Hobsbawm, a pandemia e o fim de uma era, por Fábio de Oliveira Ribeiro

A pandemia provocou uma ruptura histórica. Ela mudou radicalmente a realidade, provocando uma evidente revalorização da política.

Hobsbawm, a pandemia e o fim de uma era, por Fábio de Oliveira Ribeiro

Na entrevista que deu ao jornalista Antonio Polito, Eric Hobsbawm afirma que:

“Por sua própria natureza, a sociedade de consumo contemporânea cada vez mais obriga as estruturas políticas a se adaptarem a ela. Na verdade, a teoria do livre mercado alega que não há necessidade da política, pois a soberania do consumidor deve prevalecer sobre todo o resto: o mercado supostamente deve garantir o máximo de escolhas para os consumidores, permitindo-lhes satisfazer todas as suas necessidades e desejos por meio dessas escolhas. Esse caminho ignora o processo político, torna-o um efeito colateral, ou derivado, do mercado. Esse é o motivo da tremenda difusão de ocupações como relações públicas e assessoria política, e da aplicação à política de sistemas como os focus group, que na verdade se baseiam nas pesquisas de mercado.

Isso coloca em crise a própria função da cidadania. Se os consumidores são capazes de alcançar seus objetivos pelo exercício cotidiano de seu poder de escolha ou pela indicação de suas opiniões aos mecanismos de consulta da mídia, o que resta exatamente da cidadania? Há alguma necessidade de mobilizar grupos de pessoas para a realização de objetivos políticos?

Essa evolução do mercado destrói a própria base dos procedimentos políticos. O estabelecimento de uma relação direta entre o ponto mais baixo do sistema, o consumidor, e o ponto mais alto, o responsável pelas decisões políticas, não deixa nenhum espaço para a essência da política, definida por Habermas como a organização da ‘esfera pública’ na qual as pessoas articulam opiniões e se unem para alcançar objetivos coletivos.” (Eric Hobsbawm – O novo século: entrevista a Antonio Polito, Companhia de Bolso, São Paulo, 2013, p. 105/106)

O que o grande historiador inglês disse era válido no contexto em que a entrevista foi dada. A pandemia provocou uma ruptura histórica. Ela mudou radicalmente a realidade, provocando uma evidente revalorização da política.

A pandemia evidenciou imediatamente o mercado cria escolhas ilusórias. Os consumidores que pagam planos de saúde já começaram a sofrer restrições de atendimento. A princípio, os empresários do setor tentaram empurrar para o Estado a obrigação de atender todos os pacientes contaminados pelo COVID-19. Foi preciso a ANS adotar uma série de recomendações para obrigar os empresários do setor a realizar testes e internar os seus clientes que se tornaram vítimas da pandemia http://www.ans.gov.br/aans/noticias-ans/consumidor/5454-coronavirus-ans-reforca-orientacoes-a-beneficiarios-de-planos-de-saude-durante-pandemia. Na prática, entretanto, somente o Judiciário poderá resolver as disputas inevitáveis que surgirem entre os clientes e os planos de saúde. Algumas dessas disputas são claramente esperadas apelo IDEC https://idec.org.br/dicas-e-direitos/coronavirus-seus-direitos-com-seu-plano-de-saude.

O Estado tem uma função a cumprir durante a pandemia. A predominância da ideologia de que a mão invisível do mercado é capaz de substituir a política, entretanto, conspira para o fracasso das ações estatais de combate ao COVID-19. O número assustador e crescente de mortes nos EUA e no Equador podem ser creditados à privatização da saúde. A demora do Estado em assumir os hospitais privados certamente colaborou para a tragédia que está ocorrendo na Espanha.

A captura do Estado pelo mercado transformou a política numa pantomima encenada por líderes que faziam promessas que não seriam cumpridas e por consumidores que passaram a demonizar o serviço público ou a fazer de conta que o Estado era irrelevante. A pandemia colocou um fim na pantomima. Assim que pessoas começaram a cair mortas em suas casas, nas ruas ou nos hospitais superlotados, em todos os países as populações começaram a perceber que ninguém seria salvo pelo Deus Mercado. A mão invisível desaparece quando não pode embolsar lucros e a pandemia causará prejuízos que somente podem ser contornados ou suportados pelo Estado. A falência de serviços públicos de saúde subdimensionados e incapazes de lidar com o problema e ganância dos donos de planos de saúde que escolherem preservar seus lucros a cuidar dos clientes não serão esquecidos. Ambas as coisas estarão para sempre ligadas à dor da perda de um parente, de um amigo, de uma pessoa conhecida, de uma celebridade.

