Economia de Mercado não Garante a Democracia Econômica, por Joaquim Pinto de Andrade

O desejo dos mais ricos, embora representem muito poucos na distribuição, se sobrepõe ao desejo dos mais pobres.

Economia de Mercado não Garante a Democracia Econômica

por Joaquim Pinto de Andrade

Os economistas clássicos, de forma especial Ricardo e Marx, se preocupavam seriamente com a questão da distribuição de renda. Em particular, com a participação das fatias do lucro e dos salários na renda. Isto fazia muito sentido, no início do capitalismo, tendo em vista as mudanças abruptas das rendas do trabalho. A transformação do sistema de putting out1 em manufatura e, posteriormente, em fábrica, resultou no surgimento de uma força de trabalho extremamente pobre, nos séculos XVIII e XIX. Isso ensejou uma relação de conflito entre capitalistas e trabalhadores.

A preocupação com a distribuição da renda, que era tão importante para os clássicos, desapareceu, gradativamente, como objeto de pesquisa dos economistas. Uma das exceções, naturalmente, foi Simon Kuznets em meados do século XX.

O interesse sobre o tema é retomado, em 2013, pelo economista francês Thomas Piketty que publicou o livro intitulado O Capital no Século XXI, trabalho seminal em que ele recupera dados sobre o valor da riqueza anual, nos principais países europeus e nos Estados Unidos, durante os últimos séculos, utilizando a metodologia de Kuznets.  A grande  importância do trabalho de Piketty foi recuperar o debate sobre a questão da desigualdade no capitalismo, que andava meio abandonado. Fica claro que as desigualdades voltam a uma trajetória de crescimento, a partir da década de 1950, se acelerando desde a de 1970, principalmente nos Estados Unidos, “modelo de capitalismo” almejado pelo resto do mundo em desenvolvimento.

Como explicar a desigualdade?  Várias proposições existiram e na verdade estas são representações que se contrapõem. A teoria da exploração de Marx e a teoria marginalista de Walras e Marshall, entre outros.

“Democracia é coisa frágil. Defendê-la requer um jornalismo corajoso e contundente. Junte-se a nós: www.catarse.me/jornalggn

Marx apresentou uma interpretação baseada no conflito entre as relações de produção e as forças produtivas. O surgimento das sociedades modernas, na Inglaterra e na França, representaram um corte profundo em relação às sociedades medievais. A desigualdade passa a ser atrelada ao processo produtivo, de um lado os capitalistas que detinham os fatores de produção, o capital, e de outro os trabalhadores que possuíam apenas a força de trabalho. Aos trabalhadores restava apenas vender a sua força de trabalho como se fosse uma mercadoria.  A teoria da exploração de Marx, baseia-se na ideia de que todo o valor era criado pelo trabalho e que, portanto, a fonte do lucro era uma exploração do trabalho, no conceito de `mais valia’.  Em outras palavras, parte do valor do trabalho era retirado dos trabalhadores e era considerado uma exploração da força de trabalho. 

Para se contrapor a essa ideia, os economistas neoclássicos, introduziram a noção de produtividade marginal  e dos rendimentos decrescentes, argumentando que o salário era equivalente ao rendimento marginal do trabalho que, por sua vez, era decrescente. Os salários eram determinados pelo mercado, de forma que o seu valor correspondesse à produtividade marginal do trabalho. O lucro seria igual à diferença entre o salário e o preço. Nessa visão, a ideologia da desigualdade passa a ser baseada, então, na meritocracia. Ou seja, cada um recebe aquilo que ele produz na margem, dependendo da sua produtividade. Esta é a ideologia da desigualdade. A desigualdade, ao contrário de Marx, não depende da exploração do trabalhador, depende de quanto o trabalhador produz de forma marginal. Os marginalistas advogam um sentido de “justiça” tal que cada um devia receber de acordo com o que produzia o último trabalhador que se incorporava ao processo produtivo. É essa teoria, que se torna dominante, a partir do séc. XIX com Walras e Marshall entre outros.

Posteriormente, em meados do séc. XX, em um grupo de estudos da Universidade de Chicago, coordenado por Theodore Schultz, com Gary Becker e Jacob Mincer, inicia-se a discussão sobre o que veio a ser conhecido como Teoria do Capital Humano. Theodore Schultz (1963), professor de Economia da Educação, foi considerado o formulador da ideia e em 1979 foi engrandecido pelo prêmio Nobel em Economia por esta contribuição. Theodore Schultz (1963) e Gery Becker (1964), incorporam o investimento em educação na teoria do salário que é chamado de capital humano. A idéia é que investimentos em educação e saúde podem aprimorar as aptidões e habilidades dos indivíduos, tornando-os mais produtivos. Quanto mais capital humano que o trabalhador tem maior o retorno deste capital e portanto o salário que o trabalhador deve receber.

