Eterna Vigilância, por Fábio de Oliveira Ribeiro

O autor de Eterna Vigilância tem méritos, sem dúvida. Mas ele supervalorizou as inovações tecnológicas e suas consequências.

Eterna Vigilância, por Fábio de Oliveira Ribeiro

Ontem terminei a leitura do livro de Edward Snowden. Obra interessante e bem escrita, Eterna Vigilância não revela ao público nenhum segredo que não tenha sido exposto pelo autor em 2013. Ler o livro rever os dois filmes feitos sobre Snowden, entretanto, não podem ser considerados equivalentes. Aqui um deles:

A autobiografia do informante que estourou a bolha de segredos da NSA e da CIA contém pistas interessantes sobre os estragos que a “cultura corporativa” produz nos membros da Comunidade de Informação:

“Tudo é subordinado ao trabalho, que começa com uma negação do caráter e acaba com uma negação da consciência, A missão em primeiro lugar” (Eterna Vigilância, Edward Snowden, editora Planeta, São Paulo, 2019, p. 62)

A negação da consciência foi a principal característica que Hannah Arendt detectou em Adolf Eichmann. Se recusando a refletir sobre a natureza perversa do trabalho que realizava (reunir e transportar pessoas que seriam exterminadas em Campos de Concentração), o oficial nazista julgado em Jerusalém disse que nunca havia maltratado ninguém pessoalmente e demonstrou orgulho pelo fato de ter cumprido ordens de maneira correta e diligente.

“O que leva um homem a temer sua consciência é a antecipação da presença de uma testemunha que o aguarda apenas se e quando ele vai para casa.” (Responsabilidade e Julgamento, Hannah Arendt, Companhia das Letras, São Paulo, 2010, p. 255)

Eichmann somente estava em casa no III Reich, onde ele podia cumprir ordens suprimindo sua consciência. Os problemas dele começaram depois da derrota em 1945. Ele os enunciou da seguinte forma:

“Senti que teria de viver uma vida individual difícil e sem liderança, não receberia diretivas de ninguém, nenhuma ordem, nem comando me seriam mais dados, não haveria mais nenhum regulamento pertinente para consultar – em resumo, havia diante de mim uma vida desconhecida.” (Eichmann em Jerusalém, Hannah Arendt, Companhia das Letras, São Paulo, 2008, p. 43/44)

Obrigado a espionar os cidadãos americanos de maneira indistinta, criminosa e sem qualquer autorização judicial, o oficial de inteligência norte-americano é levado a se transformar num homem incapaz de avaliar e julgar sua própria conduta. Eichmann seguiu em frente, Snowden não fez o mesmo. Mas ele é uma exceção. A regra na NSA e na CIA é justamente aquela que leva à massificação de um comportamento idêntico ao de Eichmann:

“A Comunidade de Inteligência tenta inculcar em seus funcionários um padrão de anonimato, uma espécie de personalidade tipo página em branco, sobre a qual se inscrevem o sigilo e a arte da impostura. Você treina para ser discreto, para se parecer com os outros. Você mora na casa comum, dirige o carro mais comum, usa as mesmas roupas comuns que todo mundo. A diferença é que faz isso de propósito: a normalidade, o comum, é seu disfarce.” (Eterna Vigilância, Edward Snowden, editora Planeta, São Paulo, 2019, p. 61)

Numa sociedade totalitária e militarizada como a Alemanha nazista o comum era vestir um uniforme, cumprir ordens de maneira diligente. A cultura que levou Eichmann a abastecer com vítimas os Campos de Concentração sem sentir remorsos não é muito diferente daquela que leva os ex-colegas de Snowden a continuarem a espionar todo mundo o tempo todo em todos os lugares como se todos fossemos prisioneiros num Campo de Concentração Virtual em que os agentes da NSA e da CIA são os guardas nos portões? A resposta de Snowden a essa pergunta parece ser sim. E eu tenho certeza de que ele está certo.

