Michel Aires
Graduação em filosofia pela UNESP. Mestre em filosofia pela UFSCAR. Doutor em educação pela USP. Tem experiência nas áreas de Filosofia e Educação, com ênfase na Teoria Crítica, em particular, nos pensamentos de Herbert Marcuse e Theodor Adorno. Possui artigos publicados nas áreas de educação, filosofia e ciências sociais.
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 Indústria cultural e a origem da manipulação de massa pela burguesia, por Michel Aires de Souza Dias

A desumanização, implantada pelo processo capitalista de produção, negou aos trabalhadores todos os pressupostos para a formação cultural.

 Indústria cultural e a origem da manipulação de massa pela burguesia[1].

Por Michel Aires de Souza Dias[2]

Adorno, em sua emigração para os Estados-Unidos, ao entrar em contato com a cultura norte-americana, ficou espantado com o planejamento racional e a padronização dos meios de comunicação de massa. Ele percebeu que a cultura deixou de ser algo espontâneo e popular, e passou a ser produzida por empresas e instituições que criam produtos e entretenimentos padronizados para o grande público. Na Alemanha, ele já havia escrito sobre a música e já reconhecia que ela era um produto criado pelas relações de produção capitalista. Essa ideia foi mostrada em seu texto “Sobre a situação social da música”, de 1932. Em seu ponto de vista, “a maior parte da música exibia as características de uma mercadoria, dominada mais pelo valor de troca que pelo de uso” (JAY, 2008, p. 239). Já no período de sua emigração, os estudos sobre a música levaram-no a adquirir um grande conhecimento dos principais mecanismos de funcionamento da indústria radiofônica nos Estados Unidos. Ele também tomou conhecimento da grande indústria do cinema, desde sua fundação com a criação dos grandes estúdios de Hollywood. Já naquela época, os Estados Unidos tinham um aparato produtivo imenso, desde 1910, quando a indústria cinematográfica foi criada. Segundo Duarte (2003, p. 19), “ao que parece, Adorno até frequenta os bastidores da sétima arte, como a recepção em Malibu, com a presença de Charles Chaplin, dentre outros astros e estrelas.”

Em seu ensaio “Teoria da Semicultura”, ao analisar a cultura norte-americana, Adorno percebeu nela uma carência de novas formas de existência imagéticas. Aquele mundo de imagens religiosas, de cultos, procissões, peregrinações, de folclore e de imagens irracionais da época medieval perdeu sua razão de ser. A existência foi esvaziada de seu sentido lúdico e se nivelou pela forma universal da mercadoria: “A vida, modelada até as últimas ramificações pelo princípio da equivalência, se esgota na reprodução de si mesma” (ADORNO, 2005, p. 10). Na medida em que as relações de troca moldaram as formas de existência, a realidade se impõe como algo despótico e nivelador, exercendo uma grande pressão sobre os indivíduos. O resultado disso foi a de que a alma humana sentiu a necessidade de substituir aquelas imagens e formas perdidas por novos elementos imagéticos. Na avaliação de Adorno (2005), os meios de comunicação de massa adotaram uma mitologia em substituição aquele mundo de riqueza cultural da idade média. Em nossa atualidade, as estrelas de cinema, assim como as canções de sucesso, com suas letras irradiam um brilho igualmente calculado. Por vezes, semblantes femininos de uma beleza estonteante, explicam-se por si mesmos como pictografia da semiformação: “A semiformação não se confina meramente ao espírito, adultera também a vida sensorial” (ADORNO, 2005, p. 11).