Quais os limites dessa teoria?  O retorno do capital humano depende da educação e da capacidade de desenvolver as qualificações. A teoria supõe que todos são basicamente iguais e o que os diferencia é apenas as suas preferências por anos de estudo. Entretanto, não se trata de preferências, mas, sim, de oportunidades. Uns têm a possibilidade de acessar e conquistar uma boa educação, outros não. Neste sentido a desigualdade de oportunidades explicaria boa parte da desigualdade individual.

Esta desigualdade não aparece por acaso. Em boa parte, ela é reproduzida pelo próprio sistema em que a educação tem papel fundamental. A educação é entendida como uma ferramenta importante para reproduzir a força de trabalho `apropriada’ à economia capitalista. Conforme Bowles e Gintis (1976), há uma relação forte entre os valores familiares e  os desenvolvidos nas escolas e no trabalho. Conforme colocam há um princípio de correspondência entre a escola e o sistema de produção. “...estruturando interações sociais e recompensas individuais para replicar o ambiente do local de trabalho”, as escolas são capazes de cumprir o objetivo de preparar "as pessoas para as regras de trabalho adulto socializando-as para funcionarem bem e sem reclamar na estrutura hierárquica da corporação moderna. Tudo se passa como se existissem dois tipos de escola: uma que ensina aos alunos a disciplina e a obediência e, outra escola, que ensina os valores necessários para galgarem posições de liderança e comando. Essas ‘oportunidades’, contudo, estão atreladas aos valores familiares. As famílias mais pobres, buscam escolas mais rígidas, em que as escolhas são limitadas e a disciplina valorizada. As famílias mais ricas, procuram escolas que valorizam a liberdade e a liderança. De acordo com eles, existem paralelos entre a escola e o trabalho nas sociedades capitalistas.          

Distribuição no período do governo militar 1964-1985

É notório o crescimento econômico do período 1968-1972, durante a ditadura militar, apelidado período do ‘milagre econômico’. Contudo, apesar do chamado milagre, as estatísticas de distribuição de renda apontaram para uma significativa piora.  Surgiram duas explicações radicalmente opostas: uma apontava para a questão estrutural em que o país vivia e que na verdade havia um dualismo forte – de um lado uma economia desenvolvida e de outro uma economia muito subdesenvolvida, respectivamente chamadas de Bélgica e Índia na metáfora elaborada por Edmar Bacha e Lance Taylor.  Um ponto central da reforma estava no mercado financeiro e no fomento ao crédito e o outro ponto era o controle dos sindicatos por parte das forças armadas. As reformas estimularam a “Bélgica” e desestimularam a “Índia”. A outra explicação, encomendada pelo governo, em particular, Delfim e Roberto Campos, foi a teoria do capital humano e coube a Carlos Langoni, mal chegado de seu doutorado em Chicago, estimar um modelo distributivo baseado no capital humano. Os militares e a elite podiam dormir em paz pois não foram as instituições moldadas pela ditadura que explicavam a concentração de renda mas, sim, a educação.  A meritocracia e não as instituições explicavam os resultados desanimadores da distribuição dos rendimentos do milagre econômico.

“Democracia é coisa frágil. Defendê-la requer um jornalismo corajoso e contundente. Junte-se a nós: www.catarse.me/jornalggn

A desigualdade de oportunidade, ou como chama John Rawls, a loteria da vida, é a pedra chave da desigualdade individual das rendas.  As oportunidades deveriam ser entendidas como uma variável aleatória.  Neste sentido, todos iriam conquistar as mesmas condições.

Infelizmente isto não ocorre, principalmente porque os bens que afetam as oportunidades em geral não são comercializáveis. Esses bens como: ambiente familiar, crenças e valores, entre outros, não possuem mercado. Os mais ricos nascem ricos e se tornam capitalistas, os mais pobres nascem em famílias pobres e tem grande chance de continuarem trabalhadores.

A simples realidade é que nascer em uma família de classe média e alta significa que as crianças se beneficiam de um capital material e cultural que lhes dá uma vantagem tanto na escola quanto no processo de candidatura ao emprego, o que lhes confere uma vantagem injusta em relação às crianças da classe trabalhadora.

No entanto, o sistema educacional disfarça esse fato ao difundir o ‘mito da meritocracia’ – a ideia de que é apenas a habilidade e o esforço do indivíduo que determina as qualificações e o trabalho que ele obtém, e não sua origem de classe, e assim os indivíduos acabam culpando-se por seus fracassos em vez da desigualdade de oportunidades no sistema educacional.

