Lugar de gente feliz e com muita liberdade de escolha, ou o quê? Desconstruindo o supermercadismo contemporâneo.
por Antonio Hélio Junqueira[1]
Graças a Deus, temos os jornalistas! Bons jornalistas e gente dedicada, em tempo integral (ou quase) a desmascarar as astúcias, engodos e seduções desse templo do consumo, de pecado e perdição, ao qual damos o nome de supermercado. Na falta de uma ciência mais ágil e certeira na investigação e denúncia das perversidades econômicas e socioculturais desses equipamentos comerciais de abastecimento alimentar – que o que mais fazem é atentar contra a integridade da vida e das saúdes humana e planetária –, são os jornalistas os que primeiro nos socorrem.
Isso não é de hoje. O norte-americano Michel Pollan[2], um dos mais celebrados autores ativistas sobre comida e moralidades associadas aos nossos hábitos alimentares é, antes de tudo, um jornalista. O também norte-americano Benjamin Lorr, que, embora não graduado ou diretamente atuante no jornalismo, teceu seus caminhos por essa trilha, acaba de nos assaltar o espírito com o seu surpreendente “The secret life of groceries: the dark miracle of the American supermarket” [3], ainda sem tradução prevista por essas terras brasilis. Da Espanha, Esther Vivas Esteves, jornalista, mestre em Sociologia e ativista política de movimentos a favor da soberania alimentar e consumo crítico, recentemente contribuiu com o seu “ O negócio da comida” (2017)[4] , felizmente traduzido por aqui, e, finalmente, mas com relevância nem um pouco menor na esfera de nossa América Latina, a jornalista e escritora argentina Soledad Barrutti, especializada na crítica aos sistemas alimentares e indústria de alimentos, já nos brindou com dois best-sellers: Malcomidos (2013)[5] e Mala Leche (2013)[6].
Toda essa falação introdutória tem um bom propósito e mira certa: o lançamento – que ocorre nessa segunda quinzena de outubro – do livro-reportagem dos jornalistas e ativistas em prol das causas e dos bons combates alimentares, João Peres e Victor Matioli. O livro, “Donos do mercado: como os grandes supermercados exploram trabalhadores, fornecedores e sociedade”, é mais uma bem-vinda iniciativa do projeto “O joio e o trigo”, coletivo do jornalismo brasileiro dedicado a investigar exclusivamente sistemas alimentares, saúde e doenças crônicas correlacionadas. O grupo vem, desde 2017, atuando e militando nas frentes jornalísticas e editoriais afetas a esses temas, construindo presença ativa e atuante no Brasil e agregando uma produção crítica cada dia mais notável. O livro nos chega pela parceria de “O joio e o trigo” com a simpática, independente e engajada Editora Elefante, sediada no Bixiga paulistano.
Nas palavras dos próprios repórteres-autores, o conjunto das maldades perpetradas pelo supermercadismo contra meio mundo decorre da sua própria essência e razão mesma de existência, enquanto ponte e expressão máxima da mais profunda intimidade entre o agronegócio, a indústria de ultraprocessados e o varejo alimentar. Não se trata de mera retórica, mas sim da imposição de um modelo de negócio e de exploração capitalista construído para o controle total da cadeia alimentar, desde as fontes de fornecimento, até os bolsos e bocas dos consumidores, sempre na busca insone e incansável da maximização dos lucros a qualquer custo; ou melhor dizendo: ao custo mais achatado e escorchante possível. Não fica difícil perceber que a lógica supermercadista é, pois, a da organização fordista do binômio produção-distribuição e a da sujeição taylorista de seus empregados, subordinados a regimes de trabalho em ritmos intensos, repetitivos, rotineiros e mecanizados, desprovidos de humanidade, autonomia e decisão.
Abordando as duas principais redes de supermercados atuantes no Brasil – Pão de Açúcar e Carrefour – o livro nos permite percorrer caminhos e descaminhos do suprimento popular de ingredientes e de comida, instigando profundas reflexões sobre o que comemos ou deixamos de comer, ao mesmo tempo em que nos faz pensar sobre outros agentes envolvidos no processo do abastecimento aos quais não estamos acostumados a prestar atenção: fornecedores e trabalhadores.
Definindo o supermercadismo como modelo, elemento de articulação e espaço da expressão material e simbólica do consumismo contemporâneo, os autores abrem caminho para refletirmos sobre os porquês de tantos produtos sumirem do mercado, nunca serem encontrados nas gôndolas e apagarem memórias, tradições, afetos, culturas e vínculos territoriais.