Foi a partir do contato com os meios de comunicação de massa norte-americano, que Adorno e Horkheimer (1985) desenvolveram o termo indústria cultural, para substituir a expressão “cultura de massas”, cunhada pelos apologistas da comunicação, que afirmavam ser porta-vozes de uma cultura que brotava espontaneamente das próprias massas, da forma que assumiria, atualmente, a arte popular. Eles perceberam que a formação cultural (Bildung) burguesa perdeu suas características de formação da personalidade individual e da vida interior, para tornar-se uma mercadoria assimilada pela indústria, transformando-se em uma espécie de pseudocultura ou semicultura, responsável pela manutenção ideológica das classes dominantes. O resultado disso foi que a formação cultural no mundo contemporâneo passou a ser mediada pelas imagens. As imagens ganharam grande poder ideológico, pois modificam a realidade e adulteram-na em benefício dos interesses de classe. No tocante a esse assunto, Sontag (1981) afirma que uma sociedade se torna moderna quando uma de suas principais atividades passa a ser a produção e o consumo de imagens, que passam a determinar nossas exigências com respeito à realidade e são elas mesmas substitutas cobiçadas da experiência autêntica, tornam-se indispensáveis à boa saúde da economia, à estabilidade política e à busca da felicidade individual.

O conceito de formação cultural (Bildung) da tradição alemã está no centro das discussões sobre a cultura no pensamento de Adorno. Como observou Jay (1988), poucos intelectuais do século XX foram tão sensíveis aos múltiplos significados e implicações contraditórias quanto Adorno sobre o conceito de cultura, que deixou o ambiente da Kultur alemã e foi para o ambiente da Culture anglo-americana, e sentiu-se deslocado diante de tantas versões que encontrou. Como pensador dialético, a palavra cultura não possui um sentido unívoco em seu pensamento. Em alguns momentos, a palavra aparece em seu sentido crítico em oposição à cultura industrializada. Com isso, ela se opõe ao mundo reificado do mercado e em oposição à indústria cultural, como uma esfera de esclarecimento e autoconsciência, permitindo a emancipação e a transformação social. Nesse sentido, a cultura, como algo que transcende a autopreservação sistêmica da espécie, contém inevitavelmente uma dimensão crítica face a todas as instituições e a tudo que existe (ADORNO, 1978). Em outros momentos, a palavra aparece no sentido de Kultur como foi apropriada pela formação espiritual burguesa, herdeira da tradição alemã: “Na linguagem alemã se entende por ‘cultura’, em oposição cada vez mais direta à práxis, à cultura do espírito” (ADORNO, 2005, p. 44). Nesse sentido, a cultura é fetichizada, tornando os produtos do espírito humano fins em si mesmos, desconectados da práxis social. Com isso, a palavra assume um caráter afirmativo, ideológico e de manutenção do status quo.

Como crítico da cultura, Adorno observou que a cultura se modificou quando foi absorvida pela forma universal da mercadoria. Ela rompeu com o reino dos fins humanos, de emancipação, submetendo-se aos interesses de classe. Desse modo, quando o espírito se libertou do mundo teológico-medieval, recaiu sob as determinações do mercado, transformando as produções espirituais em bens de consumo. Esse processo ocorreu no transcorrer da era liberal, na qual a cultura foi assimilada na esfera de circulação. Tão logo a cultura se congelou em “bens culturais”, ela perdeu sua razão de ser. O resultado disso foi que a cultura espiritual aparece separada da luta pela vida, separando-se da práxis social, como uma esfera de valores eternos e superiores.

No ensaio “Semicultura”, Adorno (2005) procurou explicar como originalmente se deu essa separação entre cultura e o do trabalho e da reprodução social. Segundo ele, quando a jovem burguesia se libertou das amarras do mundo feudal, tomando politicamente o poder na Inglaterra do século XVII e na França do século XVIII, ela economicamente estava mais desenvolvida que o sistema feudal. Mas, isso só foi possível, porque a formação cultural da burguesia possibilitou que ela pudesse assumir o desempenho das tarefas econômicas e administrativas. Sem essa formação, o burguês não poderia assumir o seu papel social como empresário, gerente ou funcionário. Foi desse modo que a burguesia se consolidou enquanto classe. Contudo, quando os socialistas procuram despertar a consciência dos trabalhadores, estes não se encontravam subjetivamente mais avançados do que a burguesia. Com isso, a classe burguesa procurou monopolizar a formação cultural, estabelecendo o antagonismo entre cultura como âmbito de valores e sentimentos superiores e a cultura como “conformar-se à vida real”, como ideologia.

