O movimento bolsonarista: o neoliberalismo e a defesa do autoritarismo, por Adriana Macedo

Abre-se mão da democracia para preservar a lógica capitalista produtora do sofrimento. As misérias física ou psíquica irão se acentuar.

O movimento bolsonarista: o processo de destruição do outro e de si
Parte 1 – O sofrimento no neoliberalismo e a defesa do autoritarismo
Por Adriana Macedo*

Este artigo é o primeiro de uma série dedicada à ascensão do reacionarismo e do autoritarismo neste início do século XXI, com foco nos mecanismos e técnicas, uns novos, outros nem tanto, de psicopolítica e propaganda fascista. Observamos a necessidade de compreender o movimento bolsonarista e sua relação com o seu líder a partir (1) da necessidade de imposição do silêncio ao outro, evitando que as verdades sobre a dominação capitalista em todas as suas formas – machismo, sexismo, racismo, homofobia, opressão de classe – sejam enunciadas. Outro aspecto fundamental é (2) a difusão de informações direcionadas aos sujeitos a partir dos dados gerados por eles próprios nas redes. Nesse caso, o poder é exercido diretamente sobre a mente humana. Tais perspectivas permitem pensar a relação entre o movimento bolsonarista, o neoliberalismo, o autoritarismo e o negacionismo da pandemia de Covid-19. O processo de consolidação da massa bolsonarista se alimenta da construção do inimigo e, embora sustente a defesa das ideias capitalistas, tem como efeito colateral o descrédito das próprias instituições burguesas, desencadeando um movimento rumo ao autoritarismo e também à autodestruição, num movimento sacrificial que tem sua expressão máxima na negação da pandemia, tanto em palavra, quanto em ato.

Este primeiro texto da série busca explorar esses caminhos partindo de seu contexto: compreendendo que o desamparo social é o adubo do qual se nutre o movimento conservador, colocando os sujeitos em movimento. O segundo abordará o direcionamento dessa marcha, centrada na ideia do outro como ameaça existencial ao eu, e explorará a forma como a psicopolítica intensifica esse processo. O terceiro artigo tratará do influxo de vozes plurais nas redes sociais e dos mecanismos de defesa desencadeados a partir do encontro com as vozes dissonantes. Tal pluralidade tem potencial revolucionário e por isso é ferozmente combatida com técnicas próprias da propaganda fascista, resultando no movimento reacionário e, no Brasil, no bolsonarismo. A partir dessas ideias centrais, os textos quatro e cinco buscarão analisar o fenômeno bolsonarista. Por fim, o último artigo aponta algumas questões a serem consideradas pelos setores sociais progressistas visando à superação desse momento.

O caldo de cultura, sem o qual o movimento bolsonarista no Brasil não teria tanta força, é o sofrimento no neoliberalismo. Não só o sofrimento decorrente da miséria material e da incerteza e insegurança constantes, mas também da fragilização das relações humanas, tão essenciais aos seres sociais. O avanço da tecnologia no sentido da atomização dos sujeitos e da transposição das interações do meio físico para o virtual pode acentuar esse sofrimento na esfera privada. No mesmo sentido, tanto a administração eficaz das relações laborais, quanto a informalidade e a figura atomizada do empreendedor de si tiram do trabalho todo o senso de comunidade.

As redes sociais foram essenciais nesse processo. Se as tecnologias anteriores tinham um modelo de transmissão um-todos, em rede, a adesão dos sujeitos revoltosos pôde ser disputada. Na mídia tradicional, a posição predominante dos indivíduos é a de receptores das narrativas, sendo possível direcionar suas insatisfações para alvos específicos, sem colocar em risco as instituições do sistema capitalista. A insatisfação capturada por grupos reacionários em rede resultou no direcionamento eficaz dos afetos rumo à ruptura com a democracia. A grande indústria de produção e divulgação de informações fraudulentas em massa foi central no movimento reacionário pois permitiu que os indivíduos pudessem externar ativamente suas insatisfações. Ainda sem localizar as raízes do sofrimento, presentes na própria lógica capitalista, as angústias foram compartilhadas e as ideias em torno das causas puderam ser construídas nesse ambiente.

Nesse processo de identificação pelas angústias e de reconhecimento social dos sujeitos nos grupos, numa interação todos-todos, uma necessidade essencial foi abarcada: a de falar sobre o sofrimento e, consequentemente, elaborá-lo e obter reciprocidade. A formação de grupos sociais é uma necessidade humana, mas a vida cotidiana atomiza os sujeitos. Nos grupos, foi possível estabelecer laços, expor ideias, ser ouvido. A escuta nos grupos gerou pertencimento. Pouco importa que as falas sejam uníssonas e pautadas em desinformação ou em fabricação de fatos que inexistem na realidade; elas promovem uma tripla satisfação: a escuta, o reconhecimento e a sensação de pertencimento. Houve o empoderamento do sujeito neoliberal.

