
Ideologia e experiência: Marilena Chaui, bell hooks e Grada Kilomba
por Josadaque Martins Silva e Paulo Fernandes Silveira
“Eles têm conhecimento, nós temos experiências”
(Grada Kilomba, Memórias da plantação, p. 52).
Antigos sábios ocidentais e orientais preocuparam-se com a possibilidade do abandono da experiência por causa da prevalência da muita instrução. Na língua de Heráclito, Parmênides e Sócrates, a muita experiência se diz polypeiria, enquanto que a muita instrução se diz polymathía (FRANK, 2013). Uma pessoa experiente nem sempre tem muita instrução, assim como nem toda pessoa instruída passou por muitas experiências, uma vez que a transmissão de determinadas instruções prescinde da experiência.
Para os egípcios, a sede grega de conhecimento impede a preservação dos mistérios e dos segredos (ASSMANN, 2005). Num dos seus diálogos, Platão (1997) narra um mito egípcio sobre a criação da escrita: Theuth apresenta sua invenção a Tamos, rei do Egito, como sendo um remédio da mémória e da sabedoria; o rei discorda. Na medida em que a escrita transmite conhecimentos sem a necessidade de aprendizado: “aos estudiosos oferece a aparência da sabedoria e não a verdade” (PLATÃO, 1997, 275a).
No texto “Caminho para o céu”, o sábio taoísta chinês Zhuangzi (2013) narra uma parábola sobre a experiência e a sabedoria: o duque Huan trazia consigo um livro com as palavras dos sábios, quando foi interpelado por Pian, um simples carpinteiro; segundo Pian, somente a sabedoria adquirida pela experiência pode lhe indicar a força necessária para cinzelar uma roda. Essa sabedoria não pode ser transmitida por palavras, de modo que ela não se encontra em livro algum.
As figuras do polímata ou do erudito (ērudītus), palavra de origem latina que significa, literalmente, pessoas que se afastam (ē) da rudeza (rudis), atravessa diversos períodos da história (PFEIFFER, 1976, 1998; BURKE, 2020).
Diversos escritores renascentistas criticam os eruditos que se portam como pedantes. A palavra pedante nos remete ao verbo latino paedare que, por sua vez, traduz o verbo grego paideuein, que trata das práticas de quem ensina crianças (KÜHLMANN, 1982). Nas línguas latinas, o termo pedante refere-se ao mestre-escola. Numa segunda acepção, o pedante refere-se à pessoa que faz questão de exibir sua muita instrução.
Num ensaio dedicado ao pedantismo, Michel de Montaigne não critica todas as formas de erudição e de pedagogia, mas somente aquelas que separam a ciência da experiência: “Assim como as aves que precisam obter o biscato dos seus filhotes vão em busca do grão e o trazem em seus bicos sem experientá-lo, nossos mestres-escola (pedantes) saqueiam a ciência nos livros e a acomodam na ponta dos lábios, para simplesmente despejá-la e lançá-la ao vento” (1965, p. 208-209).
Para explicitar sua posição, Montaigne faz alusão às comédias italianas que retratam o mestre-escola como uma personagem ridícula (GRAF, 1886). Na sátira popular da Comedia Dell’Arte, o pedante é reconhecido como o doutor(Dottore), um humanista idoso e decadente que cultiva um discurso pomposo, permeado de expressões latinas e fragmentos recolhidos da erudição clássica (HENKE, 2002). Ainda que discorra fluentemente sobre os mais diversos assuntos, o Dottore é um charlatão.
N’O mundo como vontade e representação, Arthur Schopenhauer (2005) faz uma análise cuidadosa dos “disparates cômicos” promovidos pelos pedantes. Eles ocorreriam pelo fato do entendimento ficar: “por inteiro sob a tutela da razão, recorrendo a esta em todas as oportunidades; sempre partindo de conceitos universais, regras e máximas, querendo apegar-se a eles rigidamente na vida, na arte e, sim, nas boas condutas éticas” (SCHOPENHAUER, 2005, p. 111).
Essas ponderações de Schopenhauer influenciaram diversos escritores e, provavelmente, contribuíram para a criação de personagens literárias, tais como: o pedante Brás Cubas, de Machado de Assis (1998), o heterônomo Alberto Caieiro, de Fernando Pessoa (1980), e o memorioso Funes, de Jorge Luis Borges (1997).
Em suas pesquisas sobre a pedagogia humanista, Eugenio Garin aponta para a distinção estabelecida no renascimento italiano entre a “imitação fecunda”, capaz de impulsionar a criação original, e a “imitação servil”, que não passa de: “um treinamento para repetir uma verdade já expressa” (1987, p. 97). Para alguns autores do período, o pedantismo é tomado como uma degeneração ou como um mal entendido com relação à importância e o significado do estudo das obras clássicas.
Segundo Claude Lefort (1990), os pedantes não foram os únicos a fecharem os olhos para a realidade ao seu redor. Ao conceber a essência do homem a partir da filosofia e da literatura greco-romana, a cultura renascentista ignorou: “o que não se recolhe no campo do pensamento humanista ou metafísico, aquilo de que o pensamento faz a experiência como estando do lado de fora de si mesmo, ou seja, os efeitos da divisão social e da divisão temporal” (LEFORT, 1990, p. 291).
Por essa via, afirma Lefort, o humanismo tornou possível o nascimento da ideologia. Nos textos de Marx sobre a questão, a ideologia figura como um discurso que pretende “sobrevoar o real permanecendo no desconhecimento das condições que lhe asseguram sua posição de exterioridade” (LEFORT, 1974, p. 15). No discurso ideológico forjado no renascimento: “o particular é disfarçado sob traços do universal, enquanto o histórico é apagado sob a a-temporalidade da essência” (LEFORT, 1974, p. 16).
Na perspectiva marxista, a principal função da ideologia burguesa é ocultar ou dissimular a divisão social com um discurso sobre o social que lhe permita preservar sua dominação frente à classe trabalhadora: “Tomada em sentido restrito, a ideologia parece constituir o conjunto das representações que a classe dominante forma para fazer crer na legitimidade e na necessidade de sua dominação e esconder a si própria dos fundamentos dessa dominação” (LEFORT, 1990, p. 271).
No pós-guerra, com o desenvolvimento dos meios de comunicação de massa, houve um aprofundamento da lógica da dissimulação, dando origem ao que Lefort (1974) chamou de ideologia invisível. Na leitura de Marilena Chaui, essa ideologia “é invisível porque não parece construída nem proferida por um agente determinado, convertendo-se em um discurso anônimo e impessoal, que parece brotar espontaneamente da sociedade como se fosse o discurso do social” (2006, p. 75).
Ao exibir-se com um verniz científico, a ideologia contemporânea se apresenta como um discurso impessoal e competente que detém o conhecimento. O formador de opinião da revista, do jornal, do rádio, da televisão ou das redes sociais procura ser reconhecido como um grande especialista nos mais diversos assuntos: “Dizendo-nos o que devemos pensar, sentir, falar e fazer, afirma que nada sabemos e seu poder se realiza como intimidação social e cultural” (CHAUI, 2006, p. 77).
Um contraponto a esse pretenso conhecimento é o trabalho de pensamento que surge da indeterminação da experiência. Por essa razão, “para que a ideologia seja eficaz, é preciso que realize um movimento que lhe é peculiar, qual seja, recusar o não-saber que habita a experiência, ter a habilidade para assegurar uma posição graças à qual possa neutralizar a história, abolir as diferenças, ocultar as contradições e desarmar toda tentativa de interrogação” (CHAUI, 2011, p. 17).
Para bell hooks (2013), mesmo no horizonte da produção do conhecimento acadêmico, há um discurso dominante que não apenas dissimula a divisão social, como também silencia as experiências negras e indígenas. Nesse sentido, com o objetivo de apoiar e fortalecer grupos oprimidos ou explorados, hooks advoga por uma pedagogia crítica e libertária que abrace: “a experiência, as confissões e os testemunhos como modos de conhecimento válidos” (2013, p. 120).
