Governo Bolsonaro autoriza a queima de documentos originais, por Charlley Luz

O PL 7920, também conhecido como “PL da Queima de Arquivo”, da mesma forma que a MP, autorizava a destruição de documentos originais após a digitalização, desconsiderando os riscos de fraudes do processo de digitalização, além de ser economicamente errada.

Governo Bolsonaro autoriza a queima de documentos originais

por Charlley Luz

A Medida Provisória (MP) 881, chamada de “MP da Liberdade Econômica” ou “Declaração de Direitos de Liberdade Econômica”, trouxe a desregulamentação de uma série de instrumentos que garantiam a segurança jurídica em diversas relações, como trabalhistas e econômicas. Mas uma importante regulamentação foi pouco comentada. A MP881 aprovada pela Câmara e Senado também decidiu sobre a digitalização de documentos, projeto de lei que tramitava sob o número 7920/17 e que foi desconsiderado pelo governo. 

O PL 7920, também conhecido como “PL da Queima de Arquivo”, da mesma forma que a MP, autorizava a destruição de documentos originais após a digitalização, desconsiderando os riscos de fraudes do processo de digitalização, além de ser economicamente errada. Isto porque estimula a impressão de documentos, ao invés da criação de documentos que já nasçam no ambiente digital. 

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No Art. 3 da MP aprovada, no inciso X, é autorizado arquivar qualquer documento por meio de microfilme ou por meio digital, conforme técnica e requisitos estabelecidos em regulamento, hipótese em que se equiparará a documento físico para todos os efeitos legais e para a comprovação de qualquer ato de direito público.

Com este artigo, a MP que tratava só de documentos empresariais abarcou também os documentos públicos. Além disso, deixa em aberto a forma de regulamentação, principalmente em relação à técnica e requisitos que estão abertos a todo tipo de interpretação.

Assim a MP define que, para documentos particulares, a segurança jurídica se dará por qualquer meio de comprovação da autoria e integridade. E mais, é válido para a confidencialidade de documentos em forma eletrônica, desde que escolhido de comum acordo pelas partes ou aceito pela pessoa a quem for oposto o documento.  Porém a lei não define o que ocorre se houver reclamação em relação ao documento. Ou seja, a lei cria a insegurança jurídica na prática.

Outro erro básico da MP 881 é em relação à certificação da digitalização, que afirma que empregar o uso da certificação no padrão da Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira (ICP-Brasil) terá garantia de integralidade, autenticidade e confidencialidade para documentos públicos e privados. A integridade não pode ser definida por um certificado, pois este diz respeito ao processo de scanner e não à produção do documento original. O mesmo ocorre com a autenticidade que só pode ser verificado com um original. O documento natodigital já conta com isto em seus metadados, mas o digitalizado não contém estas qualidades.

Para poder queimar os arquivos, foi necessário alterar uma série de leis já existentes, como forma de autorizar a eliminação de originais. Entre elas a Lei nº 12.682, de 9 de julho de 2012, que incorpora os documentos públicos ou privados, compostos por dados ou por imagens. Afirma, ainda que após a digitalização, constatada a integridade do documento digital nos termos estabelecidos no regulamento, o original poderá ser destruído, ressalvados os documentos de valor histórico, cuja preservação observará o disposto na legislação específica. Não existe hoje, na legislação brasileira, nada que defina o que é documento histórico.

Além disso, a MP tira do ministério da justiça (e do arquivo nacional) a prerrogativa de regulamentação. Esta passa ao ministério da Economia, por meio de ato do Secretário de Governo Digital da Secretaria Especial de Desburocratização, Gestão e Governo Digital do Ministério da Economia, que estabelecerá os documentos cuja reprodução conterá código de autenticação verificável.

Outro ponto que a MP fez, foi jogar no colo do mercado de tecnologia a definição de metodologias e técnicas, em detrimento às pesquisas científicas realizadas nas universidades. A lei afirma que é lícita a reprodução de documento digital em papel que contiver mecanismo de verificação de integridade, na maneira e com a técnica definidas pelo mercado. Assim, além de transferir uma boa área de lucro nas definições de produtos tecnológicos, a lei que veio para diminuir os custos de impressão incentivará a impressão em papel dos documentos digitalizados, agora em cópias infinitas visto que basta ter a assinatura eletrônica para ser considerado verdadeiro.

Por último, valerá apenas assinaturas eletrônicas pagas, não valem assinaturas definidas pelas instituições em seus sistemas próprios, visto que a lei diz que para documentos públicos será usada apenas certificação digital no padrão da Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira (ICP-Brasil).