De fato, a lógica desses equipamentos e plataformas impõe práticas normativas e operacionais seletivas, especializadas na homogeneização de mercadorias em larga escala, desvinculando-as dos ciclos naturais dos alimentos, das temporadas sazonais, dos hábitos de consumo e das vocações agroecológicas regionais. As plataformas impõem, assim, rígidos padrões estéticos e qualitativos dessazonalizados e hegemônicos só alcançáveis pela produção da comida em moldes industriais, mesmo em se tratando dos produtos vegetais perecíveis como frutas e hortaliças. Para dar conta disso, só entram na linha de produção os alimentos oriundos de explorações, plantas ou sementes genéticas ultramelhoradas, dependentes, portanto, de protocolos de produção altamente exigentes em máquinas, equipamentos, insumos químicos, bioquímicos e todo uma parafernália tecnológica alijada das reais necessidades da saúde dos corpos físico e social. Produtos, produtores e processos tradicionais das cadeias populares de abastecimento alimentar ficam literalmente fora dessas esteiras fordistas e colocam em risco a sobrevivência de populações não apenas de gente, mas de plantas e animais não adaptados ou não interessantes ao grande capital varejista.
Embora de imensa magnitude, tal fato está longe de ser o único problema com que nos preocuparmos. Também os produtores e fornecedores de mercadorias adaptadas à máquina mercante supermercadista sofrem abusos absurdos para conseguirem realizar suas entregas e auferirem renda mínima para a garantia de suas sobrevivências e as de seus empreendimentos. Dilatadíssimos prazos para os pagamentos, arrochos nas margens, imposição de bonificações, descontos por quebras e taxas administrativas, além das inomináveis práticas de presentear com “enxoval” aberturas de novas lojas são apenas alguns dos instrumentos contemporâneos da tortura dos renitentes supridores.
Para quem não sabe, ou já se esqueceu, os ditos “enxovais” são as ofertas gratuitas e involuntárias de mercadorias com que são “agraciadas” as redes varejistas para que possam celebrar e festejar novas inaugurações com seus consumidores com preços reduzidos, muitas vezes abaixo mesmo do próprio custo de produção.
Isso dá processo? Dá! Vender mercadoria com preço artificialmente baixo vai contra as boas práticas da concorrência? Vai! Agora…entrar na jogada da sua denúncia equivale a tornar-se carta fora do baralho…mofar na fila… ou, como se diz nos jargões do mundo de hoje, condenar-se a um virtual linchamento…. Bem, daí já são outros quinhentos e tantos.
O livro introduz, também, outro tema interessantíssimo e ainda bem pouco discutido entre nós: as exigências de compartilhamento de informações estratégicas dos fornecedores (especialmente dos peixes mais graúdos da indústria alimentícia) com os agentes supermercadistas e as práticas, daí decorrentes, do copycat, verdadeiras chaves de cadeia quando o assunto é defesa da concorrência. Investigando os limites e possibilidades linguísticas dessa palavra, uma das mais puras delícias que se pode encontrar na livre navegação e pesquisa na internet é a definição de copycat dada pelo professor de inglês e blogueiro, Mairo Vergara. Para ele, na função de substantivo, o termo inglês deve ser traduzido por “imitador”, exatamente como é usado nos filmes e séries de investigação criminal, prossegue ele, para tratar um criminoso que imita o “modus operandi” de outro, já mais famosão e bem-sucedido no ramo. Não é mesmo uma explicação perfeita para esse caso?
O terceiro tripé da questão supermercadista colocada pelos autores-repórteres são os próprios trabalhadores dessa indústria. Nesse ponto, chamam nossa atenção para a precarização do trabalho dos ditos “colaboradores”, sujeitos a jornadas extenuantes, esforços repetitivos e estressantes, às vezes insalubres e geradoras de esgotamento e enfermidades laborais, nos mesmos moldes dos fenômenos verificados nas plantas e linhas industriais de produção. Mas não é só. A isso se somam os salários achatados, os exércitos de profissionais de reserva para o trabalho terceirizado e temporário, a exigência de disponibilidade para os horários flexíveis e as políticas antissindicalistas. Para fechar toda a maldade: muito trabalho extra sem ressarcimento, ou seja, sempre muita cortesia com o chapéu alheio.
No Brasil, assim como em toda área abaixo do Equador de um modo geral, desde os anos 60, o advento dos supermercados foi saudado com as entusiasmadas loas da modernidade higienista contra as feiras livres, mercearias e os mercados tradicionais e como panaceia para a supressão da carestia e melhoria das dietas alimentares. Tendo essas verdadeiras “catedrais do consumo” – capazes de transmutar as mais corriqueiras e banais operações de compra em “cerimônias quase litúrgicas”[7] – como escudos sociais, os empresários do ramo souberam extrair toda sorte de vantagens econômicas e políticas dos governos de plantão, ao mesmo tempo em que foram extremamente hábeis em alinhar ao seu favor, os discursos de apoio da tecnocracia responsável por pensar o desenvolvimento do País[8].
