J.R.R. Tolkien – uma biografia, por Fábio de Oliveira Ribeiro

É possível estabelecer um paralelo entre os bolsomitos* e os Orcs das sagas de Tolkien?

2nd December 1955: British writer J R R Tolkien (1892 – 1973), enjoying a pipe in his study at Merton College, Oxford, where he is a Fellow. Original Publication: Picture Post – 8464 – Professor J R R Tolkien – unpub. (Photo by Haywood Magee/Picture Post/Getty Images)

J.R.R. Tolkien – uma biografia, por Fábio de Oliveira Ribeiro

Prometi a mim mesmo para usar o tempo ocioso para resenhar alguns livros. Começo hoje a cumprir essa promessa. O livro que escolhi para resenhar é a biografia de J.R.R Tolkien.

Não foi difícil encontrar na realidade que fomos obrigados a vivenciar uma chave para se aproximar do livro. Como nós, o autor de “O Senhor dos Anéis” foi obrigado a ficar confinado por causa de uma doença. No caso dele, entretanto, a doença foi a salvação.

Como milhões de jovens de sua geração, Tolkien serviu seu país durante a I Guerra Mundial, tendo entrado:

“…em combate pela primeira vez durante uma importante ofensiva planejada pelo comando Aliado; sua companhia uniu-se à 7ª Brigada de Infantaria para um ataque ao arruinado vilarejo de Ovillers, ainda em poder dos alemães. O ataque fracassou, pois, mais de uma vez o arame farpado das linhas inimigas não fora totalmente cortado e muitos homens do batalhão de Tolkien foram mortos pelo fogo de metralhadora. Ele sobreviveu ileso e, depois de 48 horas sem descanso, finalmente pôde dormir um pouco no abrigo de uma trincheira.” (J.R.R. Tolkien – uma biografia, Humphrey Carpenter, HarperCollins Brasil, Rio de Janeiro, 2018, p. 120)

Durante o conflito, Tolkien passou pelas mesmas experiências que foram narradas à exaustão pelos sobreviventes da I Guerra Mundial. Ele viu seus companheiros e amigos serem despedaçados e foi obrigado a se acostumar com a proximidade da morte.

“Havia cadáveres por todos os lados, horrivelmente dilacerados pelos projéteis. Os que ainda tinham rostos fitavam o nada com olhos medonhos. Além das trincheiras, a terra de ninguém estava semeada de corpos inchados e em decomposição. Tudo era desolação. O capim e o trigo haviam desaparecido em um mar de lama. As árvores, despojadas de folhas e ramos, eram meros troncos mutilados e enegrecidos. Tolkien nunca esqueceria o que chamou de ‘horror animal’ da guerra de trincheiras.” (J.R.R. Tolkien – uma biografia, Humphrey Carpenter, HarperCollins Brasil, Rio de Janeiro, 2018, p. 120)

A I Guerra Mundial causou a morte de aproximadamente 10 milhões de soldados; 960 mil militares do Reino Unido foram mortos. Tolkien poderia ter sido um deles, mas não foi.

“O que o salvou foi uma ‘pirexia de origem desconhecida’, como diziam os médicos. Para os soldados era simplesmente a ‘febre das trincheiras’. Transmitida por piolhos, causava elevação de temperatura e outros sintomas febris, e milhares de homens já haviam dado baixa por causa desse mal. Em 27 de outubro, sexta-feira, foi a vez de Tolkien. Na época, ele estava aquartelado em Beauval, 19 quilômetros atrás das linhas. Quando adoeceu, foi transportado a um hospital não muito longe dali. Um dia depois, estava e um trem-enfermaria com destino à costa e, no domingo à noite, em um leito no hospital de Le Touquet, onde permaneceu por uma semana.

Mas a febre não cedeu e, em 8 de novembro, foi posto a bordo de um navio com destino à Inglaterra. Ao chegar, foi de trem até um hospital de Birmigham. Assim, em alguns dias, viu-se transportado do horror das trincheiras para os lençóis brancos e a visão da cidade que conhecia tão bem.” (J.R.R. Tolkien, uma biografia – Humphrey Carpenter, HarperCollins Brasil, Rio de Janeiro, 2018, p. 122)

O autor da biografia afirma que Tolkien detestava alegoria e transcreve o fragmento do texto que C.S. Lewis desautoriza qualquer relação específica entre o “O Senhor dos Anéis” e a II Guerra Mundial. O amigo íntimo de Tolkien afirma que:

“Essas coisas não foram criadas para refletir qualquer situação particular do mundo real. Foi o inverso; os eventos reais começaram, horrivelmente, a se conformar ao modelo que ele livremente inventara.” (J.R.R. Tolkien – uma biografia, Humphrey Carpenter, HarperCollins Brasil, Rio de Janeiro, 2018, p. 260)

Tolkien ficou pessoalmente ofendido quando recebeu a carta de Stanley Unwin contendo o comentário em que o filho do editor considerava “O Senhor dos Anéis” uma história alegórica. A resposta do escritor foi eloquente:

“Não deixe Rayner suspeitar de ‘Alegoria’. Há uma ‘moral’, suponho, em qualquer história que valha a pena ser contada. Mas isso não é a mesma coisa. Mesmo a luta entre a escuridão e a luz (como ele chama, não eu) é para mim apenas uma fase específica da história, um exemplo de seu padrão, talvez, mas não O padrão; e os atores são indivíduos – cada um deles possui, é claro, pressupostos universais, ou simplesmente não viveriam, mas nunca representam os pressupostos como tais.” (J.R.R. Tolkien – uma biografia, Humphrey Carpenter, HarperCollins Brasil, Rio de Janeiro, 2018, ´. 278)

A tese de C.S. Lewis de inexistência de uma relação entre “O Senhor dos Anéis” e a II Guerra Mundial pode ser considerada verdadeira. Mas palavras de Tolkien a Stanley Unwin merecem ser ponderadas com cuidado. Nem sempre um escritor consegue perceber as verdadeiras motivações que o levam a escrever uma história e não outra, a dar ênfase num tema transformando outros num aspecto secundário da trama.

Sou leitor de Tolkien desde o início da década de 1990. A mim parece que os eventos que marcaram a vida dele na I Guerra Mundial parecem estar refletidos na saga que ele concebeu.

Os Orcs de Sauron haviam sido derrotados no primeiro grande conflito registrado por Tolkien no livro “O Silmarillion”. Eles reaparecem no livro “O Hobbit”, mas o principal antagonista do improvável herói Bilbo Baggins é o dragão Smaug. Após a reconquista da Montanha Solitária, Thorin Escudo de Carvalho começa a sofrer de uma doença de origem desconhecida que coloca todos em risco e provoca uma nova batalha. Vejamos agora o que ocorre em “O Senhor dos Anéis”.

Em determinado momento os Orcs voltaram a se multiplicar. Eles já estão se espalhando pela Terra Média como se fossem uma infecção quando Galdalf resolve visitar seu amigo Bilbo Baggins e descobre que o hobbit está em poder do anel Sauron.

Guardadas as devidas proporções, podemos dizer que existe uma certa similitude entre ‘pirexia de origem desconhecida’ que acometeu Tolkien nas trincheiras da I Guerra Mundial, a doença de Thorin Escudo de Carvalho no livro “O Hobbit” e a ressurgência pestilenta dos Orcs no livro “O Senhor dos Anéis”. Além disso, a luta de Tolkien contra a doença que o salvou da I Guerra Mundial é, de certa maneira, semelhante àquela que foi travada por Frodo para levar o anel para ser destruído nas Fendas da Perdição, Sammath Naur, o abismo dentro da Montanha da Perdição.

Durante sua jornada, Frodo vai lentamente adquirindo a mesma moléstia que faz Gollun a perseguir obsessivamente o anel. É possível encontrar uma similitude entre essa doença e aquela que leva Thorin Escudo de Carvalho a se apegar insistentemente ao tesouro resgatado das garras de Smaug. No momento em que deveria se desfazer do anel, Frodo começa a hesitar. Então a destruição do anel tem que ser decidida através de um conflito entre ele e Gollun.

A vida de Tolkien poderia ter sido ceifada na guerra (uma doença histórica), mas ela foi salva por uma doença que, como toda enfermidade, pode ser considerada uma guerra pessoal contra um patógeno conhecido ou desconhecido. No caso de “O Senhor dos Anéis” podemos dizer que a mesma doença que infectou dois personagens (Frodo e Gollun) é capaz de causar não apenas o conflito entre eles mas a dissolução da verdadeira fonte do mal.

Portanto, ao contrário do que Tolkien disse, o que ocorre com Frodo pouco antes do final do “O Senhor dos Anéis” (e que também ocorre com Thorin Escudo de Carvalho antes do fim de “O Hobbit”) pode ser encarado como uma alegoria da experiência traumática que salvou a vida do autor durante a I Guerra Mundial. Essa, entretanto, pode ser apenas uma hipótese elegante criada para dar consistência à minha resenha.

Nesse exato momento, o presidente Jair Bolsonaro parece tentado a iniciar uma guerra civil contra os governadores que se recusarem a deixar de combater o COVID-19. O mito quer se impor como presidente com poderes absolutos limitando a autonomia garantida aos Estados-membros pela Constituição Cidadã. E para piorar a situação do Brasil, os seguidores mais fanáticos dele estão determinados a correr o risco de contrair e espalhar a pandemia realizando cultos nas igrejas evangélicas e manifestações de rua.

É possível estabelecer um paralelo entre os bolsomitos* e os Orcs das sagas de Tolkien? Bolsonaro contraiu a mesma doença que levou Thorin Escudo de Carvalho a declarar guerra para conservar o tesouro da Montanha Solitária e fez Frodo e Gollun disputarem o anel em Sammath Naur? Essas são questões que o leitor terá que responder.

*bolsomitos: seguidores fanáticos do mito, ou seja, de Jair Bolsonaro.

Fábio de Oliveira Ribeiro

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