Não se trata de contrapor o conhecimento teórico ao prático ou de negar a importância das teorias afirmando a autoridade da experiência. Trata-se de enfatizar “o poder da experiência como ponto de vista a partir do qual se possa fazer uma análise ou formular uma teoria” (hooks, 2013, p. 122). Qualquer pessoa, ainda que não tenha passado por uma educação formal, “tem uma sabedoria essencial para compartilhar, tem uma experiência prática, que é o solo fértil de toda teoria útil” (hooks, 2021, p. 80).
Nessa mesma linha de argumentação, Grada Kilomba (2019) aponta para a necessidade de uma descolonização do pensamento acadêmico. Ao reconhecer a experiência pessoal, esse pensamento pode acolher a lingua do sofrimento, “que muitas vezes se expressa por meio do corpo” (hooks, 2013, p. 124). Surge um discurso que é: “tão político quanto pessoal e poético” (KILOMBA, 2019, p. 59). Assim de fato são os textos e performances de Kilomba, sensíveis e potentes:
“Sendo assim, demando uma epistemologia que inclua o pessoal e o subjetivo como parte do discurso acadêmico, pois todas/os nós falamos de um tempo e lugar específicos, de uma história e uma realidade específicas – não há discursos neutros. Quando acadêmicas/os brancas/os afirmam ter um discurso neutro e objetivo, não estão reconhecendo o fato de que elas e eles também escrevem de um lugar específico que, naturalmente, não é neutro nem objetivo ou universal, mas dominante” (2019, p. 58).
Josadaque Martins Silva (IFMT e FEUSP)
Paulo Fernandes Silveira (FEUSP e IEA-USP)
Referências:
ASSMANN, Jan. 2005. Periergia: egyptian reactions to greek curiosity. In. GRUEN, Erich (edit.). Cultural borrowings and ethnic appropriations in antiquity. Stuttgart: Franz Steiner Verlag, p. 37-49. Disponível em: http://archiv.ub.uni-heidelberg.de/propylaeumdok/2750/
ASSIS, Machado de. 1998. Memórias póstumas de Brás Cubas. Rio de Janeiro: Ediouro.
BORGES, Jorge Luis. 1997. Funes, o memorioso. In. BORGES, Jorge Luis. Ficções. São Paulo: Editora Globo, p. 109-116.
BURKE, Peter. 2020. O polímata: uma história cultural de Leonardo da Vinci a Susan Sontag. São Paulo: Editora UNESP.
CHAUI, Marilena. 2006. Simulacro e poder. Uma análise da mídia. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo.
CHAUI, Marilena. 2011. O discurso competente. In. CHAUI, Marilena. Cultura e democracia: o discurso competente e outras falas. São Paulo: Cortez Editora, p. 15-25.
FRANK, Bernardo. 2013. Polipeiros sofía. Heródoto en la historia de la filosofía griega. (Doutorado em Filosofia Clássica). Barcelona: Universitat de Barcelona. Disponível em: https://www.tesisenred.net/handle/10803/117852#page=1
GARIN, Eugenio. 1987. La educación en la Europa, 1400-1600. Barcelona: Crítica.
GRAF, Arturo. 1886. I Pedanti nel cinquecento. Extratto dalla Nueva Ontologia, fasc. XXIII. Roma: Tipografia della Camera dei Deputati. Disponível em: https://core.ac.uk/download/pdf/212095174.pdf
HENKE, Robert. 2002. Performance and literature in the commedia del’arte. Cambridge: Cambridge University Press.
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LEFORT, Claude. 1974. Esboço de uma gênese da ideologia nas sociedades modernas, Estudos Cebrap, n. 10, p. 6-55. Disponível em: https://dokumen.tips/documents/lefort-claude-esboco-de-uma-genese-da-ideologia-nas-sociedades-modernas.html?page=1
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PLATÃO. 1997. Fedro. Lisboa: Edições 70.
SCHOPENHAUER, Arthur. 2005. O mundo como vontade e representação, Tomo I. São Paulo: Editora UNESP.
ZHUANGZI. 2013. The way of heaven. In. ZHUANGZI. Complete works of Zhuangzi. Columbia University Press: New York; Chicestrer; West Sussex, p. 98-107.
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