Efeitos da colonização na Psicanálise: o lugar do Brasil e da língua portuguesa, por Luciano Elia

O lugar da nação portuguesa no continente que se auto-concebe como o centro civilizatório do mundo, e do qual, geograficamente, ele é parte integrante, é indiscutivelmente de menos valia.

Pau Brasil – Portugal só é grande no Brasil!

Efeitos da colonização na Psicanálise: o lugar do Brasil e da língua portuguesa

por Luciano Elia[1]

Este é um exergo de António Gomes da Costa[2], eminente cidadão português radicado no Brasil, no Rio de Janeiro, de cujo estado era cidadão benemérito. Sua afirmação traz o só, unicamente – adjunto adverbial restritivo – que indica de modo suficientemente claro que, nas palavras de um grande português, radicado no Brasil, Portugal não é grande em nenhum outro lugar que não o Brasil, particularmente no seu continente, o europeu.

Vou partir, nesta análise político-psicanalítica da posição da língua portuguesa no mundo, e em particular na comunidade psicanalítica internacional, da proposição de Gomes da Costa e, a partir dela, remontar, como convém em uma psicanálise, pelo fio significante da História, a seus determinantes ainda que, em meio ao percurso, mais ainda psicanaliticamente, possamos sofrer os efeitos de corte com a repetição e a própria história que entretanto nos terá conduzido a eles.

O lugar da nação portuguesa no continente que se auto-concebe como o centro civilizatório do mundo, e do qual, geograficamente, ele é parte integrante, é indiscutivelmente de menos valia. Chega-se a dizer, do modo “brincalhão” que atesta bem os preconceitos estruturais, que Portugal é perto mas não é ainda Europa, ou é quase a Europa. É comum em Paris muitos imigrantes portugueses não serem tratados como são os demais imigrantes europeus (espanhóis, italianos e outros), mas como imigrantes não-europeus (africanos, árabes, etc., numa diferença que só ganha sentido sob a ótica do preconceito eurocêntrico),  exercendo funções que franceses não aceitam com facilidade, como concierge de edifícios residenciais, por exemplo.

Que determinantes causais podem estar na origem deste desprezo cultural? Para tentar responder a esta pergunta fomos buscar elementos na História das nações e seu surgimento. Mas é importante contarmos a história que nos conduziu à História.

Somos brasileiros, e nosso país foi colonizadopor Portugal que, portanto, entretém com este país relações de filiação cultural, recebendo os efeitos diretos da herança de nosso pai português, da História de Portugal e de seu lugar no mundo e no continente Europeu. E como psicanalistas brasileiros que somos, conhecemos as “teorias”, “análises” e “interpretações” que alguns psicanalistas europeus emitem sobre o Brasil como um país histórica, cultural e politicamente, de tendências “perversas”[3], sem grande respeito pela Lei Simbólica, sem memória, sem história, enfim, sem referências paternas.

Contardo Calligaris afirma em Hello, Brazil [4]que nós, brasileiros, não respeitamos nosso pai português, sobre o qual fazemos piada!. Mas chega ao excesso hilariante de dizer que o nosso pendor ardente tem relação com o nome próprio de nosso país, que não é uma referência a nada mais importante do que uma mera árvore, aliás um pau, termo que na língua vulgar designa pênis, e ainda por cima com cor de brasa. Revela-se, assim para além de tais evidentes despautérios, a sanha colonizadora que leva o autor a proferir interpretações, sobre a “verdade” de um país que, afinal, nem é o seu, ainda que tais interpretações coincidam com as fantasias mais íntimas do intérprete.

