E o que mais as periferias devem fazer para serem ouvidas?, por Ion de Andrade

E o que mais as periferias devem fazer para serem ouvidas?

por Ion de Andrade

O Navio Negreiro

“Existe um povo que a bandeira empresta
P’ra cobrir tanta infâmia e cobardia!…
E deixa-a transformar-se nessa festa
Em manto impuro de bacante fria!…
Meu Deus! meu Deus! mas que bandeira é esta,
Que impudente na gávea tripudia?
Silêncio. Musa… chora, e chora tanto
Que o pavilhão se lave no teu pranto! …

Auriverde pendão de minha terra,
Que a brisa do Brasil beija e balança,
Estandarte que a luz do sol encerra
E as promessas divinas da esperança…
Tu que, da liberdade após a guerra,
Foste hasteado dos heróis na lança
Antes te houvessem roto na batalha,
Que servires a um povo de mortalha!…”

Os atestados de óbito dos jovens mortos em Paraisópolis já começaram a ser conhecidos. Asfixia, traumatismo raquimedular… suas roupas não atestam pisoteamento.

O governo federal se prepara para acabar com o já frágil e pouco aplicado excludente de ilicitude, o que permitirá maior liberalidade no tratamento das mortes produzidas pela polícia.

O governo Dória já começou a desacreditar a “versão” da comunidade de Paraisópolis.

Venho repetidamente sinalizando aqui nessa coluna que a questão das periferias é, de longe, o maior problema social brasileiro e que elas só estão assim pelo abandono crônico e sistemático a que são submetidas e que esse é a mecanismo pelo qual o Estado brasileiro, sucedâneo da Casa Grande, reproduz a sociedade brasileira como ela é. Como disse uma ativista negra, a única presença do Estado nas periferias é o cano do fuzil.

Como tenho dito, esse abandono é de difícil percepção porque o ente responsável por ele, o Estado que oprime por sua deliberada ausência, não está, é claro, presente para ser responsabilizado pelo enorme conjunto de obrigações civilizatórias que deixou de cumprir naquelas terras deixadas ao Deus dará, fato que tende a responsabilizar o excluído por sua exclusão e o miserável por sua miséria.

É óbvio que não se pode assimilar a esquerda e a direita no que tange à responsabilidade pela miséria obscena que agride diariamente o nosso povo, mas é indiscutível que o desalento vivido pelas periferias e zonas rurais no Brasil responsabiliza o conjunto das forças políticas que governam ou governaram esse Estado Casa Grande ou esse verdadeiro Navio Negreiro, pois o seu propósito subjacente, a moenda de corpos e almas, nunca foi quebrado. Quem o conduziu tomou parte, uns sabendo e outros sem saber.

A situação da Chácara Santa Luzia no DF (clique aqui) é a prova definitiva dessa responsabilidade nacional. Entretanto, seria justo considerar que a complexidade do fenômeno de um Estado que oprime por sua ausência, não tenha permitido que fosse compreendido a tempo pelo campo progressista para uma ação de enfrentamento mais robusta. É realista e justo considerar isso e a crítica a faço com o profundo desejo de que esse campo progressista se levante e vá cumprir com a sua missão histórica.

 Portanto, embora a comparação entre a esquerda e a direita seja impossível, essa dramática realidade nacional, não isenta o campo progressista sobretudo da responsabilidade de persistir no erro de repetidamente não pautar a centralidade das periferias e zonas rurais para as políticas públicas, a começar por aquelas de âmbito municipal, que são as que nos interessam nessa quadra.

Mas…. novamente se avizinham as eleições municipais sem que essa agenda dê ares de que será priorizada. Dela, mais uma vez não se ouve falar.

A contemporaneidade, a dignidade, os equipamentos coletivos cruciais para a inclusão social e as políticas públicas convergentes com esse propósito nas Periferias e Zonas Rurais ficarão, ao que tudo indica, mais uma vez para as calendas gregas. E o Estado Casa Grande poderá a seu bel-prazer continuar como sempre fez, aparecendo nessas Senzalas, como cano de fuzil, nos seus safaris de jovens impúberes e crianças.

O ocorrido em Paraisópolis responsabiliza diretamente a cultura da Extrema Direita que está sendo implantada no Brasil, e a situação, obviamente, está de mal a pior. Porém massacres semelhantes a esses nunca saíram dos nossos noticiários. A sua persistência no tempo é a marca indelével de uma responsabilidade nacional, em tudo igual àquela que Castro Alves denunciou em Navio Negreiro há 151 anos.

Atualizando o Navio Negreiro, diria que se nessas eleições de 2020, o campo progressista, novamente não pautar a centralidade das Periferias e Zonas Rurais no que toca às políticas públicas de que necessita em todos os aspectos para sua dignidade e emancipação e que começam no município, a parte saudável da nação deve considerar seriamente clamar aos céus para que nos poupe de tanta vergonha e cinismo e acabe de uma vez com o Brasil, pois é um cadáver insepulto e putrefato.

Ion de Andrade

Médico epidemiologista e professor universitário

Ion de Andrade

Médico epidemiologista e professor universitário

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