O terceiro aspecto direcionado pelo movimento reacionário foi a canalização seletiva da insatisfação. O debate no interior da vida democrática, obviamente, questiona o sistema capitalista ou alguns de seus elementos. O movimento reacionário preservou o coração do sistema, a lógica econômica, e as partes mais periféricas foram oferecidas; amputam-se os membros para conservar o centro. Dispensáveis são a democracia e as instituições do sistema de pesos e contrapesos. Assim, os grupos reacionários não questionam as pautas econômicas, querem sua implementação acima de tudo. Adicionalmente, pedem a fragilização da democracia e atacam a constituição e os direitos constitucionais, uma vez que atribuem as causas das mazelas sociais aos apêndices do sistema. As relações sociais substantivas, necessidades tão primárias e ausentes na lógica capitalista, estão sendo usadas para gerar o seu contrário: o aprofundamento da lógica neoliberal, o isolamento, a vulnerabilização dos sujeitos e o fim da participação social.

Para esses grupos reacionários, o estado atual das coisas decorre primeiramente da corrupção. Não localizam a corrupção como um sistema de trocas entre empresariado e financistas e seus representantes políticos, mas nos políticos exclusivamente. Negam também a corrupção dos grupos dos quais participam. Nesse sentido, propugnam pelo fim do sistema representativo e por um governo autoritário. Adicionalmente, a insegurança social não é vista como decorrente das condições de miséria material e psíquica. Ao contrário, é atribuída ao excesso de garantias constitucionais relacionadas aos direitos humanos. Por consequência, as pautas são pelo punitivismo e pela exclusão social dos que estão à margem da sociedade. Obviamente, a ideia do bandido é seletiva, não engloba financistas e empresários, mas a classe social mais desprotegida. Por último, o ataque se volta aos direitos individuais. A voz dos grupos minoritários, em especial dos grupos identitários, teve certo alcance nas últimas décadas, chegando à mídia e conquistando políticas públicas de reparação. A esses grupos são atribuídos o estereótipo de vitimista (negando a estrutura social racista, machista e homofóbica) e a falta do espírito capitalista (centrado na ideia de esforço e mérito), negligenciando a impossibilidade do mérito numa sociedade excludente e desigual. Sendo imperativa a defesa da economia neoliberal e acionando uma certa ideia de família e de trabalho empreendedor, esse grupo avança sobre a democracia e os direitos constitucionais.

Paradoxalmente, embora defendam o autoritarismo, esses sujeitos se sentem participantes, ouvidos, em contato direto e imediato com seus representantes. A sensação de pertencimento é extremamente prazerosa. A unissonoridade das pautas constrói a certeza de estarem no caminho certo e qualquer voz dissonante é ignorante, não está informada, tem sido manipulada, é “ideológica”. Nesse sentido, jornalistas e mais recentemente, na pandemia, especialistas cientistas “não sabem nada” quando esse saber se confronta com as informações que esses indivíduos adquiriram nos grupos. Os grupos de pertencimento têm credibilidade. A perda da legitimidade dos especialistas do sistema é outra baixa importante. Crédito é questão de crer, depende de confiança. O movimento reacionário culminou no bolsonarismo ao sair do controle das instituições.

Contraditoriamente, embora se sintam parte, ao invés de avançarem rumo à democracia participativa, os que aderiram ao bolsonarismo querem acabar com qualquer forma de democracia. Impregnados de notícias fraudulentas, julgam saber, têm certezas, municiam-se de argumentos prontos e sob medida para o embate público. Desqualificam e deslegitimam profissionais e estudiosos de diversas áreas. São cidadãos ativos, sentem-se informados e detentores da verdade, capazes de mudar o mundo.

O sofrimento social é imenso, as necessidades não são apenas de ordem material, há uma carência de relações comunitárias e substantivas. O caminho para o autoritarismo se deu a partir da captura da insatisfação social, do aparente acolhimento do sofrimento real e do necessário ataque, embora seletivo, ao sistema: abre-se mão da democracia para preservar a lógica capitalista produtora do sofrimento. As misérias física ou psíquica irão se acentuar.

Este texto teve por objetivo contextualizar o terreno onde cresce o movimento reacionário e destacar a centralidade do sofrimento humano nesse processo. Nos próximos artigos serão explorados alguns aspectos desse movimento reacionário e suas técnicas.

 

* Adriana é Professora do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro, Pesquisadora do Laboratório Interdisciplinar de Extensão e Pesquisa Social (LIEPS/IFRJ) e do Núcleo de Estudos do Movimento Humano (NEMOH/UFRJ). É especialista em Biomecânica, Mestre e Doutora em Engenharia Biomédica (COPPE/UFRJ) e graduanda em Ciências Sociais na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO).

 

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