Impressiona-me mais ainda o próprio significante “Brasil”.Que extraordinária herança do colonizador para o colono este significante nacional, que eu saiba o único que não designa nem uma longínqua origem étnica, nem um lugar, mas um produto de exploração, o primeiro e completamente esgotado. É como se o colonizador entregasse para o colono o manequim deslocado por um gozo sem freio, e ironicamente o convidasse a fazer disso o UM da nação da qual ele quer ser o sujeito.[5]

Esta “brilhante” análise nos faz interrogar o mote íntimo que impôs ao autor ignorar (“…significante nacional, que eu saiba o único que não…”) o que se passou com o nome próprio de nosso país vizinho do sul, a Argentina, que deriva igualmente de um produto de exportação, aliás também esgotado, a prata (argentum).

Vivemos hoje no Brasil um momento tão terrivelmente massacrado por um “desgoverno” que se caracteriza pelo que há de pior em matéria de fascismo, desrespeito à lei, aos direitos humanos e sociais, à própria vida da população (da qual uma significativa fatia apoia seu próprio massacre), um governo, enfim, descaradamente associado ao crime, que poderíamos até experimentar a tentação de “concordar” com as análises desses psicanalistas europeus. Ceder a esta tentação seria, contudo, dar provas de abdicação crítica: ao emitirem tais juízos, esses psicanalistas, além de permitirem que “as fantasias psicológicas se deem livre curso”, como observa Lacan sobre os pós-freudianos[6], estão reproduzindo o gesto colonizador que constitui um dos eixos determinantes da nossa trágica situação atual.

Por falar em o Brasil ter ou não uma referência (e uma reverência) paterna em relação a Portugal, vou me referir ao meu próprio pai: filólogo e linguista, sua paixão maior fora das relações amorosas era justamente a língua portuguesa, razão pela qual tinha com a nação portuguesa relações muito estreitas, tendo sido convidado por diversas vezes como professor nas Universidades de Lisboa e Coimbra. Ele era também amigo do autor da frase com a qual iniciei este texto, António Gomes da Costa, tendo recebido de suas próprias mãos o pequeno texto que tem esta frase como título, proferido no Liceu Literário Português em 1988.Certa vez, em uma conversa comigo, espantado em tomar conhecimento do que alguns psicanalistas diziam da relação entre Brasil e Portugal, ele me disse: “Meu filho, não é nada disso”, e decidiu me contar a história de como surgiu a nação portuguesa, dando-me de presente um livro muito antigo intitulado Como nasceu Portugal? de Damião Peres[7]. E este é o ponto de articulação da História de Portugal e suas vicissitudes com a questão do lugar que o Brasil a língua portuguesa vem ocupando no mundo e particularmente na comunidade psicanalítica internacional.

Do livro de Peres, que se estende por diversas vertentes de análise histórica do surgimento da Nação Portuguesa, vou destacar um fragmento que denominarei político-edipiano da história da fundação da Nação Portuguesa.

Como se sabe, o Rei Afonso VI de Leão e Castella teve muitos matrimônios e veio a ser pai de D. Urraca, Rainha de Leão e Castella, e, por uma união ilegítima com Ximena Nunes, veio também a ser pai de Teresa de Leão. Devido às inseguranças dos reinos que se distribuíam pela Península Ibérica, sobretudo em sua parte oriental, em que habitavam os almorávidas, seita político-religiosa oriunda do Rio Niger, na África, (vejam que a incidência dos negros já se fazia presente nas origens do que veio a ser a nação portuguesa), Afonso VI de Leão e Castella pede ajuda militar a Henri de Bourgogne, filho homônimo de Henri de Bourgogne, ligado à Abadia de Cluny e descendente direto do Rei Robert II de França. Em troca de seu bravo auxílio na luta contra os mouros e no que se denominou de Reconquista, Afonso VI dá a Henri de Bourgogne (filho) a mão de sua filha ilegítima Teresa de Leão. (A filha legítima, Urraca, já se havia casado com Raymond de Bourgogne, primo de Henri, e viria a se tornar Rainha de Leão e Castella). Desta união de Henri de Bourgogne com Teresa de Leão nasce Affonso Henriques (nome cuja terminação em “es” significa “filho de Henrique”, nome aportuguesado de Henri, que é conhecido aliás como Conde Henrique de Portucale, condado que recebera do Rei Afonso VI por suas conquistas).

