Fascismo, loucura e o delírio autoritário no Brasil, por Marcia Noczynski

Sem freios, pensamento crítico, compromisso ético ou alguma empatia, os fascistas, simpatizantes, flertantes e aspirantes ao fascismo nunca se sentiram tão em casa.

Fascismo, loucura e o delírio autoritário no Brasil

por Marcia Noczynski

Há duas semanas, o Coletivo Iniciativa Alemã Lula Livre conversou com a filósofa e escritora Marcia Tiburi sobre o tema “Psicopoder e loucura no Brasil atual”, na tentativa de discutir e entender a crescente onda fascista que se instalou no Brasil. Para a filósofa, o alarme do fascismo havia soado há mais tempo, antes mesmo do Golpe político que retirou Dilma Rousseff da Presidência da República, em 2016, nos discursos ou ações com sinais de configuração subjetiva idêntica às das personalidades fascistas. Seu livro “Como conversar com um fascista” foi publicado em 2015.

No encontro com o nosso Coletivo, no entanto, Marcia apresenta um elemento a mais ao tema. Ela versa sobre a relação do fascismo com os sistemas demenciais. Sustentada pelo pensamento de Theodor Adorno (1903-1969), filósofo e sociólogo alemão, que formulou o conceito da Síndrome Autoritária, ela busca rastrear e definir a origem do campo fértil aberto ao fascismo na sociedade brasileira. Com muita responsabilidade teórica e empírica, a filósofa aponta sob qual registro e de que forma o fascismo foi introduzido em nossa cultura.

Em seu mais recente livro, “Delirio do poder: psicopoder e loucura coletiva na era da desinformação” (2019), a escritora elucida o termo psicopoder, um dispositivo que se utiliza das categorias do mundo psi como categorias políticas. À guisa de Adorno e sua afirmação de que os sistemas fascistas têm uma sensível intimidade com os sistemas demenciais, Marcia articula a radicalização dos extremismos de direita com a “loucura” coletiva no Brasil atual.

Ao conceber o mundo psi nas relações políticas, não poderia faltar na dissertação da filósofa uma alusão ao pai da Psicanálise. Extrai da obra de Freud, o caso de Daniel Schreber, paciente paranoico que o psicanalista jamais teve, mas a quem se autorizou a analisar e elaborar interpretações a partir da leitura acurada de sua autobiografia datada de 1903, e reuni-las, posteriormente, no livro “Notas psicanalíticas sobre o relato autobiográfico de um caso de paranoia” em 1911.

Mas que equiparação seria possível construir a partir do caso Schreber para se falar da situação política do Brasil? Aqui, entro eu, do lugar de psicanalista e me aventurando pelos ventos psis que Marcia veleja, naveguei um pouco mais a fundo em sua menção a Freud e ensaiei algumas suposições. Para tanto, é necessário que conheçamos um pouco da história familiar de Schreber, e quem sabe, com alguma alegoria, reconhecê-la em certos personagens e contextos do nosso picadeiro político.

Daniel Schreber nasceu em 1842 no seio de uma renomada família alemã. Seu pai, um educador tirânico e opressor, ganhou reconhecimento na sociedade alemã da época por ter criado um sistema educacional capaz de coibir os impulsos sexuais das crianças. Para difundir suas teorias criou as Associações Schreber e conseguiu reunir uma média de dois milhões de alemães interessados em praticar sua tese. Em seu principal livro “Ginástica Médica de Salão”, que atingiu quarenta edições, atestava que através da ginástica, do higienismo e da ortopedia nasceria um novo homem, puro, forte e sem os vícios mundanos.

O mais trágico é que o educador não se continha apenas com a propagação da sua teoria desumana. Uma das criações do pai de Schreber foi um aparelho ortopédico que impedia à criança tocar em seu corpo enquanto dormia. Essa engenhoca, ele testava nos próprios filhos. Schreber nunca conseguiu dizer não às barbáries do pai, ao contrário, dizia-se apaixonado e devoto ao progenitor como a um deus.

Interessa a nós, no momento, destacar que o surto paranoico de Schreber foi deflagrado bem mais tarde em uma situação em que também não conseguiu dizer não a uma autoridade. Aos cinquenta anos, foi convidado a ocupar o cargo de Presidente do Tribunal de Apelação em Dresden, posição que não se sentia capaz de sustentar, mas viu-se impelido a aceitar à revelia, pois rejeitar uma proposta daquele calibre seria uma heresia imperdoável para alguém que foi educado para ser o “novo homem”.

O sistema delirante de Schreber era circunscrito na figura de Deus. Acreditava, assim como o seu pai, que deveria criar um novo homem, perfeito como ele estava incumbido de ser e como o Criador. Seu delírio consistia então em ter o seu corpo transformado em uma mulher para poder copular com Deus. A partir desse cruzamento, o mundo seria povoado apenas por homens superiores.