É evidente que o mundo já passou por inúmeras pandemias. Em meados do século II d.C. a Peste Antonina arruinou o Império Romano e o Império Chinês https://jornalggn.com.br/blog/fabio-de-oliveira-ribeiro/coronavirus-uma-nova-peste-antonina/. A Peste Negra dizimou a população europeia entre 1347 e 1353 https://pt.wikipedia.org/wiki/Peste_negra. A Gripe Espanhola fez milhões de vítimas nas primeiras décadas do século XX https://pt.wikipedia.org/wiki/Gripe_espanhola.

A pandemia do COVID-9 se diferencia de todas esses episódios por um detalhe importante. Mesmo que permaneçam isolados em quarentena, 3,9 bilhões de usuários internet continuarão a ter acesso às notícias e países que controlam a informação (e até os Estados democráticos já começaram a fazer isso https://jornalggn.com.br/blog/fabio-de-oliveira-ribeiro/diario-da-peste-13/) não é possível filtrar todas as informações. O que deveria ser um segredo de Estado (a contaminação dos marinheiros num porta-aviões) acabou rapidamente se transformando em notícia.

O vírus circula rapidamente. As notícias circularão numa velocidade ainda maior. As reações indignadas dos consumidores às limitações ao atendimento impostas pelos planos de saúde e dos cidadãos contra a incapacidade do Estado de conter o avanço da pandemia, tratar dos doentes e enterrar os mortos já podem ser notadas. Quando as ruas estiverem seguras e os países interromperem a quarentena as ruas ficarão cheias de pessoas querendo respostas, soluções, mudanças e, é claro, a responsabilização dos culpados (sejam eles empresários, banqueiros ou políticos).

De certa maneira algumas mudanças já começaram a ocorrer. E até mesmo dois líderes políticos neoliberais como Donald Trump e Boris Johnson perceberam que o Mercado terá que entregar alguns anéis para não perder os dedos, a mão, a cabeça e as pernas. Jair Bolsonaro foi obrigado a sancionar as medidas de alívio aprovadas no Parlamento brasileiro. Ele claramente agiu contra sua vontade de causar um genocídio. Carlos Bolsonaro ficou irritado e disse que a pandemia provocou o retorno do socialismo. Ao que o filho do mito, também conhecido como pavão misterioso, prefere um regime capitalista selvagem que obedeça a ortodoxia neoliberal.

A verdade nua e crua e crua é que somente os países socialistas conseguirão sobreviver ao vendaval político provocado pela pandemia. Cuba exporta médicos e um padrão civilizatório invejável. A China exporta material médico e o conhecimento do combate à pandemia numa grande cidade. O que os EUA exportam além de filmes e armamentos? Um modelo político que tem tudo para causar milhões de cadáveres, muitos deles no território norte-americano.

O jornalista Luis Nassif comparou o governo brasileiro ao Exército Brancaleone. A comparação me parece injusta. O filme de Mario Monicelli faz rir. Se não fossem impedidos pelo Parlamento e pelo STF, Bolsonaro e seus comparsas aproveitariam a pandemia para causar um genocídio. Eles estão absolutamente cegos, pois acreditam que as condições em que vivemos são as mesmas que levaram Eric Hobsbawm a diagnosticar a falência democracia em virtude do sucesso do neoliberalismo.

Quando o historiador deu a entrevista, as eleições eram “…acontecimentos cada vez mais dominados por minorias, [que] não conseguem atrair as maiorias, prejudicando-se assim a integridade do processo político.” (Eric Hobsbawm – O novo século: entrevista a Antonio Polito, Companhia de Bolso, São Paulo, 2013, p. 107). O trauma social imenso causado pela pandemia do COVID-19 é previsível.

Essa pandemia vai restaurar a credibilidade da política e revitalizar a certeza de que somente o Estado pode cuidar da saúde pública melhor do que o Mercado. Desde o final da década de 1908 a direita neoliberal usa a queda do Muro de Berlim para conquistar os corações e mentes dos eleitores a fim de possibilitar a captura do Estado pelo Mercado. Agora é a vez da esquerda pós-socialista e dos líderes políticos genuinamente preocupados com a saúde da população mobilizar o trauma da pandemia para frear os abusos cometidos pelos banqueiros e empresários dispostos a transformar a vida humana numa mercadoria descartável e lucrativa.

Hobsbawm disse a Polito que “… o próprio êxito da esquerda acabou por enfraquecê-la.” (Eric Hobsbawm – O novo século: entrevista a Antonio Polito, Companhia de Bolso, São Paulo, 2013, p. 95). Agora o oposto pode ser dito. O próprio sucesso da direita em privatizar a saúde enfraqueceu sua capacidade de lidar com a pandemia e com os inevitáveis desdobramentos políticos dela.

Fábio de Oliveira Ribeiro

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