Fernando Pessoa e Antonio Conselheiro, por Walnice Nogueira Galvão

De um lado, um poeta português de alto bordo. De outro, um sertanejo perdido nas entranhas do país.

Fernando Pessoa e Antonio Conselheiro

por Walnice Nogueira Galvão

Um nexo entre esses dois? Nada parece mais intransponível que o abismo entre ambos: há até um oceano de permeio. De um lado, um poeta português de alto bordo. De outro, um sertanejo perdido nas entranhas do país. Que, conforme o olhar de Euclides da Cunha, nublado pelo consenso negativo mas carregado de admiração, foi para a História como poderia ter ido para o hospício. Entretanto, tão esdrúxula aproximação acabaria por ocorrer.

Quem quiser conferir, pode recorrer à leitura de Em demanda do sebastianismo em Portugal e no Brasil, doutorado do brasileiro Joel Carlos de Souza Andrade na Universidade de Coimbra (consulte o site). Professor da Universidade de Caicó, no Rio Grande do Norte, teve arrojo intelectual para tratar de sebastianismo num país onde todos se consideram autoridade no assunto.

A aproximação baseia-se em inéditos e fragmentos da mão do poeta em seu espólio na Biblioteca Nacional de Lisboa, recolhidos em dois livros referidos no rodapé da p. 282.  O poeta teria lido Euclides e registrado afinidades: “À memória de Antonio Conselheiro, bandido, louco e santo, que, no sertão do Brasil, morreu, como um exemplo, com seus companheiros, sem se render, batendo-se todos, últimos Portugueses, pela esper[ança] do Quinto Imp[ério] e da vinda quando Deus quisesse, de El-R[ei] D. Sebast[ião], nos[so] Senh[or], Imperador do Mundo.”  (Entre colchetes, o desenvolvimento das abreviaturas, como de praxe.)

Como se sabe, o sebastianismo de Antonio Conselheiro é discutível. Esforçando-se, Euclides chegou a inserir em seu livro umas poucas  quadrinhas e profecias escritas nesse tom, que vieram à tona em meio aos despojos. E ainda assim, em parte porque, por mais que procurasse, não conseguiu encontrar outra doutrina a alimentar a utopia canudense.

Bem diferente foi a Guerra do Contestado, insurreição camponesa irrompendo entre Paraná e Santa Catarina (1912-1916), que manteve extensa área conflagrada durante quatro anos. Nela se confrontaram os posseiros espoliados de suas terras pela ferrovia inglesa  e o exército brasileiro que lhe dava respaldo, massacrando os camponeses. Ali sim pode-se falar em sebastianismo explícito: o “rei” ou comandante supremo era chamado de D. Sebastião; seu nome era dado aos baluartes; as hostes em pé de guerra formavam o Exército Encantado de D. Sebastião; e assim por diante. Também no episódio da Pedra Bonita, na Paraíba,  sacrifícios humanos eram feitos para que o sangue vertido sobre o penhasco desencantasse D. Sebastião, ali emparedado.

Por seu lado, Fernando Pessoa era obcecado por D. Sebastião. Fazia apelo à tradição literária que vinha desde Camões, que dedicou Os Lusíadas a El-Rei, seu contemporâneo; ao Padre Vieira que escreveu sobre o Quinto Império ou a volta do monarca; às trovas proféticas do sapateiro Bandarra; e decantaria tudo isso no livro Mensagem. Os registros mostram que via no Brasil a possível concretização do Quinto Império e da utopia sebastianista, que encarnaria no que chama de Novo Portugal – encontrando indícios em Euclides da Cunha e Antonio Conselheiro.

A utopia fala de D. Sebastião, rei de Portugal, desaparecido nos areais do Marrocos aos 24 anos com toda a elite da jovem nobreza de seu país, na batalha de Alcácer-Quibir (1580). Seu corpo nunca foi encontrado, mas ele ressurgirá um dia inaugurando a Idade de Ouro, quando o reino da liberdade e da igualdade entrará em vigência em todo o planeta. Paz, abundância e prosperidade serão seu apanágio. Tudo isso sob o signo do Espírito Santo, nume do Quinto Império.

Um dos livros citados traz ainda a autenticação do próprio Fernando Pessoa às transcrições que fez de alguns trechos de Os sertões, que servem a seus propósitos.  Tem o cuidado de registrar sua origem, especificando que apareceram nos escombros do arraial e foram lá recolhidos pelos soldados ou por testemunhas interessadas, como Euclides. O fato é que encontrou afinidades com Antonio Conselheiro e tratou de documentá-las, vendo em nosso país o futuro da utopia que acarinhava. É de lamentar que o líder de Canudos não tivesse oportunidade de tomar conhecimento de tão egrégio aliado.

Walnice Nogueira Galvão é Professora Emérita da FFLCH-USP

Este artigo não expressa necessariamente a opinião do Jornal GGN

Walnice Nogueira Galvão

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