A burguesia em sua dominação progressiva sobre o proletariado só conseguiu perpetuar o seu poder, porque monopolizou a formação cultural. A desumanização, implantada pelo processo capitalista de produção, negou aos trabalhadores todos os pressupostos para a formação cultural. Todas as tentativas pedagógicas de remediar a situação se transformaram em caricaturas. Toda a chamada educação popular nutriu-se da ilusão de que a formação, por si mesma e isolada, poderia revogar a exclusão do proletariado, que sabemos ser uma realidade socialmente constituída (ADORNO, 2005).

Para Adorno (2009), a cultura só é verdadeira quando é necessariamente crítica. A crítica é um elemento inalienável da cultura. Contudo, celebrar a cultura apenas em termos de sua transcendência com relação as preocupações materiais, significa bloquear o potencial crítico desse conceito. Do mesmo modo, isolar a cultura como algo superior à sociedade, livre de suas restrições, é ignorar o penetrante poder da totalidade dominante, em que se transformou a vida moderna (JAY, 1988). Desse ponto de vista, a cultura só foi transformada em ideologia, porque renunciou a seu papel crítico de interferir na realidade social, transformando-se em um bem de consumo. Essa regressão é mostrada de forma contundente nessa passagem: “O fato de que a cultura europeia como um todo tenha degenerado em mera ideologia aquilo que oferece ao consumo, hoje prescrito a populações inteiras por managers e técnicos em psicologia, provém da mudança de sua função em relação a práxis material, de sua renúncia a uma intervenção direta. Essa mudança certamente não foi nenhum pecado original, mas algo imposto historicamente” (ADORNO, 2009, p.49).

O que caracteriza o capitalismo tardio é a união entre as esferas da cultura e da indústria. Nesse sentido, a semiformação seria a formação do indivíduo por meio da industrialização da cultura, em que os produtos perdem sua essência cultural, pois são transformados pelo processo industrial em semicultura. Assim, os produtos da semicultura servirão de conteúdo formativo para a sociedade de massa. Este processo formativo denomina-se “semiformação”, por não ser realizado pelo conteúdo cultural, que é o conteúdo imanente à verdadeira obra de arte (IOP, 2009).

Hoje, a semiformação como apropriação subjetiva somente se perpetua porque é disseminada pela indústria cultural. Os espectadores assimilam os produtos padronizados dessa indústria de forma passiva e sem reflexão crítica. Esses produtos não somente infantilizam os indivíduos a partir de entretenimentos idiotizados, mas também incutem normas, valores e formas de comportamento determinando as formas de consciência. Desse modo, os indivíduos são educados e formados segundo os padrões de condutas socialmente estabelecidos pelas instâncias de controle social. O objetivo é impedir uma formação cultural plena e autônoma que os leve a compreender os fenômenos sociais de forma crítica e emancipada. Como a socialização se estabelece de forma precária e parcial, a semiformação reforça a socialização, visando a adaptação e a coesão social, fazendo os homens se nivelarem uns aos outros, impedindo-os que se eduquem a si mesmos.

Na concepção de Adorno (2009, p. 2), “a formação nada mais é que a cultura tomada pelo lado de sua apropriação subjetiva.”. Contudo, quando a semicultura torna-se o espírito objetivo de nossa época, a formação passa a ser definida a priori pelos inumeráveis mecanismos de controle social, convertendo-se em uma semiformação socializada. Em outras palavras, a formação dos indivíduos passa a ser mediada por produtos culturais estandardizados pela técnica, vulgarizando a cultura em sua própria raiz. A consequência disso é que a ideologia se materializa nos próprios produtos desse mundo, sendo absorvida pela própria realidade: “A ideologia, ou seja, a aparência socialmente necessária, é hoje a própria sociedade real” (ADORNO, 2009, p. 57).

Um dos objetivos fundamentais da semicultura é propagar a ideologia da vida como reificação. Nesse sentido, “a semiformação é o espírito conquistado pelo caráter de fetiche da mercadoria” (ADORNO, 2005, p.11). A busca desenfreada pelo dinheiro, a competição, o consumo, a busca de reconhecimento simbólico, a labuta do dia a dia não permitem ao homem determinar sua própria vida como projeto, como determinação consciente. Ele deixa de ser livre, sendo impedido de realizar suas potencialidades e sua autonomia. Sua vida deixa de lhe pertencer, assim como seu tempo, sua interioridade e seus projetos. Segundo Coelho (1997), para essa sociedade, o padrão maior de avaliação tende a ser a coisa, o bem, o produto; tudo é julgado como coisa, portanto tudo se transforma em coisa, inclusive o homem. E esse homem reificado só pode ser um homem alienado: alienado de seu trabalho, que é trocado por um valor em moeda inferior às forças por ele gastas; alienada do produto de seu trabalho, que ele mesmo não pode comprar, pois seu trabalho não é renumerado à altura do que ele mesmo produz; alienado, enfim, em relação a tudo, alienado de seus projetos, da vida do país, de sua própria vida, uma vez que não dispõe de tempo livre, nem de instrumentos teóricos capazes de permitir-lhe a crítica de si mesmo e da sociedade.

Hoje, mesmo que as massas se encontrem inundadas de bens culturais, a semiformação está tão solidificada na consciência dos indivíduos, que impede qualquer tentativa de ruptura. Os indivíduos estão muito precariamente preparados para uma formação cultural no sentido tradicional. A sensibilidade e a consciência estão tão degradadas que “tudo o que estimula a formação acaba por contrair-lhe os nervos vitais” (ADORNO, 2005, p.6). Apesar de todo esclarecimento e de toda informação que se difunde, por meio dos mais diversos canais de comunicação e das mais variadas tecnologias, a semiformação tornou-se a forma dominante da consciência atual.

Referências

ADORNO, Theodor. Sociedade. In: ADORNO, Theodor. Temas básicos de sociologia. São Paulo: Cultrix, 1978.

ADORNO, Theodor e HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.

ADORNO, Theodor. Crítica cultural e sociedade. In: ADORNO, Theodor. Indústria cultural e sociedade. São Paulo: Paz e Terra, 2009.

ADORNO, Theodor. Teoria da Semicultura. Revista Primeira Versão. Ano IV, nº 191, Porto Velho, maio/agosto, 2005. Disponível em < http://www.primeiraversao.unir.br/atigos_pdf/191_.pdf> Acesso em 10 março de 2018.

COELHO, Teixeira. O que é indústria cultural. São Paulo: Brasiliense, 1997.

DUARTE, Rodrigo. Teoria crítica da indústria cultural. Belo Horizonte: UFMG, 2003.

IOP, Elisandra. Formação cultural, semicultura e indústria cultural: contribuições de Adorno sobre a emancipação. Revista Espaço Pedagógico, v. 16, n. 2, Passo Fundo, p. 20-33, jul./dez. 2009. Disponível em < http://seer.upf.br/index.php/rep/article/view/2212/1427> Acesso em 5 abril de 2018.

JAY, Martin. A imaginação dialética: história da Escola de Frankfurt e do Instituto de Pesquisas Sociais, 1923-1950. Rio de Janeiro: Contraponto, 2008.

JAY, Martin. As ideias de Adorno. São Paulo: Cultrix: Editora da Universidade de São Paulo, 1988.

SONTAG, Susan. Ensaios sobre a Fotografia. Rio de Janeiro: Arbor, 1981.

[1] Esse texto, com algumas modificações, é parte do artigo Adorno e a crise da formação cultural no mundo contemporâneo, publicado na Revista Café com Sociologia.

[2] Doutorando em Educação pela Universidade de São Paulo. E-mail:  [email protected]

Michel Aires

Graduação em filosofia pela UNESP. Mestre em filosofia pela UFSCAR. Doutor em educação pela USP. Tem experiência nas áreas de Filosofia e Educação, com ênfase na Teoria Crítica, em particular, nos pensamentos de Herbert Marcuse e Theodor Adorno. Possui artigos publicados nas áreas de educação, filosofia e ciências sociais.

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