Affonso Henriques vem a rebelar-se contra sua mãe, que desejava manter a união com o marido francês e a dependência do Condado ao Reino de Leão e Castella, e, por tabela, à influência dos Bourgogne na França. Rebela-se, abre guerra contra seu pai francês e sua mãe e proclama a independência do Reino de Portugal, tornando-se o primeiro Rei de Portugal, daí seu título Afonso I de Portugal. Expulsou o pai de seu ex-condado, agora reino do Filho-Rei, e o impediu de voltar a entrar em seu território. Há, assim, uma questão histórico-político-familiar que envolve ibéricos (Reino de Leão e Castella, Galiza, Sevilla, Toledo e outros) e portucalenses (que inicialmente constituíam o conjunto de reinos ibéricos) por um lado, e franceses (nomeadamente de Bourgogne) por outro. O destacamento de Portugal se dá por um rompimento produzido por um filho que expele precisamente a influência francesa dos Bourgogne representada por seu pai.

Eis que nos deparamos, surpreendidos, por um conflito político, bélico, que tem um inelutável vetor de determinação edipiano, na origem da nação portuguesa, país-pai do nosso! Perguntamos: Que espécie de recalque operam os franceses em relação à sua própria presença na origem de Portugal, que pode estar na base do seu pouco respeito a este país e que os leva a atribuir a nós, brasileiros, o movimento de rechaço em relação aos portugueses, na própria Europa? Podemos supor que este elemento constitui um recalcado importante na cultura europeia, particularmente francesa. Negando sua própria depreciação em relação a Portugal, uma certa tendência da psicanálise francesa atribui ao Brasil as insígnias desta depreciação que é sua e em nada é brasileira.

O Brasil fala português, foi historicamente colonizado por Portugal, mas é, como todos os países estrangeiros à Europa – latino-americanos, africanos, e parte dos asiáticos – colonizado pelos ideais culturais eurocêntricos. Sofremos assim, indiretamente, todos os efeitos que marcam as relações entre Portugal e a Europa.

Achile Mbembe, filósofo político nascido nos Camarões (franceses), diz, em Crítica da razão negra: “A colonização também se apresenta como um projeto de universalização. A sua finalidade é inscrever os colonizados no espaço da modernidade. Mas a sua vulgaridade, a sua brutalidade , muitas vezes desenvolta, e a sua má fé fazem do colonialismo um perfeito exemplo de antiliberalismo”[8].

E, nas palavras de Silvio Almeida, advogado e filósofo brasileiro, em Racismo estrutural: “o contexto da expansão comercial burguesa e da cultura renascentista abriu as portas para a construção do moderno ideário filosófico que mais tarde transformaria o europeu no homem universal (atentar ao gênero aqui é importante) e todos os povos e culturas não condizentes com os sistemas culturais europeus em variações menos evoluídas”[9]. E é também importante atentar ao subtítulo do livro de Calligaris: notas de um psicanalista europeu viajando pelo Brasil. É: o psicanalista europeu viajou legal !

O homem europeu passa então, a partir do Iluminismo e dos ideais universalistas da Revolução Francesa, a se auto-conceber como a referência universal de homem e de cultura, base do projeto colonialista que contudo não sustenta uma efetiva igualdade entre homens, povos e culturas, e tampouco a liberdade a todos, condição ideal de fraternidade. Pelo contrário, o processo de colonização fundamentado na razão universal iluminista se sustenta numa modalidade de diferenciação que produz segregação e não multiplicidade. O movimento que se seguiu, o de levar a civilização aosprimitivos, ou seja“aqueles que ainda não conheciam os benefícios da liberdade, da igualdade, do Estado de Direito e do mercado” […] “redundou em um processo de destruição e morte, de espoliação e aviltamento, feito em nome da razão e a que se chamou colonialismo[10].

