O humor de Deus pela Porta dos fundos – coisas que o cristianismo ignora, por Alexandre Filordi

Condenar o humor de Porta dos fundos é ser coerente com o que se ignora de Deus e do cristianismo – o lado humano, demasiadamente humano de ambos.

(Pintura no teto do Museu Dali em Figueras, Espanha).

O humor de Deus pela Porta dos fundos – coisas que o cristianismo ignora

por Alexandre Filordi

No curso da história, o cristianismo soube exercer a sua fúria cirúrgica contra os não adeptos de suas mais distintas vertentes de credos e os supostos infiéis. 

A partir do Século IV, ao ser estabelecido como religião oficial do Império Romano, o cristianismo pôde se aperfeiçoar nos requintes de perseguição aos dissonantes. A partir do Concílio de Latrão, no século XII, estabeleceu-se a obrigatoriedade da confissão para se controlar as consciências. Surgiu daí um modo perverso de se produzir pecado: a escuta tornou-se arte de demandar punições. Todo tipo de prazer humano, por exemplo, entrou para uma espécie de index prohibitorum. Queimar pessoas vivas, torturá-las para confessar o mal, furar olhos, escaldá-las vivas, enjaulá-las, dependurá-las de cabeça para baixo, etc., em nome do amor a Deus, estabeleceu-se como prática comum tempos depois. 

Quando a Igreja Católica Romana, em pleno século XVI, conheceu uma Reforma, alguém como Calvino – pai do Presbiterianismo – chegou a queimar Serveto pelo fato de este discordar da interpretação hipermetafórica de Calvino do livro de Cantares. Exegeticamente, Serveto estava correto. Não seria preciso falar da Inquisição do século XVII, proto biopolítica sistemática de supressão de populações inteiras, desde que vistas como ameaças ao credo oficial.

As variações dos requintes de perversão, entretanto, atualizam-se de muitas maneiras: em cada fivela dos soldados nazistas estava cunhado: Gott mit uns – Deus caminha conosco; as conquistas etnocidárias do cristianismo são dadas como óbvias: nossos povos indígenas que o digam; e o que dizer do pastor que chuta a santa mas não rasga dinheiro?; dos bons cristãos apoiando o franquismo fascista na Espanha, o golpe civil-militar no Brasil, claro está, pois a bom cidadão há de ser cristã; o mesmo no Chile de Pinochet, idem no imperialismo genocidário do In God we trust  estadunidense, etc. etc. etc. 

Portanto, o cristianismo, o mesmo que anuncia que Cristo é vida e amor, ao contrário, sempre foi inclinado a uma “indefectível paixão tanatofílica”, nos termos de Michel Onfrey em Tratado de ateologia. No Brasil, essa paixão pela morte está em pauta há muito tempo. Mas desde que Porta dos Fundos lançou o especial de Natal: A primeira tentação de Cristo, um giro alucinante, senão paradoxal, de fogueiras de desejo da aniquilação da alteridade se acelerou. 

O bispo que não condena a pedofilia de seus padres incita o abandono das assinaturas do Netflix; um deputado federal do partido Republicanos do DF, com nome de imperador romano, conjura o Ministro da Justiça Sérgio Moro a se empenhar em uma apuração e representação criminal contra Porta dos Fundos. Afinal, o Brasil não padece com práticas necropolíticas, polícias tanotocráticas, chacinas em presídios, execuções sumárias produzidas por milícias, nada disso, pois se existissem certamente seriam prioridade. Aliás, o comediante Didi, que chamava Mussum de “urubu”, “anil”, “macaco”, “chaminé do avesso”, já em 2013, aconselhava Duvivier a não fazer humor com religião, o que diria agora esse grande bolsonarista?

Como se diz na hermenêutica bíblica – a séria, desde Schleiermacher – o texto fora do contexto serve para qualquer pretexto. Se digo isso, é porque o cristianismo sempre fez questão de esquecer que Deus – se o há – possui um humor indescritível. E não seria apenas por Seu humor que Ele deixaria de fulminar as bestas humanas que falam em nome d’Ele?, talvez já ignorando o mandamento: “não tomarás o nome do Senhor teu Deus em vão”. 