Para Freud, o Deus a quem Schreber entregaria seu corpo para cópula, dentro de sua fantasia delirante, era o seu próprio pai, a quem admirava, temia e se achava em dívida, pois não havia se tornado o super-homem aspirado pelo pai. Não logrou ser o Presidente do Tribunal. Restava agraciar o pai com seus filhos supremos produto do coito com Deus.

No Brasil de hoje, qualquer semelhança ao caso clínico de Freud não é mera coincidência. Vivemos um momento “pai de Schreber”, em que temos no poder um tirano, que vilaniza seus filhos de todas as formas. Alguns já ousaram diagnosticar Bolsonaro como doente mental; psicopata, esquizofrênico, paranoico, louco varrido. Outros, simplesmente o identificam como um fascista dos mais sórdidos. Tiburi, assertiva, nos esclarece, “gente, as coisas não são excludentes”. Ele é louco e é fascista, e seu discurso é capaz de deixar o povo brasileiro em transe, provocar delírios coletivos de autoritarismo, como trajar símbolos do nazismo e do fascismo com segurança e acreditar na cegueira da sua ordenação delirante.

Em nome de Deus, Bolsonaro quando eleito, sem nenhum filtro crítico, anunciou que não estaria ali para construir nada, que seu negócio, ao invés, era destruir. Desejava refazer todo um projeto de país, baseado em seus princípios morais/mortais edificados em sua carreira fracassada no exército, seu porte atlético de ex paraquedista e seu passado de vinte e oito anos de privilégios em sua invisível vida política.

Bolsonaro tem orgulho de ser branco de origem europeia, de carregar sobrenome italiano, de frequentar o círculo dos militares, de suas atividades físicas, mas principalmente, de ser subletrado até o último fio de cabelo. Em sua ignorância sem paralelo, sente-se autorizado a sequestrar a consciência das pessoas, pois para ele o povo não passa de uma gentalha subalterna, um bando de miscigenados pobres e vagabundos, que precisam a passos largos melhorar como raça, do contrário, infelizmente, vão ter que morrer alguns inocentes.

Declaradamente racista, homofóbico, eugenista, misógino, Bolsonaro orienta o povo a quebrar o pacto civilizatório, a recusar a enxergar a realidade, a surfar nas ondas do fascismo, haja vista o seu apelo às pessoas invadirem os hospitais, o que foi obedecido. Mas por que uma insanidade dessas ganha corpo? O povo, inebriado com a possibilidade de se transformar nos homens super-heróis à imagem e semelhança do seu amo, não se intimida em sair dos patamares básicos da convivência democrática e buscar seu ninho no covil do fascismo.

O fascismo passa a se configurar um traço cultural, construído através de estratégias implantadas pelos criadores do Mito, isto é, pelas oligarquias financeiras, que têm interesse no avanço da ultra direita para poder sedimentar seu ideal de sistema político inescrupulosamente neoliberal. Eles atuam de maneira coordenada, são responsáveis pela indústria de fake News, pelos robôs, os conhecidos Bots do Bolsonaro, pela manutenção do gabinete do ódio, a cargo de Carlos Bolsonaro, e pelo aperfeiçoamento de todas as táticas disseminadoras de desinformação.

Hoje, os pensamentos, atos e falas fascistas não respeitam qualquer fronteira. O ódio está autorizado, legitimado, deve ser difundido e bastante exposto, pois além de tudo, para fazer parte da seita dos raivosos, é preciso também honrar o seu ódio. Como lembra Marcia, temos inclusive um novo tipo de fascismo a serviço, o fascismo ostentação.

Sem freios, pensamento crítico, compromisso ético ou alguma empatia, os fascistas, simpatizantes, flertantes e aspirantes ao fascismo nunca se sentiram tão em casa. Incentivados por seu mito e tementes a ele, ignoram que são usados para uma causa na qual estão sumariamente excluídos. Reagem com ódio irrefletido a qualquer um que se oponha ao seu delírio autoritário. Ameaçam, atacam, agridem, saqueiam a mínima possibilidade de convívio civilizado. Assim como seu mestre, não respeitam as diferenças, a alteridade, especialmente aquelas que fazem ressonância à fragilidade do homem comum.

Com esse cenário, afundamos dia a dia numa fascistização abissal, convertendo o que outrora o antropólogo Sérgio Buarque de Holanda havia se referido como povo cordial em seu oposto, em fantoches que permitem que os ovos do fascismo sejam gestados em seus corações, e diferente de Schreber que levou alguns anos até que seu delírio fosse deflagrado, nos brasileiros os ovos estragados eclodem diariamente. E isso já passou há muito do ponto de ser perigoso.

Marcia Noczynski – Psicóloga e Psicanalista

Redação

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