O escorpião e o fim do projeto neoliberal, por Marcio Tenenbaum

A direita, na tentativa de se afastar das centenas de mortes que ocorrerão, propõe agora exatamente o oposto daquilo que sempre propôs. FHC, Armínio Fraga, Pedro Malan et caterva posam de humanitários, incentivando o apoio do Estado

O escorpião e o fim do projeto neoliberal

por Marcio Tenenbaum

Em 20/07/44, 45 dias após a invasão da Normandia pelas forças conjuntas dos Estados Unidos e do Reino Unido, um grupo de oficiais de alta patente do exército alemão realizou um atentado contra Hitler em uma sala de reuniões, colocando uma bomba embaixo da mesa onde estava o führer. A motivação que encorajava aqueles oficiais nazistas de primeira hora e apoiadores dos campos de extermínio, entre eles o marechal Rommel, encontrava-se a algumas léguas de distância de Berlim: por um lado, o avanço do exército soviético e, pelo outro, dos Aliados.

Nenhum daqueles oficiais desconhecia que a Alemanha havia perdido a guerra e, sem Hitler, tentariam negociar com o ocidente suas sobrevivências. Sabiam igualmente que após a morte de 20 milhões de soviéticos, a vingança seria maligna. Hitler era o empecilho a ser eliminado. No entanto, não só o führer sobreviveria ao atentado, como ainda, em dezembro daquele mesmo ano, tentaria sua última resistência na Batalha das Ardenas. Com esta derrota antes da batalha final por Berlim, Hitler se prepara para o suicido, que cometeria quatro meses depois.

Fascismo não costuma ter um fim pacífico e o coronavírus é a Normandia de Bolsonaro. Ele sabe que acabou, que o vírus o derrotou e tenta sua última resistência antes da batalha final por “Berlim”, lançando mão do isolamento vertical, procedimento impossível de ser adotado diante da forma de convívio das famílias brasileiras.  A direita, na tentativa de se afastar das centenas de mortes que ocorrerão, propõe agora exatamente o oposto daquilo que sempre propôs. FHC, Armínio Fraga, Pedro Malan et caterva posam de humanitários, incentivando o apoio do Estado às micro e pequenas empresas e aos abandonados pelo pacote trabalhista neoliberal aprovado com amplo apoio do PSDB, partido ao qual sempre estiveram vinculados.

Diante da catástrofe que se avizinha, aqueles que sempre defenderam a contenção do gasto público, o congelamento do gasto em saúde e educação por 20 anos, as reformas da previdência e o congelamento do salário mínimo, invocando o pretexto da quebra do Estado, poucos meses após tais reformas defendem exatamente o contrário. Na realidade, apenas vislumbram o retorno ao poder nos escombros do país destruído pela mente de um presidente insano, alçado ao Palácio do Planalto por essa mesma direita que agora quer vê-lo pelas costas.

Bolsonaro sabe que dificilmente terá condições de permanecer no poder, pois o que lhe sustenta é o apoio da burguesia ao projeto de desmonte do Estado brasileiro, que foi bem sucedido desde a posse com a venda de setores estratégicos. Contudo, a promessa de crescimento econômico suficiente para reduzir o enorme exército de desempregados, que pudesse recuperar o combalido setor industrial com crescimento do PIB na ordem de 3%, ainda está muito longe de ser atingido. Além de ter uma enorme incapacidade de formular qualquer acordo político com os setores que o levaram ao poder, Bolsonaro tem um comportamento paranoico que o impede de enxergar a oposição como adversários, mas apenas como inimigos.

Nesta lógica de guerra, isola-se politicamente e lança mão de provocações e grosserias diárias contra seus próprios apoiadores. Por força de tal comportamento e da frustração com a política econômica, já percebida antes do aparecimento dos primeiros casos do coronavírus e da inevitável deflagração do surto no país com suas consequências nefastas, Bolsonaro já estava profundamente desgastado. As pesquisas de opinião revelavam a perda da popularidade, que somente ressurgia após a adoção de algumas benesses, como a liberação de parte do FGTS, na tentativa desesperada de estimular o consumo no final do ano, mas que se demonstrou infrutífera depois da divulgação dos números das vendas no período do Natal.

Que não se pense que Bolsonaro foi derrotado só pela Covid-19. O vírus derrotou o plano econômico neoliberal do Posto Ipiranga e da burguesia nacional, pois se antes da deflagração da pandemia era imprescindível o investimento público para o país crescer, após a superação da crise sanitária, ficará muito mais evidente que sem a participação do Estado o país não sairá da recessão que já se aproxima. Mas a necessária participação estatal na liderança da tentativa de retomada da economia é exatamente o oposto das propostas formuladas pela equipe econômica. Sem a proposta neoliberal, desmorona um dos principais pilares de sustentação de Bolsonaro.

O outro pilar a sustentá-lo é o ódio. Ódio ao PT, primeiramente, que o levou ao poder com o apoio dos agora “humanitários”. A direita, oportunista, criminaliza e responsabiliza o PT por uma crise econômica que foi, na verdade, produzida pelo longo processo de afastamento de Dilma Rousseff. Ocorre que esse ódio preliminar contra o PT se espalha para tudo o que apareça como opinião divergente, não necessariamente contra uma oposição organizada, mas uma simples opinião contrária. Trata-se de um ódio que inviabiliza acordos políticos, cujo elemento central é a solidariedade ao mesmo projeto.

E solidariedade é tudo o que Bolsonaro não tem. Mas, ao mesmo tempo, sem solidariedade não há como combater o vírus.  Se estamos todos no mesmo barco na luta pela sobrevivência, e a morte nos espreita nas esquinas – ainda que enfrentemos a luta em desigualdade de condições – a solidariedade é o ingrediente principal desse embate, pois é o que nos faz ficar em casa para não contaminarmos a nós mesmos e aos outros.

Bolsonaro atua em sentido contrário, incentivando a quebra dessa solidariedade e aceitando um número provável de mortos em nome da salvação da economia. Para ele, é como se não houvesse custo para reerguer a vida econômica sobre pilhas de cadáveres.  O desdém pela vida alheia fica cada vez mais claro e representará o seu fim. Curioso é que muitos políticos tomariam esta macabra oportunidade que a vida lhes oferece para se transformarem em líderes salvacionistas, como alguns governadores da direita fazem atualmente. O cavalo passou na frente e eles pularam na sela, como diz o ditado popular.

Para Bolsonaro, a capacidade de aproveitar as oportunidades com o objetivo de fazer o bem e se transformar é impossível pela sua natureza, semelhante à fábula do escorpião e do camelo. O escorpião precisava do camelo para atravessar o rio, mas o camelo reluta sabendo que a picada poderia matá-lo. Mas ainda assim o camelo resolve ajudar o escorpião, que no meio da travessia pica aquele que lhe transportava. O camelo então pergunta:  – por que fizeste isso se agora ambos morreremos? Não pude evitar, é a minha natureza.

Márcio Tenenbaum, Advogado, Contador e membro da ABJD – Associação dos Juristas pela Democracia

Redação

0 Comentário

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador