No século 21, devemos ainda falar em luta de classes?, por Erick Kayser

O antagonismo com o capital, nas últimas décadas, passa por uma pluralidade de lutas que em muito transcendem as dimensões dos conflitos especificamente econômicos de uma categoria

No século 21, devemos ainda falar em luta de classes?, por Erick Kayser

O capitalismo, apesar das variadas e constantes crises, exibe vitalidade para seguir como sistema dominante em nosso mundo. Mas esta continuidade não ocorre de forma estática, havendo modificações importantes ao longo das últimas décadas. Exemplar disto é o lugar ocupado hoje pelo trabalho, onde os avanços tecnológicos, aliado a centralidade ocupada pelo capital improdutivo, levaram a uma redefinição de seu papel. O processo de realização do capital parece cada vez mais dispensar o “trabalho vivo”, tendo na especulação financeira e na economia imaterial, novos centros dinâmicos. O capitalismo no século 21 insinua entrar em uma fase onde a importância do trabalho humano perderia centralidade para a geração de riquezas. Neste contexto, de precarização e diluição de relações sociais até então fixadas, não seria legítimo indagar se devemos ainda falar em luta de classes? Mais do que isso, para além de uma categoria analítica, é possível apontar (ou apostar se preferirem), em termos políticos, na luta de classes como caminho para a superação do capitalismo?

Se as mudanças no processo produtivo levaram a questionamentos sobre a pertinência do uso da categoria “luta de classes” para a compreensão ou prospecção da sociedade, neste esforço para enfrentar o problema, antes de encarar questões relacionadas ao seu uso contemporâneo, talvez nos seja útil resgatar, sucintamente, suas origens. Assim, se buscará primeiramente vislumbrar a questão da luta de classes em termos heurísticos e posteriormente, de forma combinada, adentrar brevemente em seu uso político nos dias de hoje.

O conceito de luta de classes é popularmente identificado como um dos aspectos constitutivos do marxismo. Já nas linhas iniciais do primeiro capítulo do Manifesto Comunista, Karl Marx (1818 – 1883) e Friedrich Engels (1820 – 1895), afirmam que “a história de todas as sociedades até hoje existentes é a história das lutas de classes.” Por certo esta seria uma constante compreendida em suas peculiaridades no tempo e no espaço, onde historicamente, cada sociedade organizada socialmente em princípios não igualitaristas, exporia uma divisão de classe. O capitalismo, com suas promessas de prosperidade e igualdade de oportunidades, busca encobrir a divisão da sociedade em classes. Neste sentido, Marx e Engels, em outro trecho do Manifesto, apontam que “a sociedade burguesa moderna, que brotou das ruínas da sociedade feudal, não aboliu os antagonismos de classe. Não fez mais do que estabelecer novas classes, novas condições de opressão, novas formas de luta em lugar das que existiram no passado.” Estas novas formas advindas com o capitalismo confeririam um ineditismo histórico a este período, onde as classes fundamentais se diferenciariam de forma mais nítida.

A noção de que nas sociedades haveriam divisões em classes sociais e que ocorreriam conflitos entre estas, não é propriamente uma “invenção” de Marx e Engels, pelo contrário, remonta, de certa forma, a própria história do pensamento filosófico, podendo até mesmo, como aponta Enrique Dussel, ser identificadas raízes desta dualidade na própria base do cristianismo, em sua defesa dos humildes e oprimidos contra os “vendilhões do Templo”. A novidade de Marx foi apontar para a luta de classes como um “motor da história”, capaz de revolucionar as estruturas sociais. Esta percepção marxista, em boa medida herdeira da Revolução Francesa, seria compartilhada, ainda que com significativas distinções, por inúmeras outras correntes políticas e filosóficas, como anarquistas e mesmo alguns liberais, como John C. Calhoun (1782 – 1850) que defendia que a sociedade seria divida em uma luta entre duas classes: a dos pagadores de impostos contra a “classe do governo”.

Certamente que nem todos os diferentes fenômenos sociais podem ser reduzidos ou diretamente influenciados pela variável “luta de classes”, mas deste não condicionamento, não se deriva necessariamente uma negação ou refutação, podendo, por exemplo, ser encarado no plano de escolhas epistemológicas do objeto estudado. Em uma sociedade onde o capitalismo impõe a reificação das relações, onde a expansão do capital se baseia na permanente colonização de novos espaços sociais, onde poucos ainda são os espaços imunes a uma lógica de mercantilização, o conceito de luta de classes se revela de uma importância incontornável.

Em termos de uma teoria crítica, a constatação da existência de classes sociais e dos conflitos inerentes a estas é de difícil refutação, mais do que isso, talvez seja virtualmente impossível uma compreensão da nossa sociedade, que se pretenda com alguma profundidade, a desconsiderando em algum nível de análise. As desigualdades econômicas existem, não há como negá-las!

Apesar do aumento global das desigualdades econômicas e os sinais de agravamento da crise ambiental, os defensores da ordem seguem em sua arte retórica de defesa das virtudes do “deus-mercado”. O atual discurso triunfante do capitalismo está assentado em uma formidável hegemonia alcançada pelo neoliberalismo. Como apontam Pierre Dardot e Christian Laval, o neoliberalismo se converteu na nova razão do mundo, e como tal, disciplina as condutas e os modos de vida de forma inaudita. O sujeito condicionado por esta racionalidade neoliberal acredita que deve perceber e agir no mundo como empresário de si próprio. Nesta condição, todas as demais pessoas passam a ser percebidas como empresários-concorrentes. Byung-Chul Han, corretamente, afirma que aquele que acredita ser “um projeto livre de si mesmo”, capaz de produzir ilimitadamente e enriquecer, acaba por isolar-se, perdendo uma importante dimensão daquilo que nos caracteriza como humanidade, desaparecendo o “nós”, o “comum” e a solidariedade que levariam à ação conjunta. Han, porém, afirma que agora os indivíduos de todas as classes sociais teriam se tornado, ao mesmo tempo, exploradores e explorados; esta conclusão pode levar a uma leitura errada de que as classes desapareceram e não há mais a possibilidade de uma revolução social. Aqui, “fim das classes” surge como espécie de irmão siames da tese do “fim da história”, ambas nascidas de um discurso fortemente marcado pela ideologia produzida pela racionalidade neoliberal.

A universalização do trabalho precário, atingindo uma gama cada vez maior de atividades laborais, é um fenômeno que está longe de negar os marcadores sociais de classe em nossa sociedade. A precarização generalizada cria, na verdade, uma assimetria ainda maior, tornando virtualmente a todos “trabalhadores”. Um contingente cada vez mais maior de pessoas indiferenciáveis quanto a condição de instabilidade laboral, apenas especificamente distintos pelo grau de exploração e degradação da atividade. Para além de mistificações, quase ninguém é verdadeiramente dono dos meios de produção e, como regra, quase todos necessitam “vender” algumas horas de suas vidas para garantir sua própria sobrevivência ou dependem de alguém que o faça. A estratificação do capital hoje é ainda mais aguda e desigual que algumas décadas atrás. Se é verdade que a história não está previamente escrita e que, portanto, não temos garantia alguma que os trabalhadores organizados subverterão a ordem existente, o oposto também não pode ser tido por uma verdade. Teimosamente, a história segue aberta. Os protestos e revoltas de trabalhadores precários, especialmente no sul global, demonstram que a “paz social dos mercados” é um tanto ilusória.

Um comentário adicional sobre o conceito marxista de luta de classes é necessário. O antagonismo de classe, que tem sua expressão maior na oposição entre a burguesia e o proletariado, teria como produto direto o desenvolvimento da consciência de classe, que Marx e Engels acreditavam que, sob o capitalismo, adquiriria uma condição de desenvolvimento mais completa, possibilitada pelas lutas de classes serem mais agudas. A burguesia, a classe detentora dos meios de produção e concentradora das riquezas, teria na exploração do proletariado a essência de seu domínio de classe. A principal forma de exploração é econômica: a classe dominante expropria parte da produção gerada pelos explorados, onde ela “se apropria do mais-valor social e o utiliza para seus próprios propósitos de consumo”. Por esta condição de centralidade que os trabalhadores ocupam para a geração de Valor e a perpetuação da dominação burguesa, a partir de uma tomada de consciência de classe, seriam os sujeitos capazes de promover a superação da sociedade capitalista. O capitalismo criou o proletariado moderno e involuntariamente gerou “seus próprios coveiros”. A luta de classes, assim, teria seu resultado final concebido como uma transição ao socialismo, isto é, uma sociedade sem classes.

Aqui reside talvez uma das maiores dificuldades entre a interpretação do marxismo clássico (agravada pelas distorções stalinistas) sobre as lutas de classes e alguns dos movimentos atuais de resistência. O proletariado, identificado como o sujeito prometeico da revolução socialista, confere elementos de uma de difusa metafísica a-histórica para a condição de classe. Este apriorismo revolucionário, em alguma medida, desconsideraria a própria dinâmica da luta de classes, que pressupõe vitórias, mas também derrotas, algumas inclusive de longa duração. Nesta perspectiva, onde o proletariado foi muitas vezes compreendido como sinônimo de operário fabril, outras classes igualmente exploradas, como os pequenos camponeses, eram desconsiderados ou quando muito incluídos como “aliados táticos” da vanguarda revolucionária, que necessariamente deveria ser o operariado urbano. Este esquematismo, que hoje pode até soar caricatural, orientou, por longas décadas, aos partidos comunistas alinhados à Moscou e mesmo entre algumas dissidências do marxismo “oficial”.

Um dos grandes problemas desta leitura da luta de classes é conter uma elevada dose de idealização do que seria a classe trabalhadora, cuja maior distorção reside na crença do operariado como “naturalmente” revolucionário. Se no século 21 isto nos soa um tanto irreal, o próprio Marx, no século 19, já lançava dúvidas para esta idealização do proletariado apontando, em algumas passagens, para existência de uma “aristocracia operária” refratária aos apelos revolucionários e até mesmo para um fenômeno de aburguesamento geral da classe operária na Grã-Bretanha daquele período.

Marx efetivamente não sistematizou uma teoria das classes sociais, mas talvez retornar ao Mouro seja um caminho promissor para uma atualização da interpretação marxista da luta de classes. Uma pista neste caminho, por exemplo, é observar como o conceito de Proletariado (central para a teoria marxiana da luta de classes) foi forjado etimologicamente. O termo proletário tem suas origens no latim; na Roma antiga, “proletarii” eram os cidadãos da classe social mais baixa, que detinham propriedade alguma e cuja única utilidade para o Estado era o de gerar proles (filhos) para abastecer ao exército imperial. Marx retomaria o termo para designar os trabalhadores da sociedade capitalista do século 19, que assim como os proletários romanos, não tinham nada a oferecer exceto sua força de trabalho e suas proles para reproduzir as relações de produção capitalistas. Contudo, Marx nem sempre fez um uso do termo proletário o associando diretamente a operário, mas assumindo algumas vezes um sentido ampliado, quase como sinônimo de trabalhador assalariado. Resgatar ou ressignificar a abrangência do antagonismo de classe, como Marx por vezes insinua, parece um promissor caminho para a noção de luta de classes recobrar sentido efetivo para as lutas contemporâneas.

O antagonismo com o capital, nas últimas décadas, passa por uma pluralidade de lutas que em muito transcendem as dimensões dos conflitos especificamente econômicos de uma categoria, a dimensão do Político, como sugere Chantal Mouffe, atua decisivamente nas lutas populares. O reexame da luta de classes neste século 21 passaria, politicamente, por uma dilatação dos conflitos de classes, por aquilo que Nicos Polantzas sintetizou como uma dinâmica de alianças entre vários grupos sociais que, de um lado, dominam e dirigem a vida econômica e social, de outro, aqueles que são subordinados e dirigidos. Será difícil encontrar alguma luta social que de alguma forma o conteúdo de classe não esteja presente, mesmo que muitas vezes encoberto, não perceptível entre aqueles que revindicam. Explicitar e tornar transparente o componente de classe é um caminho fundamental para que uma dinâmica de alianças se efetive e confiram a luta de classes um sentido renovado para uma eventual superação do capitalismo.

Erick Kayser – Doutorando em História pela UFRGS

Redação

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