O inaceitável uso deliberado da mentira como tática política, por Arnaldo Cardoso 

O recurso do corte da fala de Trump seguida de esclarecimento utilizado pelos canais de televisão dos EUA recebeu posteriores elogios de pares pelo mundo, visto como “uma página histórica para o jornalismo”.

Brazil’s President Jair Bolsonaro and U.S. President Donald Trump wave as they depart at the conclusion of a joint news conference in the Rose Garden of the White House in Washington, U.S., March 19, 2019. REUTERS/Kevin Lamarque

O inaceitável uso deliberado da mentira como tática política

por Arnaldo Cardoso 

Desde o último dia 5, quando milhões de cidadãos norte-americanos e de todo o mundo assistiram através das tradicionais emissoras de televisão dos Estados Unidos (ABC, NBC, CBS…) um pronunciamento de Donald Trump sendo interrompido e sobreposto por explicação ao vivo de que o presidente estava mentindo ao denunciar supostas fraudes nas eleições sem apresentar provas, atentando contra a democracia e a ordem pública, ganhou nova dimensão o debate sobre a liberdade de expressão em contexto de proliferação da mentira deliberada e a responsabilização destes atos.

Antes mesmo da eleição, e em movimento inédito, redações dos Estados Unidos já se preparavam para enfrentar um desafio adicional na cobertura da apuração da eleição presidencial face às prévias declarações de Trump de que anunciaria sua vitória (“golpe da vitória”) antes mesmo da contagem dos votos pelo correio e que não reconheceria o resultado se não fosse o de sua vitória.

Diante disso se pôs o problema: como deveriam reagir os grandes jornais e canais de televisão diante da “notícia” do presidente anunciando prematuramente sua incerta vitória? Transmitir mentiras e desinformação com potencial instabilizador em momento crucial para a democracia do país não poderia ser normalizado. E não se trata de censura, mas sim de que o uso deliberado e malicioso de mentira não pode se proteger no direito à liberdade de expressão.

O recurso do corte da fala de Trump seguida de esclarecimento utilizado pelos canais de televisão dos EUA recebeu posteriores elogios de pares pelo mundo, visto como “uma página histórica para o jornalismo”. Observadores apontam que desde 2016 o jornalismo norte-americano vem fazendo autocrítica e revisando muitas de suas práticas na era da infodemia, em que a desinformação ao exacerbar a polarização das opiniões, suscita também a busca da verdade e a verificação dos fatos, como bem avaliou a escritora e jornalista italiana Michele Serra, citada em recente matéria do jornal milanês La Stampa.

Enquanto isso, no Brasil o clone tropical de Trump continua agindo diariamente como um troll, irresponsável e desdenhoso em relação ao sofrimento alheio. Como eu mesmo já tratei neste Jornal GGN “no uso corrente na internet o troll na política joga com a dubiedade, insidiosamente entre o que é brincadeira e o que é sério. Busca polemizar, mexe com os tabus, nega o politicamente correto e despreza consensos, chegando a flertar deliberadamente com o ilegal. Com isso atinge seu objetivo principal: visibilidade.”

A sequência de atos que envolveram a suspensão no último dia 9 dos testes da vacina Coronavac no Brasil, evidenciando uso político pelo presidente da República, foi o mais recente e grave episódio de uma sucessão que nos dois últimos anos impregnou o ambiente político no país. Neste caso, os esforços na busca de uma vacina segura são prejudicados pela disseminação de medo através de desinformação e distorções da realidade.

O ápice da indecência foi a postagem em redes sociais feita pelo presidente com o seguinte teor “Morte, invalidez, anomalia. Esta é a vacina que o Dória queria obrigar a todos os paulistanos tomá-la. O Presidente disse que a vacina jamais poderia ser obrigatória. Mais uma que Jair Bolsonaro ganha”.

O presidente do Instituto Butantã (parceiro do laboratório chinês Sinovac), Dimas Covas, disse que a notícia de suspensão dos testes com a Coronavac, anunciada pela Anvisa foi recebida com indignação, pois os relatórios encaminhados aos órgãos competentes é claro em demonstrar que o evento adverso grave (morte de um voluntário do grupo de teste) não está relacionado com a vacina. O coordenador executivo do Centro de Contingência do Coronavírus em São Paulo, João Gabbardo dos Reis,viu o episódio como distorção deliberada com o interesse de criar um fato político com a suspensão da vacina.

Não tardaram as manifestações de indignação de lideranças políticas, intelectuais e da sociedade civil em geral com mais essa atitude deplorável do ocupante do mais alto posto político do país em meio a pandemia que já soma 5,7 milhões de infectados e colocou o Brasil no segundo lugar no ranking mundial de mortes pelo coronavírus, com 162 mil óbitos, atrás apenas dos EUA de Trump.

O ex-Ministro Ciro Gomes avaliou que “cadeia é muito pouco para canalhas que fazem politicagem com vacina”. O governador do Maranhão, Flávio Dino, disse que Bolsonaro “continua a ser o maior aliado do coronavírus“. O senador Randolfe Rodrigues declarou “Trata-se de mais uma atitude repugnante do Presidente de República”. O ex-Presidente Fernando Henrique Cardoso repudiou a politização da vacina e disse “É lamentável o que está acontecendo: politização da vacina que nos livrará do coronavírus. A decência e a saúde exigem prato limpo: dado o que disse o Butantã, que a Avisa se explique. E logo. Revela a motivação política. É o exterminador do futuro.”

Luiz Carlos Dias, professor titular do Instituto de Química da Unicamp, membro titular da Academia Brasileira de Ciências (ABC) e membro da Força-Tarefa da UNICAMP no combate à Covid-19 expressou em recente artigo que “a população brasileira precisa ter acesso a todas as vacinas seguras e eficazes aprovadas em fase 3. É inaceitável politizar a questão das vacinas e colocar aspirações políticas pessoais acima da saúde pública da população brasileira”.

Lenina Pomeranz, pesquisadora e professora livre-docente da FEA da Universidade de São Paulo, com extensa contribuição em projetos socio-educacionais, se manifestou entre professores, pesquisadores e amigos com as seguintes palavras diante da insensibilidade (inclusive política) do presidente “Indignação! É o que sinto, como milhões de brasileiros devem estar sentindo, diante da utilização por Bolsonaro, do sofrimento e angústia deles, para fazer jogo político com a vacinação contra o Coronavírus. Infame! Indigno!”

É também importante salientar que, nesse episódio, assim como em outros similares, além da liderança obtusa do presidente, apaniguados desempenhando funções públicas cumpriram suas ordens e endossaram suas leviandades.

Muitos brasileiros se indagam se sofrer os efeitos danosos da incompetência e leviandade do presidente é o custo incontornável da insana aventura do voto em 2018 – estimulada por diferentes forças, inclusive por amplos setores da mídia – que o levou até o Palácio do Planalto e de onde sairá, talvez, em situação  similar a que está levando seu par norte-americano para fora da Casa Branca e para a lata de lixo da história, deixando um doloroso rastro de divisão da nação, sofrimento e atraso.

Arnaldo Cardoso, cientista político

Redação

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