O discurso produtivista-desenvolvimentista que envolveu as práticas e as políticas do supermercadismo no Brasil foi, desde o início, blindado pelos liberalismos e neoliberalismos reinantes e têm servido de esteio e alicerce para justificar políticas de desmonte das redes de entrepostos públicos de abastecimento – as redes de Ceasas e de outros equipamentos afinados com os propósitos da segurança alimentar –, de políticas públicas de proteção social em alimentação e nutrição – como os estoques reguladores de alimentos, para ficar apenas em um exemplo – e de educação alimentar para a saúde e o bem-estar social.
A fé inabalável na eficácia e providência da “mão invisível” do mercado – que na verdade só faz esconder o livre jogo dos interesses das elites econômicas – não se permite questionar e intimidar, mesmo quando submetida às mais sinceras e justificadas lamúrias dos consumidores, que fazem chegar à autoridade máxima do País o singelo apelo para baixar o preço do arroz, que já não cabe nos minguados bolsos da classe trabalhadora e muito menos ainda dos quase 14 milhões de desempregados que desnorteiam nosso senso de justiça e fraternidade.
Frente à resposta grosseira e habitual do mandão de plantão, vale lembrar que o que está em jogo não é a reivindicação do retorno das polêmicas práticas do tabelamento dos preços dos alimentos no varejo (não queremos voltar a nos transformar em fiscais nem de Sarney, ne de presidente nenhum, valha-nos, Deus!), nem tampouco a instituição de práticas de turismo de abastecimento (não queremos fazer viagens de compra à Venezuela). Na verdade, a discussão que não pode mais ser adiada é aquela que instaura o questionamento dos sistemas alimentares vigentes, interpelando o quanto aportam de injustiça e inequidade social, de insustentabilidade ambiental e de desatenção à saúde e bem-estar de todos nós, consumidores e cidadãos.
Os supermercados – já confundidos com catedrais de consumo e promotores de experiências míticas, “quase litúrgicas” de compras, conforme já vimos – não estão acima do julgamento ético e moral. Cabe-nos desnudar seus diabolismos e denunciar seus caminhos de injustiça e perdição. O lucro é para poucos, muito poucos, porém a danação é coletiva.
Nesse sentido, “Donos do mercado” e seus autores chegam a nós plenos de som e fúria, porém repletos de significados e das melhores intenções E isso é muito bom! Trata-se de uma primeira abordagem de um tema espinhoso e muito amplo que, seguramente, merecerá novas e oportunas investidas investigativas, coisa que esses repórteres sabem fazer muitíssimo bem. Vamos torcer e aguardar.
Por ora, vale mergulharmos na leitura e reflexão crítica das perspectivas e olhares que nos são propostos e descobrir que talvez o lugar de gente realmente feliz não seja exatamente aquele com os quais nos acostumamos para realizar nosso suprimento cotidiano de comida e depositar, em confiança, nossa saúde e nossos desejos de um mundo mais justo, inclusivo e amigável.
E para terminar, vamos acabar de vez com essa balela de que eles nos deixam livres, leves e soltos para escolher o que comeremos. Eles já escolheram por nós! E, num tribunal hermético, herético, infalível e inapelável, decidiram quem está dentro e quem está fora das prateleiras, gôndolas e dos carrinhos de compra, mesmo que sejam aqueles construídos de material totalmente reciclável, verde, impoluta e irretocavelmente ecossustentável.
[1] Doutor em Ciências da Comunicação (ECA/USP), com pós-doutorado e mestrado em Comunicação e Práticas de Consumo (ESPM/SP). Engenheiro Agrônomo (ESALQ/USP). Pós-graduado em Desenvolvimento Rural e Abastecimento Alimentar Urbano (FAO/PNUD/CEPAL/IPARDES) e em Organização Popular do Abastecimento Alimentar Urbano (FEA/USP). Pesquisador e consultor de empresas em Inteligência de Mercado, Estudos do Consumo, Tendências de Mercado e Marketing. Sócio-proprietário da Junqueira e Peetz Consultoria e Inteligência de Mercado.
[2] POLLAN, Michael. O dilema do onívoro: uma história natural de quatro refeições. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2007.
[3] LORR, Benjamin. The secret life of groceries: the dark miracle of the American supermarket. New York: Avery; Penguin Randon House, 2020.
[4] ESTEVE, Esther Vivas. O negócio da comida: quem controla nossa alimentação? São Paulo: Expressão Popular, 2017.
[5] BARRUTI, Soledad. Malcomidos: Cómo la industria alimentaria argentina nos está matando. Buenos Aires: Planeta, 2013.
[6] BARRUTI, Soledad. Mala leche. El supermercado como emboscada. Por qué la comida ultraprocesada nos enferma desde chicos. Buenos Aires: Planeta, 2018
[7] SUPERMERCADOS vencerão a guerra da comida? Folha de São Paulo, Primeiro Caderno, p. 32, 13 de dezembro de 1970.
[8] JUNQUEIRA, Antonio Hélio; PEETZ, Marcia da Silva. 100 anos de feiras livres na cidade de São Paulo. São Paulo: Via Impressa Edições de Arte, 2015.
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