O discurso como problema: Uma batalha de ideias no atual contexto político brasileiro, por Rafael Tauil

De forma oportunista, ao invés de lidar com as transformações de forma salutar, o governo atua amedrontando a população para garantir seu papel de herói e bom moço, sempre a postos para assegurar a ordem e o progresso social.

O discurso como problema: Uma batalha de ideias no atual contexto político brasileiro

por Rafael Tauil

Tenho me dedicado nos últimos meses a acompanhar os índices de aprovação do atual presidente. No início de sua gestão em janeiro, mais de 40% dos brasileiros classificavam o governo como bom ou ótimo. Ao longo de seis meses de gestão esta aprovação caiu a um patamar bastante inferior, chegando quase a menos de 30%. Mas minha impressão, assim como a de outros cientistas políticos, é de que esta margem não terá grande variação nos próximos 3 anos e meio de governo que restam pela frente. O aparato ideológico do governo é fortíssimo e conta com um exército de seguidores – indispostos a pensar criticamente sobre toda e qualquer ação ou modo de governar do executivo federal – que difunde e propaga as ideias e os ideais de Bolsonaro de uma forma muito eficiente.

Este aparato tem sido capaz de manter a polarização no país e, principalmente, manter acesa a chama da existência de um inimigo real do governo (obviamente representado pelo PT ou qualquer outra reprodução daquilo que se denomina hoje como esquerda). Esta estratégia, velha conhecida de regimes populistas e ou autoritários, vem logrando êxito, pois através dela se governa para uns poucos, que acreditam que seu país está ameaçado por uma força maligna, que pretende instalar uma ditadura comunista, homossexual e de libertinagem, que pretende desagregar todo e qualquer tipo de instituição tradicional, como família, religião, polícia, exército, dentre outras.

Este medo que habita o imaginário do homem comum é natural, o mundo – não apenas o Brasil – vem passando por diversas transformações numa velocidade assustadora. Ocorre que estas mudanças – pasmem – não são fruto de um projeto pensado por um serviço secreto especializado da esquerda, como se quer fazer acreditar. Estas transformações vêm ocorrendo no mundo através da ação da humanidade de maneira geral, mas também à revelia dela mesma. A exigência do respeito às causas LGBT, por exemplo, não são fruto de um grupo de gays e lésbicas que se uniram num determinado dia do ano para tentar obrigar o mundo todo a ser homossexual.

Esta exigência do simples respeito à sexualidade surge através da História, ao longo de anos de repressão a indivíduos que sempre mereceram respeito a suas questões de foro íntimo. De todo modo, o governo, através de seu aparato teórico-ideológico tenta fazer crer que há uma verdadeira cruzada, numa tentativa de homosexualização dos brasileiros. O pior de tudo, é que eles vêm conseguindo. O homem brasileiro mais simples tem medo de que seu filho seja doutrinado pela ideologia de gênero nas escolas, ou que aprenda que a família tradicional “já não serve mais”, ou mesmo que a igreja é uma balela e Deus já não existe há muito tempo. Sou professor e educador, tenho muitos amigos na área e garanto a vocês que não estamos preocupados com isto. As questões de gênero, raça e religião vêm sendo discutidas na escola? Sim, mas acreditem, não se trata de um projeto petista ou esquerdista, estas questões são tratadas nas mais diferentes esferas da educação e principalmente em colégios particulares de ponta que estão formando as elites do futuro e não visam nada além do respeito ao próximo. Estas mudanças, que passam principalmente pela esfera das questões identitárias, são frutos das metamorfoses – para utilizar a expressão de Ulrich Beck – pelas quais o mundo vem passando e acreditem, não vamos morrer disso.

O brasileiro está preocupado com a desagregação da família, da religião e de outras instituições que trazem segurança (pelo menos no nível da imaginação) a qualquer sociedade. A preocupação é legítima, mudanças e o desconhecido geram insegurança, mas não podemos nos apropriar deste medo e tecer, a partir dele, uma bandeira de luta reacionária, que negue as mudanças pelas quais vêm passando a humanidade. É irrefreável, inevitável, ocorre à revelia de nós mesmos, nos cabe lidar com as consequências, tirar as melhores lições, desfrutar da parte boa, remodular o que não der certo e seguir a marcha da vida.

Apesar disto, de forma oportunista, ao invés de lidar com as transformações de forma salutar, o governo atua amedrontando a população para garantir seu papel de herói e bom moço, sempre a postos para assegurar a ordem e o progresso social. Enquanto luta neste front, consegue agregar em torno de si este grupo que vive no limite do pavor com o fantasma da decomposição das bases da sociedade nos moldes atuais. O que ela não percebe é que esta base já foi decomposta, e não pela esquerda, pelos petistas, pelos marxistas, mas pela marcha da História. Esta “desintegração” é parte natural do processo de recomposição dos elementos estruturais da sociedade que ocorrem de tempos em tempos. Não depende apenas de mim, de você, da economia, da política, do direito, da cultura, do Brasil, dos EUA, ou do Japão, depende da História, depende do mundo e é irrefreável.

Curioso notar que a Sociologia – hoje considerada progressista e subversiva pelas camadas conservadoras da sociedade – surgiu com as ideias de Augusto Comte, ao lado de Saint-Simon e outros, e tinha, à princípio, um caráter bastante conservador. Buscava compreender a anomia social pela qual passava o mundo diante das consequências da Revolução Industrial e das chamadas Revoluções Liberais e prover diagnósticos, prognósticos e fórmulas que pudessem determinar a reorganização das antigas estruturas sociais que haviam sido desestabilizadas, de modo que a “civilização” pudesse retomar seu caminho tranquilamente rumo ao progresso. As ideias de civilização, desenvolvimento e progresso precisam, com urgência, passar por um amplo processo de problematização. Vale recorrer, neste sentido, ao Anjo da História, mobilizado por Walter Benjamin em suas teses sobre a História.

Diante desta reflexão acerca do caráter imutável da marcha da História, fica claro que estamos perdendo a guerra de ideias para o atual governo, pois não estamos atacando o que de fato interessa, o cerne do discurso. O governo está progredindo com o desmonte civilizatório, através de cortes na educação, do desmantelamento de políticas ambientais, do descaso com os desempregados, da extinção dos conselhos públicos, entre outros, porque está vencendo no plano das ideias. Para cada uma destas ações, ele justifica sua política de governo através de um discurso ideológico eficaz que convence seus apoiadores e causa raiva em seus adversários que, ao invés de atacar a raiz do problema, insistem em chamá-lo de boboca-cara de melão.

Portanto, para o desmonte da ciência, da educação superior, dos institutos de pesquisa, ele mobiliza a ideias de que a academia, a universidade e a ciência são ambientes de balburdia, drogas, doutrinação ideológica e que os dados científicos servem a interesses estrangeiros que buscam sequestrar e minar a hegemonia brasileira diante do sistema mundo. Com relação às políticas ambientais, acusa ONGS que “perderam a mamata” de estarem agora tentando retaliar o governo através de atos criminosos como o incêndio na floresta amazônica, acusa países como França, Alemanha e Finlândia de estarem interessados em roubar a Amazônia dos brasileiros e bate a mão na mesa dizendo “a Amazônia é nossa de ninguém toca”. No desemprego, defende a liberalização completa do mercado e a flexibilização do trabalho através do discurso da meritocracia, num Brasil onde não há pobres, em que o sucesso depende apenas do esforço individual e onde só não trabalha quem não se esforça o suficiente para conseguir emprego. Por fim, os conselhos e outras esferas democráticas de decisão, conquistadas nos pós redemocratização com a Constituição de 1988, são colocadas por ele como institutos de menor importância que, ao invés de contribuir com o desenvolvimento e progresso nacional, inviabilizam e atravancam processos decisórios importantes para os rumos da nação.

Boa parte dos colegas das Ciências Humanas e Sociais, de modo geral, rechaçam e criticam a análise das narrativas e do discurso, como se estes elementos fossem partes menos importantes da superestrutura social e não tivessem tanta importância na batalha política cotidiana. Faço um alerta a este respeito, levando em consideração a própria definição de Política cunhada pelo intelectual italiano Norbert Bobbio de que o poder se apresenta através de três formas fundamentais: política, econômica e intelectual. O poder político na atual realidade nacional está fortemente atrelado ao poder intelectual. Há uma espécie de fusão entre as duas esferas, servindo atualmente como munição pesada à gestão do executivo federal. Vivemos no Brasil um momento em que o poder das ideias assumiu proporções inimagináveis – talvez comparado apenas a momentos como os da ideologia nazista, fascista e da polarização da Guerra Fria. Se não atuarmos nesta esfera e encararmos de frente (com calma, inteligência e serenidade) esta batalha de ideias, seremos em pouco tempo reduzidos – no campo do imaginário do homem comum – a um grupelho de subversivos que não querem nada além da destruição do país, do cidadão de bem e das instituições nas quais estão assentados anos da nossa História e da nossa sociabilidade enquanto brasileiros.

É preciso parar de combater a pessoa de Bolsonaro, é necessário combater as ideias que legitimam o seu governo e de seus correligionários.

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Redação

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