“Bacurau” faz sociologia e aposta no povo, por Roberto Bitencourt da Silva

Trata-se de uma engenhosa obra cultural que visa despertar a compreensão a respeito das vicissitudes brasileiras no tempo presente.

“Bacurau” faz sociologia e aposta no povo

por Roberto Bitencourt da Silva

Dirigido por Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, estrelado por Sonia Braga, o filme “Bacurau”, com facilidade, tenderá a ingressar na categoria das obras clássicas do cinema brasileiro.

O filme revela extraordinária capacidade de reverberar, sintetizar e organizar ideias e interpretações que circulam, em boa medida, de modo latente e fragmentário, nos últimos anos, entre setores sociais angustiados com os rumos seguidos pelo País, além de sensíveis e comprometidos com as causas populares e a defesa dos interesses nacionais.

Trata-se de uma engenhosa obra cultural que visa despertar a compreensão a respeito das vicissitudes brasileiras no tempo presente. Enquanto bem simbólico, não é demasiado argumentar que permite elevar o nosso nível de consciência social, descortinando o véu de mazelas decisivas e traços do modus operandi das classes dominantes e dos grupos do poder no Brasil.

A produção, o elenco e os diretores do grande filme desempenham papel ao qual o sociólogo francês Lucien Goldmann – que teoriza a função criadora dos sujeitos imersos na produção cultural, sobretudo escritores – classificaria como “sujeitos transindividuais”: intelectuais que não somente organizam difusos diagnósticos e visões de mundo, como oferecem coerência e respondem a perspectivas, atitudes, ideias e anseios que circulam em setores da sociedade.

Ademais, alguns personagens e certas situações retratadas em “Bacurau” demostram semelhanças com o recurso sociológico dos “tipos ideais”, a que se refere o pensador alemão Max Weber. Isto é, personificam agentes sociais, econômicos e políticos, com seus comportamentos “médios” ou suas expectativas de ação corrente. Espelham fenômenos coletivos, dotados da capacidade de representação dos problemas nacionais e das suas eventuais respostas e iniciativas equacionadoras.

Como provável clássico, a película contribui para alargar o campo do imaginário, da gramática e do dizível político. Estimula a compreensão e socialização de categorias de percepção bastante lúcidas, realistas, distantes da convencionalidade política institucional – inclusive das esquerdas partidárias e dos sindicatos. Categorias contrárias à ordem prevalecente, ainda que bastante duras, pois dura é a nossa realidade nacional em processo intensificado de vassalagem neocolonial aos interesses das potências imperialistas, mormente aos Estados Unidos.

Contribuir para o mapeamento e o esclarecimento dos dilemas e desafios de uma época, oferecer um painel de potenciais respostas alternativas, são atributos que caracterizam a produção científica e artística consequente, como afirmava o professor Florestan Fernandes. Contribuições que têm a possibilidade de promover a disponibilização de instrumentos que viabilizem a intervenção política criadora na sociedade.

A distopia delineada por “Bacurau” – nome fictício de um distrito de município interiorano no Nordeste brasileiro – dialoga abertamente com o Cinema Novo dos anos 1960. Como criação audiovisual portadora de força interpretativa sociológica, “Bacurau” aproxima-se de “O dragão da maldade contra o santo guerreiro”, de Glauber Rocha. Especialmente no tocante ao papel distópico ao qual Glauber confere à interiorana e ficcional cidade de Jardim das Piranhas.

Duas alegorias do Brasil, em duas épocas: Bacurau e Jardim das Piranhas. “Bacurau”, ainda, apropria-se e dá oportuno uso à música de Geraldo Vandré, “Réquiem para Matraga”, feita originalmente para o filme “A hora e a vez de Augusto Matraga”, de 1965, inspirado em conto do genial escritor Guimarães Rosa.

O filme recém-lançado transpira brasilidade e, em sua mensagem política, lança as fichas na ousadia e no engenho criativo popular. Uma obra que pensa e espelha o nosso tempo. Igualmente, uma produção cinematográfica que guarda o potencial de instigar a necessária adoção da capacidade política inovadora e renovadora. Espetacular.

Roberto Bitencourt da Silva – historiador e cientista político.

Redação

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