe social e pelos campos sociais que participamos. Nesse sentido, há uma gênese social da nossa visão de mundo, dos nossos modos de perceber, pensar e agir na realidade.       

No capitalismo os indivíduos e os grupos são definidos por sua posição relativa no espaço social. O espaço social é hierarquizado pela desigual distribuição de capitais. São as condições materiais de existência que definem a posição de cada indivíduo, grupo ou classe no espaço social. Desse modo, o poder e o prestígio surgem e se constituem a partir da posição que o indivíduo ocupa na estrutura social.  Não se trata, portanto, de uma hierarquia piramidal, mas de um espaço social multidimensional, hierarquizados por uma pluralidade de capitais.  O espaço social é construído de modo que os agentes ou os grupos são distribuídos segundo dois princípios de diferenciação simbólica, que são o capital econômico e o capital cultural. Quanto mais próximos os agentes estiverem entre essas duas posições mais gostos, formas de pensar e qualidades em comum eles vão ter.

Aqueles que ocupam uma alta posição no espaço social também ocupam um lugar privilegiado no espaço físico. O indivíduo que ocupa uma alta posição na hierarquia social possui grande probabilidade de morar em um bairro nobre. Ser da alta sociedade é ocupar altas esferas do mundo social.  Frequentar restaurantes caros, lojas de altas grifes, clubes privados e ocupar lugares reservados em eventos caracteriza simbolicamente a posição social do seu usuário. As elites são devoradoras de espaço físico e social.

As representações e os interesses dos indivíduos variam segundo sua posição ocupada no espaço social. Bourdieu (2008) argumenta que o habitus é um princípio gerador de práticas distintivas. O que o operário come, e sobretudo sua maneira de comer, o esporte que pratica e sua maneira de praticá-lo, suas opiniões políticas e sua maneira de expressá-las, que são muito diferentes do consumo e das atividades de um empresário industrial. O habitus se fundamentam em esquemas classificatórios, princípios de visão e de divisão e gostos diferentes. Eles estabelecem as diferenças entre o que é bom e o que é mau, entre o que é distinto e o que é vulgar. Assim, o mesmo comportamento ou o mesmo bem pode parecer distinto para um, pretensioso ou exibicionista para outro ou vulgar para um terceiro.

Na teoria bordieusiana, existir em um espaço, ser um ponto, é diferir, ser diferente, é ser distintivo, ser significativo se opondo ao que é insignificante. Em termos práticos, isso significa morar em um bairro nobre ou em um bairro popular, gostar de futebol ou hipismo, beber cerveja ou Whisky, possuir uma Ferrari ou um fusca, ser magro ou gordo, ser alto ou baixo, ter pele branca ou negra, etc. Na opinião de Bourdieu (2008), só se torna uma diferença visível, perceptível, se ela é percebida por alguém capaz de estabelecer a diferença, já que está inscrita no espaço em questão, esse alguém não é indiferente e é dotado de categorias de percepção, de esquemas classificatórios, de um gosto, que lhe permite estabelecer diferenças, discernir, distinguir. É nesse sentido que o homem enquanto um ser social, determinado por uma posição no mundo, pensa a partir dessa posição, pensa a partir de categorias.

É também a partir da nossa posição social que tomamos certas posições políticas. Ser de esquerda ou de direita depende da nossa posição na estrutura social. Nesse sentido, há uma grande propensão de empresários e comerciantes serem de direita e professores e trabalhadores serem de esquerda. Contudo, a nossa escolha política vai depender das disposições que herdamos em nossa trajetória histórica. Se acreditamos que o Estado deve interferir na economia e na vida dos indivíduos para o bem-estar social, colocando os interesses coletivos acima dos particulares, isso vai depender das nossas disposições herdadas. Do mesmo modo, se acreditamos na liberdade individual, na meritocracia e no livre mercado, isso também vai depender das disposições que herdamos em nossa trajetória histórica.

Para Bourdieu, um dos papéis do cientista social é descrever a lógica de funcionamento das estruturas sociais.  O espaço social aparece como um conjunto de relações invisíveis, objetivas, entre as posições ocupadas nas distribuições de recursos ou poderes,  que podem ser usados de modo eficiente para se apropriar de bens que estão em disputa. Esse espaço de relações sociais é tão real como o espaço geográfico. Para que o indivíduo mude de lugar,  nesses espaços,  é necessário tempo, trabalhos, sofrimentos, esforços. Os agentes trazem as marcas e os estigmas desses esforços. Por causa disso, o espaço social é um espaço de conflito, de luta simbólica, onde os agentes e grupos dominantes procuram manter sua posição e domínio social.

Referências

BOURDIEU, Pierre. Razões Práticas: sobre a teoria da ação. Trad. Mariza Correa.  9° edição.  Campinas: Papirus, 2008.

BOURDIEU, Pierre. Coisas Ditas. Trad. Cássia R. da Silveira e Denise M. Pegorin. São Paulo: Brasiliense, 2004

BOURDIEU, Pierre. Meditações Pascalianas. Trad. Sérgio Miceli. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001

BOURDIEU, Pierre. Le sens pratique. Paris: Les Éditions de Minuit, 1980.   

SETTON, M. Indústria cultural: Bourdieu e a teoria clássica. Comunicação & Educação, São Paulo, V. 22, p.  26-36, set. /dez. 2001.


[1] Doutorando em Educação pela Universidade de São Paulo. E-mail: [email protected]

Michel Aires

Graduação em filosofia pela UNESP. Mestre em filosofia pela UFSCAR. Doutor em educação pela USP. Tem experiência nas áreas de Filosofia e Educação, com ênfase na Teoria Crítica, em particular, nos pensamentos de Herbert Marcuse e Theodor Adorno. Possui artigos publicados nas áreas de educação, filosofia e ciências sociais.

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