Assim, o governo agora pode queimar documentos originais, pagar caro para digitalizar estes documentos e autenticar, pagar para imprimir de novo como previsto na MP881 e tudo regulado pelo mercado que vai definir preços e tecnologias com poder concedido por lei. Em época de Amazônia sendo queimada, o papel que vem das árvores volta a ser uma tecnologia de ponta do governo, que gastará muito mais com seu projeto esquizofrênico de digitalização.

*Charlley Luz é arquivologista, mestre em Ciência da Informação (ECA-USP) e coordenador dos cursos de pós-graduação em Gestão Arquivística, Gestão da Informação Digital e Gestão de Serviços da Informação na Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP).

Redação

4 Comentários

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  1. Creio que vamos ter que esperar essa onda de barbárie e vandalismo passar. Pouco podemos fazer exceto mantermos pessoalmente civilidade, até para que ensinemos isso a nossos filhos. Mas até lá, com as feras soltas, ganha o mais feroz, essa é a Justiça. Sempre podemos escrever regras e leis mas de que adianta se não é para cumpri-las? Civilidade (como disse, Lula, para que se faça a Justiça é só cumprir a CF) parece que demora um pouquinho, ainda… Enquanto isso os que têm mais poder continuam chamando os que tem menos para a briga.

  2. Creio que vamos ter que esperar essa onda de barbárie e vandalismo passar. Pouco podemos fazer exceto mantermos pessoalmente civilidade, até para que ensinemos isso a nossos filhos. Mas até lá, com as feras soltas, ganha o mais feroz, essa é a Justiça. Sempre podemos escrever regras e leis mas de que adianta se não é para cumpri-las? Civilidade (como disse, Lula, para que se faça a Justiça é só cumprir a CF) parece que demora um pouquinho, ainda… Enquanto isso os que têm mais poder continuam condicionando a participação dos que tem menos a brigar. “Se não for pela briga, não pode participar.”, dizem os mais poderosos.

  3. Parabéns, perofessor Charlley Luz, pela percepção, pelo conhecimento técnico e pelo excelente artigo. Infelizmente, estamos assistindo a queima do Brasil. O atual governo trabalha incessantemente para destruir “tudo que está aí”: democracia, soberania, recursos naturais e direitos, especialmente para os mais vulneráveis. Tudo para defender, interesses de alguns poucos poderosos, em grande parte estrangeiros, que lucram com esta destruição.

  4. É um artigo que tem sua valia, claro, mas que analisa o assunto apenas por uma ótica. A outra ótica é o benefício que ela traz. Veja:

    1 – O número de documentos que empresas e contadores têm que guardar por 5 a 7 anos é absurda, gerando a necessidade de haver espaços físicos que contribuem sim para uma perda econômica e (por que não?) ambiental;

    2 – Hoje, mesmo havendo a guarda dos documentos físicos, as empresas já digitalizam os mesmos, gerando (como citado) riscos de perda econômica em função de impressões diversas do mesmo documento. Então, não seria tal Lei/MP que estimularia isto;

    3 – A guarda do documento físico original não elimina a possibilidade de risco jurídico e contestação. O físico facilita processos florenses sim, isto é verdade. Mas o número de processos judiciais em que se chega em um ponto deste (contestação do documento físico com análise florense) é ínfimo, não justificando a exclusão de tal Lei/MP;

    4 – Gerar receita para a área tecnológica privada? Não creio. Hoje a área provada já tem uma receita excelente em função da necessidade de guarda de documentos físicos. Imobiliárias, empresas especializadas em gestão de GED,… Se analisarmos os custos só imobiliárias, podemos ter certeza que a diminuição deles, em função da não alocação de espaços físicos, serão infinitamente maiores que os custos de tecnologia envolvidos.

    5 – Ação do Governo para ter receitas com certificado? Não acredito nisto. Além disto, é opcional. A empresa pode ter a opção de manter o físico se quiser. O próprio empregado também, numa análise de relação trabalhista. Aí cabe a qualquer um medir os custos. Mais vale o custo de Certificados Digitais ou espaço físico?

    Concluindo, vejo por outro prisma. Vejo esta lei gerando uma economia enorme em ambiente físico, desburocratização com uma enormidade de pastas e papeis que empresas e contadores têm que guardar, trazendo conceitos atuais de países de 1º mundo para o Brasil. Novamente, não obriga ninguém a nada. Se alguém quiser um documento físico e guardar sua via (seja uma das partes ou um empregado), continuará podendo solicitar e guardar.

    Abraço

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