Do contrário, como ignorar: “à imagem de Deus homem e mulher os criou”, diz o livro dos Gênesis, ou seja, Deus possui também uma imagem de mulher – Ele é homem e mulher; mistura que pode devir qualquer dimensão humana, por consequência. Deus sempre foi transexual, nesse caso! Mas como esquecer que Deus elegeu Davi como o homem segundo o seu coração. Esse mesmo Davi que apaixonado por uma mulher casada, Bate-Seba, depois de engravidá-la, enviou o seu marido, comandante Urias, para a primeira fileira de uma batalha para ser deliberadamente morto. E o que dizer de Balaão, que não querendo predizer a profecia divina, a sua mula passa a falar em seu lugar. Jó, um homem riquíssimo e temente a Deus, foi objeto de uma aposta entre Deus e o Diabo – sim, Deus faz apostas! E que pai sacrificaria seu filho no lugar de protegê-lo? Aliás esse mesmo filho, chamado Cristo, salvava prostitutas de apedrejamentos; colhia ladrões como seus; envergonhava os legalistas fariseus e saduceus; dizia para não se acumular riquezas na terra, onde a traça e a ferrugem as corroem; transformava água no vinho dos melhores – os crentes dirão que era suco de uva (orgânico?); esse mesmo Cristo anunciava: Amai a vossos inimigos, bendizei os que vos maldizem, fazei bem aos que vos odeiam, e orai pelos que vos maltratam e vos perseguem. Sem contar uma interessante prática da Igreja Antiga – certamente uma célula comunista: Não havia uma só pessoa necessitada entre eles, pois os que possuíam terras ou casas as vendiam, traziam o dinheiro da venda e o depositavam aos pés dos apóstolos, que por sua vez, o repartiam conforme a necessidade de cada um. Está lá, em Atos dos Apóstolos 4, vs. 34-35. 

Ora, por que tudo isso, em apenas alguns exemplos, é ignorado? Porque Deus não pode ter bom humor, segundo os cristãos. Ele não pode praticar o que contraria: a paranoia de seus fiéis. O humor de Deus é colocado na porta dos fundos, com perdão do trocadilho, visando a um propósito fundamental: transformar o que se quer derivar, em Seu nome, em algo contrário à sua própria forma de agir com um riso jocoso: ou Deus não ria da mula falando, d’Ele ganhando a aposta com o tinhoso, de ver a malícia de Davi saindo pela culatra, de Cristo fazendo vinho quando todos já tinham bebido os tonéis da festa, etc.?  

Os dogmas surgem quando o fundamento de uma crença passa a ser solapado pelo princípio da contradição. Nesse caso, o texto, ainda que bíblico, porém, fora do contexto, servirá mesmo para qualquer pretexto. Condenar e perseguir Porta dos Fundos é a prática reavivada da política da morte do cristianismo, sempre ignorando o lado da vida, do humor, do sarcasmo, da ironia, quando o próprio Deus assim agia e quando Cristo, grande inversor de valores, praticava-os, como no caso das chicotadas nos lombos dos vendedores de badulaques no templo de Jerusalém. O que Ele faria hoje, com esses pastores que transportam dinheiro em helicóptero, vendem de tudo nos templos físicos e virtuais, extorquem fiéis em nome do medo, reprodutores de autointoxicação intelectual e de cegueira com qualquer alteridade? 

Condenar o humor de Porta dos fundos é ser coerente com o que se ignora de Deus e do cristianismo – o lado humano, demasiadamente humano de ambos. Esses mesmos costumam crucificar quem apregoa contra os seus sistemas: Cristo continua sendo exemplo disso – e isso não tem graça, verdadeiramente.  

Alexandre Filordi (EFLCH/UNIFESP)

Redação

10 Comentários

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  1. Os vendedores na porta do templo em Jerusalem chicoteados por Jesus, na verdade eram cambistas que recebiam moedas de fiéis de lugares distantes e as trocavam por moedas válidas para a compra de sacrifícios executados por sacerdotes no templo. Eram comerciantes que viabilizavam o processo de encomendamento dos rituais judaicos da época.

  2. Deus não tem senso de humor porque, generalizando, evangélico não o possui tampouco. Não tem senso de humor nem ironia. Como todo mundo até gosta de rir, mas gargalhar ja é pecado. E falar em Deus em outro patamar que não seja de um adoração cega ja é blasfêmia. Adoram essa palavra. Qual a solução para esse Brasil da lavoura arcaica senão levarmos instrução ao povo!

