O Lugar de escuta para além do lugar de alteridade, por Cristiane Alves

A mulher preta é um indivíduo que recepciona todos os impactos sociais. Os olhares enviesados todos, tanto mais quanto maior o tom de sua negritude. Aqui digo sobre tom de pele, mas digo também sobre consciência racial.

O Lugar de escuta para além do lugar de alteridade

por Cristiane Alves

Sempre que vejo a indignação dos que acreditam que o lugar de fala é uma apologia ao desengajamento coletivo e à cooperação, penso em como deve ser bom ter voz sempre.

O Lugar de escuta

Não sou especialista em absolutamente nada no universo da antropologia. Sou uma mulher negra que fala de uma vivência comum a muitas. Sem a pretensão de ser todas as pretas. Porque, obviamente, não sou.

Tenho nome, tive mãe, pai, irmãos mais velhos que levaram nas costas as lambadas da vida com impacto muito maior do que as que me atingiram. Elas bateram neles primeiro, com impacto maior, pela força empreendida, depois essa força foi perdendo energia em cada atrito com um deles, cinco que somos. Última, que sou, fui privilegiada por ter neles escudo e exemplo de como agir quando chegassem. Ao menos não me foram surpresa, o que já é ganho. Mesmo que nem sempre eu pudesse me desviar ou defender.

Então desse lugar, sei que muitas mulheres pretas tiveram experiências de vida até mais dramáticas que as minhas, mas venho falar do que nos é comum.

Sem desmerecer as experiências individuais, que apenas aprofundam essa análise, pois que ampliam, como que pela lente de um microscópio, o que é geral, pela regra ou pela exceção, que reforça a regra.

A mulher preta é um indivíduo que recepciona todos os impactos sociais. Os olhares enviesados todos, tanto mais quanto maior o tom de sua negritude. Aqui digo sobre tom de pele, mas digo também sobre consciência racial.

Quando se é preto ou negro (conforme queiram ser chamados os de quem falo, porque esse conceito de ser preto ou negro exige análise, a qual não pretendo agora), com consciência racial e social, se é efetivamente parte do que chamamos de negritude.

Para mim, não basta nascer afrodescendente para ser parte da negritude. Não é como nascer branco e ser parte da branquitude. Nesse caso, o da branquitude, a consciência racial é o que os coloca no caminho da desconstrução dessa condição opressora.

Não quero dizer sobre ser branco do ponto de vista do branco, pois que não tenho lugar de fala para isso. Não posso sequer supor o que é ter privilégio de ser, somente humano.

Posso falar de branquitude enquanto privilégio. Esse que não é só um, mas que se inicia por um básico: o de posse do direito de atribuir gradação de humanidade ao outro. Como se por julgar-se plenamente humanos, pudessem, de sua humanidade etérea, aferir a humanidade dos não brancos. Numa escala monocromática que vai afastando do outro a humanidade quanto maior a concentração de melanina. Depois desse privilégio tudo é soma. E, como vivemos num mundo capitalista, essa soma se adensa ainda mais à medida que a condição social se distancia da miséria.

Ou seja, o branco é privilegiado por tomar para si o padrão de humanidade, mas os seus privilégios crescem quanto melhor sua condição social.

Se, para o preto, fazer parte de uma negritude exige consciência de uma condição de opressão que nos imputam, quanto mais evidente nossa afrodescendência, ter consciência de sua condição de privilegiado, e, como tal, imputador de dificuldades (ou opressor), é o que pode afastar o branco da branquitude, caso aceite que quer sair dela e lutar contra tal condição.

Então, muitas vezes, vemos pessoas brancas questionadoras de sua branquitude, que desejam lutar pelo fim da branquitude (não dos brancos, reforço). E, esses, muitas vezes assumem o lugar de luta por aquilo que não lhes cabe assumir.

Isso ocorre porque na condição de privilegiados sistêmicos, os direitos todos lhes são possíveis, o que os tornam obtusos no ouvir. Nem sempre por propósito, mas por costume.

Por exemplo, muitas vezes quando falamos em respeitar o lugar de fala, alguém, de sua posição privilegiada, se sente despojado de seu direito de voz. Porque como detentor de voz, não consegue se colocar no lugar de quem não tem.

O lugar de fala não pretende bifar a voz ou emudecer quem sempre teve fala. Pretende dizer que não se deve calar no outro o direito de ter voz. Que se entenda que na condição de quem sempre pode falar, reivindicar, assumir, protestar com direito a ser ouvido, chegou o momento de ouvir, para que juntos possamos lutar pelo fim da branquitude. E de todas as demais opressões.

O lugar de escuta é isso. Recuar do privilégio de ser voz única ou primeira, para se colocar como ouvinte das necessidades alheias, e somente depois de saber o que o outro reivindica e denuncia, transformar em si o que oprime, bem como em sua casta privilegiada.

Não se trata só de ouvir, portando, mas de dar voz, ampliar a fala do reivindicante, lembrando de onde parte a luta.

Não espero que seja fácil. Porque sair da condição privilegiada não é escolha simples.

Sair do lugar de privilégio é doloroso.

Gostaria de dizer que todos temos lugar de fala. Dizer que não se pode falar sobre algo por não ter lugar de fala é o mesmo que dizer que negros são beneficiados pelos sistemas de cotas. O que dá a ideia de que brancos sejam prejudicados por tais sistemas. Quando o que ocorre é uma divisão de algo que sempre foi privilégio de um grupo e que pretende, agora, ser menos injusto.

O lugar de fala é como uma cota de voz. Claro que ao se permitir que outro tenha voz alguém precise falar menos ou, no mínimo, menos alto e aguardar seu tempo para falar.

Para quem sempre teve tudo é uma violência ter menos. É quase que um estupro.

Esse lugar de escuta é também lugar de fala, porquanto a escuta é também fala que ecoa para dentro. Mas não somente para dentro, ecoa de dentro para fora em um outro cumprimento de onda. Reverbera o humano que o outro nos torna por ser quem é e por existir. Quando a empatia chega a um patamar superior, por nos colocar, não no lugar do outro, mas por colocar o outro no que somos, para melhor.

O lugar de escuta é um lugar de Ubuntu, e se chegamos nesse ponto não temos por que temer o silenciamento, que o lugar de fala sequer cogita. Apenas precisamos absorver do outro o que nos torna mais humanos e deixar que essa humanidade comum vibre a luta que nos habita, por um mundo melhor.

Se você se sente ofendido quando alguém reivindica o lugar de fala, entenda que é um indício para que você exercite o lugar da escuta. Entenda que é a tua branquitude falando que não aceita ser menos ou ter menos. Então nesse momento reflita e mude. Saia desse lugar de opressor e comece por derrubar em você aquilo que você já percebeu no sistema e que te incomoda.

É somente disso que estamos falando.

Ubuntu!

Este texto não expressa necessariamente a opinião do Jornal GGN

Cristiane Alves

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