O nó górdio nas universidades estaduais paulistas, por Jose Eduardo Pereira W. Bicudo

A autonomia universitária, sem dúvida, trouxe avanços significativos para as universidades públicas. Todavia, essa autonomia, do ponto de vista financeiro, é relativa, posto que as universidades públicas dependem dos repasses do governo estadual

O nó górdio nas universidades estaduais paulistas

por Jose Eduardo Pereira Wilken Bicudo

As questões que envolvem o teto salarial do funcionalismo público no Brasil são relevantes e têm gerado algumas polêmicas decorrentes das disparidades existentes. Uma destas disparidades diz respeito especificamente ao teto salarial imposto aos professores titulares das universidades públicas estaduais do Estado de São Paulo.

Antes de uma análise mais aprofundada sobre o tema, a qual faremos mais adiante ao longo deste artigo, é importante ressaltar que ninguém entra na carreira acadêmica para se enriquecer. Por outro lado, esta carreira requer uma remuneração digna e estável. No caso específico das universidades públicas estaduais paulistas, USP (Universidade de São Paulo), Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e Unesp (Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”), uma significativa parcela dos seus docentes, em torno de 87%, é contratada dentro do regime de dedicação integral à docência e à pesquisa (RDIDP). A dedicação exclusiva é um dos pilares do ensino superior e fundamental para que o docente tenha a devida independência e autonomia para o ensino, para a investigação científica (pesquisa) e para a extensão universitária.

No Estado de São Paulo, em passado não muito longínquo, ou seja, até o ano de 1978, as carreiras, tanto na universidade como na magistratura, possuíam similaridades, tanto no que se refere à progressão nos diferentes estágios quanto às remunerações atribuídas à cada estágio. No topo dessas duas carreiras, por exemplo, um professor titular da universidade e um desembargador do Tribunal de Justiça (TJ-SP) ganhavam até o ano de 1978, respectivamente, salários equivalentes.

Essa equivalência, no entanto, começou a ser desfeita a partir de 1979, no início do governo de Paulo Maluf. Esse ano, não por acaso, foi marcado pela primeira greve dos docentes da USP, desde a sua fundação, em 1934. A partir de então, os docentes da USP e das outras universidades públicas paulistas, assim como os servidores não-docentes dessas universidades, passaram ao longo das últimas quatro décadas a fazer greves sucessivas em defesa de seus salários. Até 1989, as greves visavam sensibilizar os governos estaduais de plantão.

Com a conquista da autonomia universitária, inclusive do ponto de vista orçamentário, a partir de 1989, as greves passaram a focar diretamente na sensibilização das reitorias e indiretamente dos governos estaduais, estes responsáveis pela destinação de percentual da arrecadação do ICMS às universidades públicas paulistas. É neste detalhe que se encontra o nó górdio que envolve, hoje, as disparidades e contradições existentes em relação ao teto salarial do funcionalismo público do Estado de São Paulo, em particular em relação aos servidores das universidades públicas estaduais.

Não se trata aqui de atribuir importância menor ou maior a uma ou à outra função. Na realidade, a sociedade paulista vem reconhecendo há décadas que tanto os professores universitários como os magistrados são importantes para o bom funcionamento da sociedade, cada qual desempenhando com qualidade as suas respectivas funções.

A autonomia universitária, sem dúvida, trouxe avanços significativos para as universidades públicas. Todavia, essa autonomia, do ponto de vista financeiro, é relativa, posto que as universidades públicas dependem dos repasses do governo estadual, como mencionado anteriormente. O resultado disso, em última análise, tem sido ao longo dos anos, mais precisamente a partir de 1989, um jogo de empurra entre as reitorias das universidades públicas e os governos estaduais, no qual as reitorias vêm defendendo com muito mais veemência os interesses dos governos estaduais de plantão do que os interesses das comunidades universitárias que deveriam representar e valorizar.

Vale lembrar que no passado os reitores da USP (as outras universidades públicas ainda não existiam) despachavam diretamente com o governador de Estado de São Paulo e isso aconteceu até o final do Governo Carvalho Pinto, em 1962. Depois de 1964, tudo mudou e hoje as reitorias estão subordinadas a uma secretaria de estado. Em tese, isso mostra a perda de prestígio político que as universidades públicas sofreram a partir daquele ano e isso tem se refletido de forma mais objetiva na partição do orçamento do Estado de São Paulo.

O artigo 37, inciso XI, segundo redação dada pela Emenda Constitucional 41/2003, estabelece como teto geral dos ocupantes de cargos, funções e empregos públicos o subsídio de ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), com subtetos específicos para municípios, estados e demais poderes. O STF decidiu também que o teto constitucional do funcionalismo público deve ser aplicado sobre o valor bruto da remuneração, sem os descontos do Imposto de Renda (IR) e contribuição previdenciária.

Especificamente no Estado de São Paulo, a Constituição Estadual (inciso XII do artigo 115) define que a “remuneração e o subsídio dos ocupantes de cargos, funções e empregos públicos da administração direta, autárquica e fundacional” no âmbito do Poder Executivo não poderão “exceder o subsídio mensal do governador”, atualmente de R$ 23.048,59, ao passo que a remuneração dos desembargadores do Tribunal de Justiça de São Paulo, que a PEC 5/2016 instituiu como novo teto salarial do funcionalismo, é de R$ 30.471,11. Como se observa, a paridade que existiu no passado entre a remuneração de professores titulares e de desembargadores não mais existe já há um bom tempo.

Com o objetivo de desfazer tal disparidade, inclusive de maneira mais abrangente, foi encaminhada à Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp), em 2016, uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC), PEC 5/2016, a qual estabelecia que o teto salarial dos funcionários públicos estaduais (hoje, igual à remuneração do governador) fosse equiparado, de forma escalonada, ao salário dos desembargadores do Tribunal de Justiça (TJ-SP). A PEC 5/2016, que deu origem à Emenda à Constituição Estadual (EC), EC 46/18, foi aprovada por 67 votos a 4, em segundo turno de votação na Alesp, no dia 5 de junho de 2018. Todavia, o Órgão Especial do Tribunal de Justiça (TJ-SP), em sessão realizada em 31/10/2018, declarou a inconstitucionalidade da EC 46/18, derrubando desse modo o novo teto do funcionalismo estadual. A partir dessa declaração fica claro, portanto, que essa discussão transcende a questão pura e simples da equiparação salarial, mas nos remete à discussão de como determinados segmentos da sociedade exercem seu poder para abocanhar parcelas maiores do orçamento estadual em detrimento de outros segmentos de igual importância para o funcionamento do estado.

O fato é que até hoje a situação, além de não resolvida, agravou-se mais ainda com a instalação na Alesp de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) das universidades públicas estaduais paulistas. Neste momento, no qual as universidades públicas se encontram sob ataque feroz advindo de todos os lados, dificilmente a questão da equiparação será resolvida no curto prazo, perenizando assim uma situação que já deveria ter sido sanada há muito tempo a bem dos serviços públicos.

As atribuições dos integrantes da magistratura são bem mais conhecidas do público em geral que aquelas dos professores universitários, por exemplo. Estes, quando chegam a professor titular, em geral após mais de 20 anos de progressão na carreira docente, já passaram por vários concursos públicos, nos quais se afere o mérito dos trabalhos realizados nos âmbitos do ensino, da pesquisa e da extensão universitária, perante comissões examinadoras compostas por especialistas. Os professores titulares assumem responsabilidades importantes como chefias de departamentos, presidências de comissões (graduação, pós-graduação, pesquisa e extensão), direções de unidades e outras atribuições fundamentais para o bom funcionamento da universidade. Tudo isso sem deixar de continuar a dar aulas na graduação e na pós-graduação, conduzir e liderar pesquisas científicas, inclusive com colaborações internacionais, orientar alunos de iniciação científica, mestrado e doutorado, supervisionar pós-doutorandos, além de, em muitos casos, realizar serviços de extensão. Ademais, muitos professores titulares são também editores de periódicos científicos, são dirigentes de sociedades científicas, fazem parte de comissões de agências de fomento à pesquisa, entre tantas outras atribuições dessa natureza, e fazem tudo isso sem remuneração extra, como reza o estatuto das universidades públicas paulistas no que se refere ao regime integral e à dedicação exclusiva, fundamentais para o exercício do trabalho acadêmico, como já foi mencionado anteriormente.

