Crônica da razão desestatizante
por André Roncaglia
O novo regime fiscal inaugurado com a EC 95 de 2016 gerou um senso de urgência para a aprovação de reformas que viabilizassem o teto de gastos. A reforma da previdência aprovada em 2019 agora precisa do reforço das reformas administrativa e tributária. Na ausência delas, a narrativa do teto como âncora fiscal desmorona.
Enquanto as reformas não passam, Bolsonaro mostra o tipo de governante que é com ao Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA), encaminhado ao Congresso no último dia 31 de agosto. Tirando dinheiro das pastas da saúde, da ciência e tecnologia e do desenvolvimento regional, quer quadruplicar o gasto com publicidade. Por pressão das redes sociais, a educação deu uma viravolta e superou os gastos com defesa… por enquanto. Há ainda muita negociação pela frente.
Mesmo com o Teto de Gastos assumindo a posição de âncora fiscal, o governo prevê um déficit primário de R$ 233 bilhões para 2021, com o déficit da previdência chegando a R$ 286,9 bilhões.
Esta estimativa se apoia numa previsão otimista de 3,20% de crescimento do PIB no ano que vem. Isto significa que, se a realidade frustrar novamente as previsões de Guedes, a arrecadação tende a ser ainda menor. O déficit já anabolizado – em comparação com o valor de 2019 – tende a inflar ainda mais. Vale lembrar que estes números não consideram o Renda Brasil, a nova menina dos olhos de Bolsonaro. Na melhor das hipóteses de Guedes, este programa custará R$ 60 bilhões e exigirá que o governo encontre R$ 30 bilhões sobrando em algum lugar para financiá-lo.
No caminho havia um mercado…
O tamanho da paciência do mercado com Guedes dependerá de como fecharão as contas em 2020. E aqui o cenário é sufocante para o ministro. Com a extensão do auxílio emergencial por mais quatro meses (com metade do valor anterior de R$ 600), o déficit de R$ 787 bilhões registrado até o final do primeiro semestre de 2020 deve superar a marca do trilhão de reais até o final do ano. A dívida bruta que, em julho bateu 86,5% do PIB, deverá absorver este elevado excesso do gasto sobre a arrecadação.
Para digerir estes números e não catapultar a ponta longa da curva de juros, o mercado exige que o governo demonstre constante capacidade de iniciativa. Qual prosador de promessas, Guedes exibe protagonismo cênico, mesmo sob fritura a fogo baixo. O ministro tem se desdobrado para raspar qualquer sobra de dinheiro não utilizado em áreas como saúde e educação para atender às demandas do chefe. Na outra ponta, faz promessas ao mercado de obter cifras astronômicas com o enxugamento da máquina do Estado.
É sob esta luz que devemos analisar a reticência de Bolsonaro no tocante às reformas. Análoga ao humor reacionário, a afobação executiva de Guedes reforça desigualdades arraigadas ao apenas “olhar para baixo” quando o assunto é reformar o Estado. Primeiro, a necessidade de apresentar uma reforma tributária “original” e bastante limitada, concentrada nos impostos federais sobre consumo e deixando intocada as flagrantes injustiças sociais na tributação direta das pessoas físicas. Achados de uma pesquisa recente do IPEA apontam que “os impactos redistributivos da tributação direta são pífios, mostrando haver espaço para que esse instrumento seja empregado na diminuição da desigualdade”.
Em segundo lugar, a reforma administrativa anunciada nesta semana, quando há poucos dias Bolsonaro havia decidido não atuar nesta frente em 2020. A mudança tem todo o cheiro de improviso, mas anima a plateia farialimer ao jogar pedra na “Geni da cobertura jornalista”: os servidores público. Em entrevista aqui para o GGN, o consultor legislativo do Senado Federal, Vinicius Amaral, “não resolve os problemas existentes e traz de volta problemas que já haviam sido superados” (mais detalhes aqui). Reforçando o princípio: é uma reforma que olha apenas para o “andar de baixo” do funcionalismo público. Afinal, ela afeta apenas o poder Executivo e, como de costume, afeta as carreiras menos organizadas, blindando juízes, promotores, parlamentares e militares.
Espremido pelas pretensões populistas de Bolsonaro, pela pressão do mercado por resultados no plano das reformas, pelas limitações políticas impostas pelas corporações mais poderosas do Estado e pelo teto de gastos, Guedes desnuda as hierarquias tradicionais do Estado brasileiro. Eis a razão desestatizante que informa o poder de improvisação do ministro.
Inspirado pelo princípio da subsidiariedade, uma das cloroquinas do direito econômico, Guedes avança no desmantelamento dos segmentos weberianos do Estado brasileiro para proteger o estrato patrimonialista que produz os reais privilégios que irritam o espírito liberal.
A necropolítica de Bolsonaro vai promovendo outra “crônica de uma morte anunciada”. Em 30 anos, acordaremos para o que o mundo desenvolvido vem descobrindo hoje: a necessária e insubstituível competência do Estado e de seus servidores.
André Roncaglia é professor de economia da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) e pesquisador associado do CEBRAP. Twitter: @andreroncaglia.
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Mais uma vez André Roncaglia mostra a capacidade do “Economista/pensador Brasileiro”. Com mente lúcida, refinamento político, conhecimento de causa e clareza na apresentação. Precisamos Refundar o Brasil a partir de argumentações deste nível.
Recado aos jovens economistas e para o velhaco estrambótico.
https://www.youtube.com/watch?v=Ic5xlYUORSQ