Hannah Arendt compreendeu a mediocridade de Eichamann. Ao se recusar a avaliar e julgar sua própria conduta ele se colocou a serviço de um regime brutal e criminoso que transformou matar inocentes em virtude e participar da matança numa obrigação. Guardadas as devidas proporções, algo semelhante teria ocorrido com os agentes da Comunidade de Informação dos EUA. Após não conseguirem prevenir os ataques de 11 de setembro os espiões norte-americanos ajudaram a construir um Frankenstein porque não queriam fracassar uma segunda vez (essa, pelo menos, é a versão narrada por Snowden).

“O maior arrependimento da minha vida é meu apoio automático e inquestionável a essa decisão. Eu estava indignado, sim, mas isso foi só o começo de um processo no qual meu coração derrotou completamente meu julgamento racional. Eu aceitei como fatos todas as alegações divulgadas pela mídia, e as repetia como se estivesse sendo pago para isso.” (Eterna Vigilância, Edward Snowden, editora Planeta, São Paulo, 2019, p. 74)

“… descobri que o patriotismo que meus pais haviam me ensinado fora facilmente convertido em fervor nacionalista. Por um tempo, especialmente em minha corrida para entrar no Exército, meu senso de mundo assemelhava-se à dualidade dos videogames menos sofisticados, nos quais o bem e o mal são claramente definidos e inquestionáveis.” (Eterna Vigilância, Edward Snowden, editora Planeta, São Paulo, 2019, p. 95)

O autor de Eterna Vigilância merece toda nossa admiração. Ele conseguiu dar vida às palavras inesquecíveis de Hannah Arendt:

“Quando todo mundo é arrebatado sem pensar por aquilo que todos os demais fazem e acreditam, aqueles que pensam são puxados para fora de seus esconderijos porque a sua recusa a se juntar ao grupo é visível, e com isso, se torna uma espécie de ação. O elemento purificador do pensar, a maiêutica socrática, que traz à luz as implicações das opiniões não examinadas e com isso as destrói – valores, doutrinas, teorias e até convicções -, é político por implicação. Pois essa destruição tem um efeito liberador sobre uma outra faculdade humana, a faculdade do julgamento, que podemos chamar, com alguma justificação, a política das capacidades espirituais do homem.” (Responsabilidade e Julgamento, Hannah Arendt, Companhia das Letras, São Paulo, 2010, p. 256/257)

Mergulhado na cultura pós 11 de setembro Snowden também se transformou numa engrenagem do regime de vigilância totalitária dos EUA. Mas ao contrário dos seus colegas ele conseguiu superar a fase de mediocrização voluntária em que Eichmann se deixou aprisionar até o fim da vida. Snowden foi capaz de julgar seus atos e suas convicções e isso o obrigou a proporcionar ao público a oportunidade de julgar o que o governo dos EUA estava fazendo. Esse, sem dúvida alguma, pode ser considerado o principal motivo pelo qual as autoridades norte-americanos resolveram tentar colocar Eterna Vigilância num Index Librorum Prohibitorum.

Snowden também tomou o cuidado de reforçar com argumentos constitucionais e legais sua rejeição ao papel de Eichmann da Comunidade de Informação norte-americana. Na verdade ele forneceu um roteiro tecnológico que pode ser seguido por qualquer agente que quiser abandonar o totalitarismo virtual com informações que podem ajudar o público a travá-lo.

O ódio das Casa Branca contra o livro de Snowden é perfeitamente compreensível. A obra faz a apologia da dissidência e fornece informações para futuros informantes. Não só isso, ela expõe uma vulnerabilidade intrínseca da Comunidade de Informação dos EUA:

“… a tecnologia digital nos trouxe a uma nova era na qual, pela primeira vez na história registrada, os mais eficazes virão de baixo, das fileiras tradicionalmente menos incentivadas a manter o status quo. Na CI, como em praticamente todas as outras instituições descentralizadas que dependem de computadores, essas camadas mais baixas estão cheias de tecnólogos como eu, cujo acesso legítimo a infraestruturas vitais é totalmente desproporcional à autoridade formal de influenciar decisões institucionais. Em outras palavras, geralmente, há um desequilíbrio entre o que as pessoas como eu pretendem saber e o que temos capacidade de saber e, entre o pequeno poder que temos para mudar a cultura institucional e o vasto poder que temos para mostrar nossas preocupações à cultura em geral. Embora seja possível abusar desses privilégios tecnológicos – afinal, a maioria dos tecnólogos no nível de sistemas tem acesso a tudo -, o maior exercício desse privilégio está nos casos que envolvem a própria tecnologia. Os tecnólogos que buscam informar sobre o mau uso sistêmico da tecnologia devem fazer mais que apenas levar suas descobertas a público, se o significado dessas descobertas for compreendido. Eles têm o dever de contextualizar e explicar; de desmistificar.” (Eterna Vigilância, Edward Snowden, editora Planeta, São Paulo, 2019, p. 204/205)

Outra razão para os espiões norte-americanos tentarem impedir Snowden de desfrutar prestígio e vender seu livro são as consequências inevitáveis das revelações que ele fez em 2013. Os serviços secretos de vários países voltaram a produzir relatórios datilografados, uma medida simples que garante o sigilo e anula totalmente a vantagem tecnológica dos EUA que o autor de Eterna Vigilância ajudou a construir. Nesse exato momento os adversários dos EUA devem estar usando computadores para abastecer os bisbilhoteiros da NSA e da CIA com informações fajutas e falsas para levá-los a construir cenários inexistentes e a extrair conclusões erradas. Snowden, entretanto, foi educado o suficiente para não dizer isso.

O autor de Eterna Vigilância tem méritos, sem dúvida. Mas ele supervalorizou as inovações tecnológicas e suas consequências. Desde tempos imemoriais pessoas comuns podem ser colocadas em situações privilegiadas capazes de lhe garantir o poder de direcionar a história à revelia dos poderosos. Digo isso pensando num exemplo da Guerra de Troia.

Segundo Virgílio (A Eneida, Virgílio, Biblioteca Clássica, vol. XLII, 2a. edição, Atena Editora, São Paulo, 1956, p. 63/64), o principal instrumento da derrota de Troia não foi o cavalo de madeira e sim um mentiroso: Sinon. Foi esse soldado grego que, fingindo ter sido condenado por seus compatriotas, convenceu os troianos a levar a imensa oferenda a Posídon para dentro das muralhas inexpugnáveis da cidade. Se Sinon tivesse revelado aos troianos o conteúdo dela o resultado da guerra seria outro. Naquele momento, o humilde soldado mentiroso, teve em suas mãos tanto poder quanto qualquer analista da NSA (mas nenhum deles será lembrado por tanto tempo).

Não farei aqui um resumo de todo o livro de Snowden. Comprá-lo se tornou um ato de rebeldia. Lê-lo se tornou algo absolutamente indispensável. Sejamos rebeldes bem informados. Finalizo esse texto com uma última observação sobre Eichmann:

“Quanto mais se ouvia Eichmann, mais óbvio ficava que sua incapacidade de falar estava intimamente relacionada com sua incapacidade de pensar, ou seja, de pensar do ponto de vista de outra pessoa. Não era possível nenhuma comunicação com ele, não porque mentia, mas porque se cercava do mais confiável de todos os guarda-costas contra as palavras e a presença de outros, e portanto contra a realidade enquanto tal.” (Eichmann em Jerusalém, Hannah Arendt, Companhia das Letras, São Paulo, 2008, p. 62)

Com sua prosa envolvente e elevante e, algumas vezes literariamente sofisticada, Snowden desarmou os guarda-costas com os quais os agentes da NSA da CIA se cercam para tentar manter um império global criminoso que pretende vigiar todos o tempo todo em todos os lugares. Quantos deles serão capazes de seguir o exemplo do autor de Eterna Vigilância? A conferir.

Fábio de Oliveira Ribeiro

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