Luz e trevas: Coreia e Brasil cada vez mais distantes, por Uallace Moreira e Vitor Filgueiras

Os dados mais recentes, de 2019, revelam um salário médio dos coreanos 9,4% acima do verificado em 2016, antes da nova política salarial, ultrapassando os salários médios da Itália e do Japão, que estavam à frente dos coreanos em 2016 (OECD).

Central park at night in Songdo International Business District, Incheon South Korea.

do grupo Trabalho e Reforma Trabalhista

Luz e trevas: Coreia e Brasil cada vez mais distantes

por Uallace Moreira e Vitor Filgueiras

No início dos anos 1950, a Coreia do Sul era um país rural, pobre e destruído como resultado da colonização japonesa, ocupação dos EUA e depois a Guerra que dividiu a península. Enquanto isso, o Brasil vivia um processo intenso de industrialização e ampliação do emprego (com todas as conhecidas contradições). Entretanto, a partir dos anos 1960, com a implementação dos Planos Quinquenais, a Coreia passou por profundas transformações estruturais, entrando nos anos 1990 como potência capitalista emergente e exemplo de país que ultrapassou a armadilha da renda média, particularmente disputando as fronteiras tecnológicas. O Brasil, por outro lado, desde os anos 1980, tem oscilado entre períodos curtos de crescimento e predominante semiestagnação ou crise. Não bastasse, a partir dos anos 1990, o país vê regredir a complexidade da sua estrutura produtiva. Essa divergência nas trajetórias do Brasil e da Coreia do Sul tem se agravado, e, com a pandemia, separados por continentes, esses países parecem agora caminhar para galáxias diferentes.

A pandemia tem visto um distanciamento cada vez maior entre as políticas que já vinham sendo adotadas, e têm sido aprofundadas, na Coreia do Sul e no Brasil, tanto no que concerne aos seus conceitos, quanto às suas consequências. Enquanto lá, a proteção do trabalho tem sido encarada como missão social e vetor de dinamismo da demanda, cumprindo papel complementar ao forte protagonismo do Estado como indutor do desenvolvimento, aqui, assistimos à destruição dos direitos sociais sob a crença de que, quanto “menos” gasto e “menor” o Estado, maior o desenvolvimento econômico. Como resultados dessas posições, lá temos salários crescentes e desemprego em queda; por aqui, desemprego recorde, queda dos rendimentos e ampliação da miséria.

Nas últimas décadas, a Coreia, liderada pela aliança entre Estado e grandes empresas nacionais (chaebols) – exceção no período liberal entre o final dos anos 1980 e a crise de 1997 -, manteve sua dinâmica de avanços em suas estruturas produtivas e de inovação, mas pouco simpática à proteção social. Esta última postura mudou, a partir de 2017, com Moon Jae-in assumindo a Presidência do país, quando o Estado adotou a proteção social como estratégia de promoção do desenvolvimento. Nesse sentido, há uma reforma trabalhista protetiva em curso, cujos três principais objetivos são fomentar “o crescimento puxado pela renda, pela inovação e a promoção de uma economia mais justa”. Assim, a dinâmica da Coreia se distingue da maioria dos países e se opõe aos ditames do liberalismo de playground que vive a utopia do livre mercado.

Desde 2017, o salário mínimo dos coreanos cresceu substancialmente. Houve incremento de 36,4% em 4 anos (até 2020), contra 16,4% na média da OCDE. Não por acaso, na Coreia, os salários médios cresceram 6,2% entre 2016 e 2018 (o mesmo que os sete anos anteriores somados). Apenas em 2018, o incremento foi de 4,2% (OCDE). É sintomático que, na Coreia, em 2018, a participação dos salários no PIB tenha crescido 1,5%, atingindo 61% – maior nível desde 2009 (ILOSTAT).

Os dados mais recentes, de 2019, revelam um salário médio dos coreanos 9,4% acima do verificado em 2016, antes da nova política salarial, ultrapassando os salários médios da Itália e do Japão, que estavam à frente dos coreanos em 2016 (OECD).

Com a crise da Covid, o Presidente coreano anunciou um amplo projeto de investimento coordenado pelo governo, que se convencionou chamar de “New Deal da Coreia”. Trata-se de um grande projeto de desenvolvimento de caráter nacional, elemento sempre presente na trajetória de sucesso econômico do país:

i) O New Deal da Coreia irá investir mais de 160 trilhões de wones (US$ 132.67 bilhões de dólares, o equivalente a quase 10% do PIB), destinados à inovação, sustentabilidade e geração de empregos;  ii) do total do investimento, 73.4 trilhões de wones serão alocados em projetos de novos acordos verdes, o chamado Green New Deal; iii) Outra dimensão é o chamado Digital New Deal, com 58,2 trilhões de wones aplicados em projetos de novos acordos digitais;  iv) é reforçada a aliança entre Estado e os chaebols; v) pretende-se criar 1,9 milhões de empregos nos próximos cinco anos. O governo também incentivará as empresas públicas a criar cerca de 550.000 empregos para jovens. Além da geração dos empregos no setor público, o governo ajudará empresas privadas a investir 5,8 trilhões de wones neste ano, e criará um fundo de investimentos de 5,2 trilhões de wones em projetos de infraestrutura financiados até o final do ano para gerar mais empregos.

O desemprego médio na Coreia, em 2016, foi de 3,7%; em 2020, com a pandemia, 3,9%. Na média dos países da OCDE, a desocupação era de 5,4% em 2019, e vai a 7,1% em 2020. A Coreia continua a manter níveis de desemprego baixíssimos, ficando em 3,2% em julho de 2021.

Com pandemia, a Coreia deixou de ser exceção nas discussões sobre o papel do Estado na economia. O consenso liberal no mundo está em xeque, ao menos por enquanto, como provam os debates e as políticas públicas nos EUA[1] e na Europa[2]. O fortalecimento do Estado como protagonista na promoção do emprego tem caminhado, em paralelo ou de forma complementar, à valorização das políticas de proteção social.

Organismos internacionais, como a Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento), em estudo recente – “World investment report 2020: international production beyond the pandemic”, reconhecem que o sistema global de produção internacional está passando por uma “tempestade perfeita” com a crise causada pela pandemia, com desafios decorrentes da nova revolução industrial, o crescente nacionalismo econômico e o imperativo da sustentabilidade. De acordo com a entidade, essas mudanças terão como principal resultado um maior protagonismo estatal na economia, inclusive com o fortalecimento das políticas industriais e de inovação, cada vez mais visando a setores considerados estratégicos não apenas para a criação de empregos, crescimento econômico de longo prazo e desenvolvimento, mas também por razões de segurança nacional.

Enquanto isso, no Brasil, após um breve ciclo de crescimento nos anos 2000, convivemos com a radicalização do universo paralelo do liberalismo desde 2015. A chamada “austeridade” fiscal e a destruição dos direitos sociais são divulgadas e praticadas como mantras. Ademais, a dilapidação e a privatização do patrimônio público e de setores estratégicos dificultarão estratégias futuras que busquem promover o desenvolvimento nacional.

As políticas públicas de proteção social, particularmente o direito do trabalho, têm sido alvos preferenciais e sistemático dos ataques. A mídia corporativa repete, como um disco arranhado e sem qualquer compromisso com evidências empíricas, a cantilena de que a redução dos custos do trabalho, leia-se, dos direitos de quem trabalha, é necessária para combater o desemprego.

Como resultados dessa agenda, convivemos com índices recordes de desemprego, queda da renda, volta da miséria extrema, aumento da população sem teto, filas para comer restos de alimentos. E não adianta imputar esse desastre à falta de modos dos ocupantes do poder executivo. Sem alterar o rumo da plataforma que hegemoniza as políticas públicas em nosso país, a tendência é que o cenário se agrave.

Como ponto fora da curva, no dia 1º de setembro, a MP 1045, que legalizava contratos de trabalho sem nenhum direito, foi derrubada pelo Senado. No mesmo dia, a estatal CEITEC (Centro Nacional de Tecnologia Eletrônica Avançada), única fábrica de semicondutores e chips da América Latina, teve sua liquidação temporariamente suspensa pela CGU. Assim, houve um breve momento de suspiro no processo de destruição social e das ferramentas de desenvolvimento do país. Será um alento que pode servir para começar a mudar o rumo da prosa?

Em suma, haverá luz no final das trevas que atravessam o Brasil? E se, houver luz, trará novos ares respiráveis, ou será o trem vindo na direção oposta? Ainda que no lastimável cenário vivido nosso país, é preciso pensar em janelas de oportunidade típicas das grandes crises, e lutar para criá-las e aproveitá-las.


[1] https://jornalggn.com.br/editoria/cidadania/o-brasil-na-contramao-do-mundo-trabalho-protecao-social-e-desenvolvimento-nos-estados-unidos/

[2] Ver um resumo do caso espanhol em: https://jornalggn.com.br/artigo/brasil-o-unico-remanescente-na-corrida-ao-fundo-do-poco/

Uallace Moreira – Professor de Economia da UFBA e coordenador do NEC

Vitor FIlgueiras – Professor de Economia da UFBA e membro do NEC

Este texto não expressa necessariamente a opinião do Jornal GGN

Redação

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