Uma vez desencadeado o processo de desigualdade, o sistema tende a reforçá-las e perpetuá-las. A dinâmica da acumulação acaba por favorecer os mais ricos. Os afortunados têm poupança e aplicam em ativos mais rentáveis, quanto mais ricos. Os menos afortunados ,não têm as oportunidades de acumulação e tendem a ficar mais pobres.  O mecanismo de mercado é incapaz de promover a convergência de rendas. Pelo contrário, sustenta cada vez mais a concentração e a divisão de classes entre capitalistas e trabalhadores.

O mecanismo de herança, passa a alimentar a concentração dos patrimônios  como bem afirma Piketty. O papel do Estado passa a ser fundamental para impedir a divergência atual, crescente, da riqueza. A América Latina tem a maior divisão entre os 10% do topo, que controlam 77% da riqueza, e os 50% da base, que possuem apenas 1%, conforme O Relatório de Desigualdade Mundial.2

Em lugar da meritocracia, existe a força dos sindicatos, o conflito entre trabalhadores e patrões. As mudanças no sistema de produção com o desenvolvimento dos trabalhos online estão enfraquecendo ainda mais o poder dos sindicatos. Os trabalhadores estão perdendo o chão da fábrica e reduzindo a sua consciência e participação coletiva. Esta mudança deverá comprometer, ainda mais, a desigualdade.  

O ideal meritocrático, que suporta a ideologia da desigualdade, é ilusório e fadado ao insucesso. O resultado é uma  concentração crescente da riqueza .  Embora a ideologia tenha um papel fundamental para a sustentação do sistema de mercado, é cada vez mais duvidosa sua credibilidade. As políticas de bem-estar social e de transferência de renda não têm sido suficientes para aplacar a pobreza que resulta do funcionamento do sistema de mercado, em especial, depois da crise sanitária proveniente da COVID 19.  

O desejo dos mais ricos, embora representem muito poucos na distribuição, se sobrepõe ao desejo dos mais pobres. O sistema de preços reflete a distribuição de renda e riqueza. É preciso que se pense em formas alternativas de alocação e escolha. Aquelas que garantam a vontade dos grupos majoritários da sociedade e, não necessariamente, dos grupos mais abastados.

O equivalente econômico ao voto, no sistema político tido como democrático, é o gasto das pessoas e do Estado nos diferentes bens e serviços. Nota-se que os votos, neste caso, não têm pesos iguais. Como se gasta, e quanto se gasta, depende da renda de cada grupo. Usando os dados acima podemos pensar que a renda dos 10% mais ricos afetam mais a alocação de bens e serviços do que os 50% mais pobres. Neste sentido, a democracia econômica não é garantida pelas economias de mercado.

A resposta à pergunta fundamental: até que ponto o sistema de economia de mercado é sustentável no sentido de redução das desigualdades e melhoria do bem-estar geral da população? não é  fácil. Implica na possibilidade de estabelecimento de políticas que alterem as condições iniciais da economia: de valores, de propriedade e de instituições. Como promover essas mudanças é uma questão fundamental e difícil de ser respondida. A economia de mercado não garante a democracia econômica.

Nota:

[1]O sistema doméstico ou putting-out é uma forma de trabalho terceirizado. Os primeiros sistemas domésticos ocorreram como uma consequência da divisão de trabalho desenvolvida durante a idade média. Por exemplo, na produção têxtil, a fiação, tecelagem, acabamento e tingimento eram estabelecidas em diferentes artesanatos.

2O Relatório de Desigualdade Mundial é baseado em mais de quatro anos de trabalho de mais de 100 pesquisadores em todo o mundo. Os especialistas em desigualdade Emmanuel Saez e Gabriel Zucman, ambos da University of California, Berkeley, e Thomas Piketty, da Paris School of Economics, coordenaram o relatório com Chancel.

Referências:

Becker, Gery 1964. Investment in Human Capital: a theorical analysis.

Bowles, Samuel. and Herbert Gintis 1976. Schooling in Capitalist America: Educational Reform and the Contradictions of Economic Life. London:RKP .

Rawls, John, 1971, Theory of Justice, Harvard University Press

Schultz, Theodore 1963. O valor econômico da educação.  

Bacha, E.L. e  L, Taylor 1976, The Unequalizing Spiral: A First Growth Model for Belindia

Quarterly Journal of Economics.

Joaquim Pinto de Andrade é formado em economia na UFRGS, com mestrado na EPGE FGV e doutorado em economia na Universidade de Harvard. Pós Doutorado em Stanford e Harvard. Atualmente é professor emérito da Universidade de Brasilia.

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected].

Leia também:

Mudanças no padrão de trocas do Brasil com o Resto do Mundo e com a China enfraquecem o regime democrático brasileiro, por Joaquim Pinto de Andrade

Brasil e China: Sinergias Possíveis de Crescimento Econômico, por Joaquim Pinto de Andrade

A importância das reformas para aprofundar a democracia

Redação

0 Comentário

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador