Jornalismo em transe, por Gustavo Conde

Mas a Lava Jato é apenas um sintoma, uma filha bem nutrida da relação incestuosa entre nosso complexo de vira-lata e a cadela do fascismo sempre no cio, sua irmã mais velha.

Jornalismo em transe, por Gustavo Conde

O Brasil é pródigo em desconhecer a si mesmo. Faz desse movimento subjetivo sua própria razão de ser. É sua identidade máxima: quem sou eu? Um país imenso antropomorfizado por natureza que se desloca e se movimenta com desenvoltura singular na cena gramatical do discurso: o Brasil quer, o Brasil vai, o Brasil tem.

Já o ‘brasileiro’ é seu desdobramento apócrifo, morfológico – muito mais retórico do que lógico. O brasileiro se pergunta quem é – e o que é – desde criancinha. Seria produtivo se não fosse paralisante: querer saber ‘o que se é’ é uma espécie de benção existencial, mas alto lá: para se tentar saber ‘o que se é’ é preciso estar imerso em um mundo simbólico minimamente estruturado.

E, nesse quesito, esse ‘brasileiro’, tão mitológico quanto real, deixa a desejar. Ou: o nosso ‘desejo’ foi e é sabotado como nossa economia, como nossa política, como nossa experiência social.

Nós somos um povo acossado por sabotadores de subjetividade.

Explica-se facilmente a existência da Lava Jato, uma operação fraudulenta, estruturada em um frágil discurso anticorrupção, achacadora, coercitiva, prevaricadora, partidarizada e, acima de tudo, sabotadora de todo e qualquer espírito crítico que ouse se aninhar em território democrático e soberano.

Mas a Lava Jato é apenas um sintoma, uma filha bem nutrida da relação incestuosa entre nosso complexo de vira-lata e a cadela do fascismo sempre no cio, sua irmã mais velha. Uma vez mãe, essa portentosa e lactante criatura  – a saber, a imprensa monopolista e ‘manipulista’ brasileira – tornou-se nossa grande provedora global de castração crítica.

Ela pariu, além da Lava Jato, Bolsonaros, Moros, Helenos e Dallagnóis. É uma matriarca, robusta, impávida, encrustada em nossa mais profunda ramificação fugidia de estrutura simbólica.

Esta besta-fêmea parideira, no entanto, não subjaz a determinações de gênero. Ela dá a essa luz trevosa sendo, acima de tudo e acima de todos, um macho, feito um cavalo-marinho horrorosamente belo, jamais profetizado por Rimbaud ou Kerouac, putrefato em sua essência barata e sedutora. Esse macho, grávido de si, atende também pelo nome nada edificante de “jornalismo brasileiro”.

Pois.

Fomos paridos todos por um macho patriarcal, secular, violento, genocida e profundamente boçal, nomeado por uns e outros como ‘jornalismo brasileiro’.

Ele é nossa grande asa de galinha que nos acolhe e nos sufoca na bestialidade do viralatismo congênito.

O jornalismo brasileiro nos ensinou a todos a nos acovardar diante do chinelo patronal – tão imundo quanto moralmente fétido – e a nos locupletarmos em nosso próprio esmagamento, baratas que somos.

Foram décadas de seviciamento, de coberturas jornalísticas indignas do nome, de visões tacanhas de mundo, de país, de sociedade, de nulidade.

Esse jornalismo agonizava há bem pouco tempo atrás, tendo de lidar com a soberania popular, essa toxina ingrata e cancerígena para suas pretensões de hegemonia narrativa. Histérico, ele vociferava contra o avanço social e econômico do Brasil, e mascarava esse gesto como ‘dimensão crítica’ – analogia primária, quase rústica, que anunciava nosso mergulho na semântica de neanderthal do bolso-morismo.

Bolsonaro eleito foi a consagração redentora deste jornalismo de tutela. Saíram, inclusive, da crise financeira, uma vez que os contratos de publicidade voltaram com força – e sempre com o patrocínio consolidado dos 30 anos de governos tucanos no estado mais corrupto do país, com sua eterna receita direcionada à obsolescência midiática falimentar.

O mais extravagante de toda esta constatação óbvia de que nosso jornalismo sempre foi sucateado é o surgimento de um jornalista americano que nos ensina, pela primeira vez na nossa história, o que é, de fato, esse bicho chamado jornalismo.

Chega a ser comovente assistir parcela significativa de uma população inteira, que só conheceu o jornalismo quando viajava ao exterior, recebendo pela primeira vez em solo pátrio a experiência desta técnica desenvolvida há alguns séculos pela civilização humana.

É como um encontro de último capítulo de novela, em que o filho finalmente conhece o pai biológico depois de 40 anos. Lágrimas chegam a escorrer.

E só poderia ser um jornalista estrangeiro para proporcionar tal epifania. Glenn Greenwald não sabe o que é complexo de vira-latas, simplesmente porque ele não tem.

E uma estrutura simbólica imune ao vírus do viralatismo, com sotaque pronunciado e sexualidade resolvida, realmente rasga essa lógica doméstica de jornalismo rasteiro que dominou a cena social desde nossa fundação.

O pior jornalismo do mundo, um de nossos mitos fundadores, tem hoje a companhia do americano LGBT+ Glenn Greenwald que, de maneira inteligentíssima, não se curvou aos sensacionalismos endógenos inerentes à podridão midiática que ainda grassa neste solo que tudo dá.

Por isso, muita gente ainda estranha a tranquilidade com que a verdade jornalística vai se impondo aos poucos em nossa cena política, ora polinizando grãos de lucidez em um jornal decrépito ora desovando larvas da realidade em uma revista psicótica.

Tudo é muito divertido – se se fizer uma autoconcessão libidinal de emergência.

Pois.

A imprensa brasileira continua sendo a pior do mundo, claro. Esse câncer só vai se curar quando o mercado da produção de conteúdo no país for devidamente aberto ao jornalismo do primeiro mundo.

A cobertura sobre o acordo entre a União Europeia e o Mercosul atualiza bem a nossa indigência no setor. Não há insegurança quanto a isso: é e continua sendo a imprensa mais instrumentalizada e tecnicamente precária do planeta Terra.

Mas testemunhar um jornalista de verdade, americano, perambulando por estes escombros morais dá um gosto adocicado na boca.

Glenn Greenwald vai ganhar mais um Pulitzer. E não vai ser porque sua reportagem é de ‘excelência’.

Glenn Greenwald vai ganhar o Pulitzer – pela segunda vez – porque ele realizou a proeza de publicar uma grande reportagem em um país tomado por milícias e intoxicado secularmente pelo jornalismo mais atrasado de que já se teve notícia.

Esse é o feito de Glenn. O desmascaramento de Sergio Moro é só a cereja do bolo.

Redação

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