  3. O problema foi ter mexido com a fé das pessoas e ter feito “humor” com isso, fazendo praticamente todas religiões se questionarem: por que eles não fariam com nós. Deixando a impressão de que todas religiões são besteira, fazendo blasfêmia contra seu ser superior de todas religiões

  4. Homer Simpson tem razão. “A culpa é minha e eu ponho e quem eu quiser.” Faço uma revisão histórica, acho pessoas que deturparam a fé, aponto erros históricos e culpo todo mundo num balaio de gato.

  5. Hoje tive a mais absoluta certeza que um terráqueo jamais terá condições de analisar os problemas dos marcianos. O desconhecimento do contexto da fé é crucial para erros de julgamento no tocante a SS Trindade.

  6. Excelente texto. Contudo quero ressaltar que, aparentemente, pelo que encontramos na bíblia, a sexualidade é inerente aos seres humanos, pois quando excluímos o prazer pelo prazer (que fique claro que a bíblia não condena a relação sexual por prazer) concluímos que o prazer sexual é um bônus dado ao ser humano para o estimular a perpetuar sua espécie. Se Deus faz sexo? Não sei. Mas que nem Ele nem Jesus precisa se reproduzir, isso a bíblia nos deixa claro, pois Eles se completam em Si mesmos! Se Jesus buscaria um namorado para satisfazer sua necessidade sexual, visto que ele assumiu a forma humana? Vou parafrasear o que disse o apóstolo Paulo: “há alguns que se castraram a si mesmos para se aplicarem completamente a missão que lhes foram propostas”. Acho que o Jesus homem se enquadra nesta categoria. Mas o fato é: Ele não precisa da nossa defesa!!!!! Como foi muito bem colocado no texto, devemos fazer as obras que Ele fez e deixar o julgamento para o próprio Deus!

  7. Quero ver esses doentes brincarem com Maomé. Não fazem pois no dia seguinte iriam se deparar com um homem bomba acabando com suas infelizes vidas.

  8. “Ser cristão significa perdoar o indesculpável, porque Deus perdoou o indesculpável em você”. (C.S. Lewis)

    O cristianismo nasceu para ser escarnecido.

    Como não debochar de uma religião cujo originador teve seu berço numa pedra esculpido?

    Como não duvidar de uma fé que fez da defesa dos fracos a sua mensagem?

    Como levar a sério um modo de viver que inclui não resistir à inimizade?

    Como integrar uma revolução a ser feita com o amor, que não grita, não empunha armas, nunca é violento?

    Como aceitar a ideia de que não somos bons mas somos por Deus amados assim mesmo, amados sem razão, mas intensamente?

    Como defender um mestre que não se defende e responde com o silêncio à maldade que o condena injustamente?

    Como seguir um guia que perdoou os algozes que o matavam e se divertiam ao mesmo tempo?

    Foi assim que Deus decidiu fazer.

    É a este caminho, feito de ridículas coroas de espinho, que Deus nos convida a pertencer.

    É esta sabedoria, que os que se acham sábios tentam fulminar, que Deus nos oferece para conhecer.

    É esta força, feita de fraqueza, que devemos ter.

    É nesta vitória, invisivelmente tecida pelo Senhor da história, que devemos crer.

    Uma vida perfumada pela coerência e pela misericórdia — com respeito aos que não nos respeitam e com argumentos solidamente fundamentados e vibrantemente formulados mas que não atacam e não revidam — esta é a nossa arma, se assim podemos chamá-la, e outras não podem haver.

    É no que chamam de ignorância, consideram uma moral para escravos, pintam como obediência cega, cantam como escolha para retrógados, que está o nosso poder.

    Esta é a cruz que devemos carregar.

    Esta é a porta da alegria por cuja frente devemos entrar.

    “Naquela hora, Jesus exultou no Espírito Santo e exclamou: ‘Graças te dou, ó Pai, Senhor do céu e da terra, porque escondeste estas coisas dos sábios e instruídos e as revelaste aos pequeninos. Sim, ó Pai, porque assim foi do teu agrado’”.

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