Que interesse podemos ou devemos ter, como psicanalistas de um ou de outro lado do processo colonizador – nessas questões? O que os processos políticos que se passam nas relações travadas no interior da própria comunidade psicanalítica internacional expressam ou revelam quanto a esses processos histórico-políticos? Seriam essas relações imunes ou alheias ao processo colonizador?

No momento em que se preparava para deixar Paris para vir, pela primeira e única vez em sua vida à América do Sul, Lacan dirigiu-se aos psicanalistas de sua escola anunciando sua vinda com as seguintes palavras:

Estou indo, vejam vocês, para a Venezuela!

Esses latino-americanos, como se diz, que nunca me viram, diferentemente daqueles que estão aqui, nem me ouviram de viva voz, pois bem, isso não os impede de serem “lacano”. Parece que isso antes os ajuda. Eu me transmiti por lá pelo escrito, e parece que criei raiz. Em todo caso, eles acreditam nisso.                                                                                

É certo o futuro está aí, e é nisso que me interessa ir lá conferir. Interessa-me ver o que acontece quando a minha pessoa não oblitera o que eu ensino. Pode bem ocorrer que meu matema ganhe com isso. Nada garante que, se eu gostar, não ficarei na Venezuela. Vocês vêem porque eu gostaria de lhes dizer adeus.                                                        

Vocês não imaginam a quantidade de pessoas às quais isso desagrada, que eu me meta por lá, e que a isso eu tenha convocadomeus lacano-americanos. Isso irrita aqueles que estavam tão bem ocupados em me representar que basta que eu me apresente para que eles percam o pé da coisa.

Vou, portanto, saber das coisas por lá, mas evidentemente voltarei.[11]

Em meio a essas palavras que afirmam que em nosso continente latino-americano seu ensino é lido, criou raiz, não é opacizado por sua pessoa, e que, assim, “é o futuro” que ele deseja conferir in loco, ele profere estes termos, os meus lacanoamericanos.

Entendemos que esse dizer de Lacan faz ecoar uma dimensão política extremamente importante: qual é o nosso lugar, como latino/lacanoamericanos, nos desdobramentos do movimento psicanalítico, no devir do ensino de Lacan? Os psicanalistas que, àquela época, receberam esta transmissão do próprio Lacan, em Caracas, recolheram este significante e, cinco anos depois, realizaram aquela que foi a primeira Reunião Lacanoamericana de Psicanálise, em Punta del Este, Uruguay, 1986[12].

A despeito disso, muitos movimentos colonizadores persistem, não sem uma substancial parcela de responsabilidade do lado “colonizado”, pois sabemos que essa posição, longe de situar os que nela se alojam como vítimas da opressão colonizadora, é, antes e acima de tudo, uma posição subjetiva, algo que, no dizer de Lacan, é “perfeitamente objetivável”. E, para seguir com Lacan, “por nossa posição de sujeito, somos sempre responsáveis”[13].

Qual é a diferença entre sermos lacanoamericanos, neologismo que faz a adjunção do nome de Lacan à condição geopolítica e antropológica que nos caracteriza no mundo, e uma posição colonizada? Seríamos colonizados pelo que se convencionou designar como “o ensino de Lacan”? Ou será que podemos sustentar que é a própria adoção ativa dos princípios, conceitos e eixos vetoriais deste ensino, inclusive e sobretudo na sua incidência na experiência psicanalítica, que permitem, pelo contrário, uma saída da posição colonizada? Sabemos, como psicanalistas, que esta posição colonizada tem as mais arraigadas raízes inconscientes, constituídas de modo transgeracional, transindividual e transcendente ao sujeito da consciência.

Essas raízes ultrapassam em muito o limiar do que seria uma “má consciência”, ou mesmo o da servidão voluntária, com a qual La Boétie já ensaiava demonstrar, em pleno século XVI, que tamanha servidão de muitos por tão poucos, ou até mesmo por um só tirano, só poderia ser consentida[14]. Sem o recurso ao inconsciente, restou-lhe pelo menos afirmar que a servidão se ancora em uma vontade, o que o desejo e os fantasmas inconscientes traduziriam com exatidão bem maior.

A experiência e o discurso psicanalíticos afirmam a diferença entre a sugestão, que Freud, valendo-se de uma distinção introduzida por Leonardo da Vinci[15] sobre as duas artes plásticas fundamentais – a pintura e a escultura – já indicava operar per via di porre, como a pintura, e a transferência, que opera, como a escultura, per via di levare[16]Toda relação de colonização, de qualquer lado que se a tome, fundamenta-se nos poderes da sugestão, e não resiste às operações de uma verdadeira transferência. Mas não nos iludamos quanto a uma relação disjuntiva entre esses dois processos, relação que não fundaria nenhuma dialética entre eles, como dois termos que, como terceiro elemento, ela articularia.

Essa relação não dialética evoca o que Lacan desenvolve, ao analisar a situação da psicanálise e da formação do psicanalista em 1956, ao afirmar que a suficiência e a insuficiência, termos com os quais ele designa o que se passa nas sociedades da IPA quanto à “autorização” dos psicanalistas:

A oposição da insuficiência, que um puro formalismo sugere, é insustentável dialeticamente. A menor assunção da suficiência ejeta a insuficiência de seu campo, mas do mesmo modo o pensamento da insuficiência como de uma categoria do ser exclui radicalmente de todas as outras a Suficiência. É uma ou outra, incompativelmente.[17]

Diremos nós que a relação colonizadora é como esta, não dialetizável, entre suficiência (do colonizador) e insuficiência (do colonizado). A mútua exclusão perpetua as condições de colonizador e colonizado, e só a entrada em um tensão dialética poderá alterar este estado de coisas.

Homologamente, a transferência se estabelece sobre um fundo de sugestão, dialeticamente, desde que o psicanalista expressamente renuncie a fazer uso do poder que a primeira lhe confere. Sim, porque a análise suscita efeitos de sugestão, estabelece vias de instalação de um poder que justamente o analista, por seu ato e por incidência do desejo do analista, neutralizará. Por ter inopinadamente usado este verbo, vou me valer dele para dizer que o verdadeiro sentido da famigerada neutralidade do analista é a decisão radical de abster-se da utilização de um poder que está contudo ali, à espreita, de certo modo à sua disposição, mas que ele, por ser movido por um desejo que o leva além deste poder, não usa. A transferência então só se instala nesta condição.

Não se trata, portanto, de, num afã de pureza ou purismo, clivar entre si as dimensões de sugestão e transferência, como se fossem líquidos de tonéis totalmente heteróclitos entre si. Com isso, anularíamos a dialética, e teríamos uma dicotomia mortificante e infrutífera, como a suficiência e a insuficiência dos didatas da IPA em relação aos can-didatos. É preciso, pelo contrário, que sujemos nossas mãos na lama da sugestão, da colonização, da história de nossa pátria-colônia, cuja elite, alucinando sua identidade com o colonizador ao manter as práticas mais abjetamente escravagistas sobre uma imensa parcela da população pobre e negra, sustenta na verdade sua mais radical e rasteira posição de colonizada, mas na sua pior faceta, a de cega e surda à sua própria condição, fantoche sorridente de um triste teatro macabro.

Se, do lugar de colonizados, pudermos travar uma tensão dialética com nossos colonizadores históricos, que, por isso mesmo, transformaram-se, como o Isso freudiano, em fósseis de incontáveis eus que operam em nossa herança ancestral – passagem belíssima do texto freudiano[18]em que nos deparamos incontestavelmente com a transindividualidade do inconsciente que Lacan será compelido a formalizar[19]– então estaremos em condições de analisar nossa condição de colonizados, dissolver os fósseis de “nosso” Isso-colono, destituir o colonizador em “nosso” supereu (cujo estatuto estrutural não é feito para apagar sua dimensão histórica, cultural e política), como destituímos “nosso” sujeito e fazemos des-ser o psicanalista em nossa experiência psicanalítica.

No interior do movimento psicanalítico internacional, não é portanto o ato de “seguir Lacan” que define uma posição colonizada. O próprio Lacan, advertido dos riscos de ter seguidores, fez uma célebre alteração nas rígidas regras gramaticais de concordância verbal para nelas introduzir um rigor ético: “Tu és aquele que me seguirás[20]. A segunda oração, subordinada adjetiva explicativa (em análise sintática brasileira), porquanto introduzida pelo conectivo que pronome relativo que nela presentifica o tu, sujeito da primeira oração e do ato de seguir, deveria, no estrito cumprimento da regra de concordância gramatical, ter seu verbo no singular: seguirá – não ganhando a desinência “s” da segunda pessoa, aquela com quem se fala, o tu, já ali presente desde o início da primeira oração. Por quê? Porque justamente se o que representa na segunda oração este tu, o verbo deve concordar com ele (que), e ir para a terceira pessoa: Tu és aquele que me seguirá. Mas aí, na regra correta e colonizadora, temos que quem segue é um ele, aquele, aquele que. E se quisermos, com Lacan, afirmar que o ato de seguir é uma decisão do sujeito, fundada no seu desejo e não no desejo alienado (aqui evoque-se Marx) de um “ele”? Neste caso, teremos que praticar a desobediência (civil) gramatical e inserir um “s” (desinência do tu, mas aqui sobretudo “s” de sujeito) no verbo que designa o ato de seguir, e podemos desdobrar a composição do período por subordinação (colonização da segunda oração, dita subordinada, pela primeira, dita principal), e formar um período composto por coordenação dita aditiva:Tu és aquele tu me seguirás, que podem ser condensadas novamente em uma só frase, desde que o segundo verbo continue sendo conjugado na segunda pessoa e receber um “s”: Redundando o tu, reafirmamos o sujeito e o ato de seguir como uma escolha de desejo.

Não é sempre assim contudo que, no movimento psicanalítico internacional, as coisas se passam. Muitos seguem como um ele, como um aquele que, como um cão. Há também efeitos de análises feitas com psicanalistas estrangeiros que trazem a marca deste modo de seguir, por subordinação, efeito de sugestão, colonização. É claro que isso pode ocorrer igualmente com qualquer relação entre psicanalisante e psicanalista, estrangeiro ou não. Estamos destacando os efeitos de colonização que não se verificam exclusivamente no campo da psicanálise em extensão, mas também da psicanálise em intensão.

Mãos sujas com todo esse canteiro de lama mas também de obra, podemos então abster-nos do uso do poder da sugestão colonizante, que muitas vezes justifica seu exercício pelo propósito de “fazer o bem”, e permitir que a direção do processo (histórico-analítico) seja assumido por outros princípios de poder. Assim e só assim saímos do “princípio maligno deste poder sempre aberto a uma direção cega. É o poder de fazer o bem, nenhum poder tem outro fim, e é por isso que o poder não tem fim”.

Rio de Janeiro, julho de 2020

[1]Psicanalista, membro do Laço Analítico/Escola de Psicanálise (Brasil)

[2]GOMES DA COSTA, A. – Portugal só é grande no Brasil – Texto de Conferência pronunciada no Liceu Literário Português em 14 de setembro de 1988, documento de trabalho.

[3]Certa ocasião, em uma palestra proferida por um deles a convite de seguidores brasileiros que lhe haviam pago as passagens, estadia e honorários, o palestrante, ao referir-se à perversão, fez o seguinte comentário: “Bem, eu não preciso explicar a perversão a brasileiros, preciso?”[3]. Seríamos nós, então, os brasileiros, perversos ou afeitos à perversão? Interpelado, o palestrante tentou justificar-se, mas a emenda foi pior do que o soneto: “Mas vocês não elegeram uma Miss Brasil travesti?” – momento em que revelou, além da profunda grosseria e desrespeito com o país que o recebe, também uma profunda ignorância da história contemporânea do país (pois jamais existiu uma Miss Brasil travesti). Referia-se a Roberta Close, que sempre foi transexual, nunca foi travesti e é uma modelo muito bem sucedida. Em 1981 recebeu, por sua beleza feminina extrema, o título de Miss Brasil Gay. Este é o nível de impolidez e ignorância de um psicanalista convidado na terra anfitriã.

[4]CALLIGARIS, C. – Hello, Brasil! – Notas de um analista europeu viajando pelo Brasil, São Paulo, Editora Escuta, 6ª edição, 2000. Este livro foi bastante comentado e criticado por Caetano Veloso em Verdade Tropical. (VELOSO, C. – Verdade Tropical, São Paulo, Companhia das Letras, 1997).

[5]Idem, p. 23.

[6]LACAN, J. – Situation de la psychanalyse et formation du psychanalyste en 1956, Écrits, Paris, Éditions du Seuil, 1966, p. 463.

[7]PERES, D. – Como nasceu Portugal? Porto, Portucalense Editora, 1959.

[8]MBEMBE, A. – Crítica da razão negra, Lisboa, Antígona Editores Refratários, 2017 (2ª ed.), p. 170.

[9]ALMEIDA, S. – Racismo estrutural, Coleção Feminismos plurais, coordenada por Djamila Ribeiro. São Paulo, Sueli Carneiro/Pólen, 2019, p. 25.

[10]Ibid., pp. 26-27.

[11]LACAN, J. – Le malentendu, ”, in: Le séminaire, livre 27:  Dissolution(1979 – 1980). Leçon du 10 Juin 1980. Ornicar?, Nº 22 – 23: 12.

[12]Essas reuniões nunca deixaram de se realizar, desde 1986, bienalmente, em alguma cidade sul-americana, mas não constituem um “movimento” estável no tempo e nos intervalos entre suas realizações pontuais: a cada vez a reunião se recria, na assembleia inicial que a re-institui, e se dissolve, em assembleia de dissolução no final da reunião, em que se decide e vota qual será a próxima cidade anfitriã. As reuniões não são temáticas, não congregam instituições, que tão-somente as sustentam materialmente, desde antes de sua realização, sendo por isso denominadas instituições convocantes, e cada um apresenta seu trabalho em seu nome próprio. Todos os trabalhos enviados são apresentados. Em 2017 ela foi realizada no Rio de Janeiro, intitulada LacanoRio, e em 2019 em La Plata. A próxima será em Recife, 2021.

[13]Idem, La Science et la vérité (1966), Écrits, op. cit., p. 858.

[14]LA BOÉTIE, E. de – Discours sur la servitude volontaire, Paris, GF Flammarion, 1983.

[15]DA VINCI, L. –Anotações de Da Vinci por ele mesmo, São Paulo, Editora Madras, 2004.

[16]FREUD, S. – Sobre a psicoterapia (2004), in Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmind Freud, Rio de Janeiro, Imago Editora, 1969, Vol. VII, p.  270.

[17]LACAN, J. – Situation de la psychanalyse et formation du psychanalyste en 1956, op. cit., p. 476.

[18]FREUD, S. – O eu e o isso (1923), in Edição Standard Brasileira, op. cit., Vol. XIX, p. 53.

[19]LACAN, J. – Fonction et champ de la parole et du langage en psychanalyse, (1953), in Écrits, op. cit., p. 258.

[20]Idem, Le Séminaire, Livre III, Les psychoses, (1955/56), Paris, Editions du Seuil, p. 307.

Redação

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