Se fizermos uma comparação com o que ocorre no Estado de São Paulo e em países desenvolvidos, como nos Estados Unidos da América (EUA) e na Dinamarca, por exemplo, no que se refere à remuneração anual em Reais de professores titulares e de magistrados, temos os seguinte quadro:

(1) Professores Titulares (2) Magistrados Diferença (1 – 2) (2 : 1)
Estado de São Paulo (a) 276.048,59

(USP, com teto)

365.653,32

(TJ-SP)

-89.604,73 1,32
Estado de São Paulo (a) 336.855,36

(USP, sem teto)

365.653,32

(TJ-SP)

-28.797,96 1,08
EUA (b) 422.416,95 (média) 548.643,46

(média)

-126,226,51 1,30
EUA (b) 689.368,54

(topo 10%)

548.643,46

(média) 

140.725.08 0.79
Dinamarca (c) 469.451,05 (média) 429.733,46

(média)

39.717.59 0,91

 

  1. Dados oficiais da USP e TJ-SP, respectivamente
  2. Dados do Bureau of Labor Statistics
  3. Dados do Danmarks Statistiks

A grosso modo, as situações no Estado de São Paulo e nos EUA são semelhantes, quando comparamos os dados da tabela contidos nas linhas 2 e 4. Ou seja, magistrados, na média, possuem remunerações mais elevadas que professores titulares, também, na média, em torno de 30%. Na Dinamarca (linha 6 da tabela), por outro lado, professores titulares possuem, na média, uma remuneração mais elevada que magistrados, em torno de 9%. No entanto, quando comparamos a remuneração média de magistrados dos EUA com a de professores titulares dos EUA mais bem remunerados (topo 10%), a situação praticamente se inverte (linha 5 da tabela).

Se considerarmos que a USP é considerada a melhor universidade da América Latina, não seria nenhum pouco descabido, portanto, que a remuneração de seus professores titulares fosse ao menos equiparada com a dos desembargadores do TJ-SP (linha 3 da tabela). Este parecia ser o entendimento dos parlamentares da Alesp quando aprovaram por grande maioria a EC 46/18, cuja constitucionalidade, no entanto, o Órgão Especial do TJ-SP resolveu questionar, criando um impasse que perdura até hoje.  Na Dinamarca, onde a remuneração das duas carreiras, na média, é praticamente equivalente, ainda assim professores universitários parecem ser um pouco mais valorizados pela sociedade, assim como são valorizados pela sociedade norte-americana professores titulares que se encontram no topo 10%, isto é, professores de universidades como Harvard, Brown, Yale, Princeton, Columbia, Stanford, Duke e outras do gênero.

É evidente que comparações dessa natureza não são absolutamente precisas, mas refletem uma tendência. E, nesse caso, como as sociedades e seus governos valorizam determinadas carreiras em detrimento de outras. Em países, como a Dinamarca, claramente o ensino universitário é bastante valorizado pela sociedade, refeltindo em uma remuneração compatível com tal valorização. No Brasil, houve uma época em que o ensino universitário era considerado tão importante quanto a aplicação da justiça. Atualmente, no entanto, dado o protagonismo político que tomou conta do poder judiciário, qualquer discussão sobre equiparações justas de remunerações acaba por ficar ofuscada, em prejuízo da própria sociedade. Um desses prejuízos, sem dúvida, é a desvalorização da carreira docente como um todo nas universidades públicas do Estado de São Paulo, já que os professores em estágios iniciais da carreira não terão o devido incentivo, e tampouco vislumbrarão a possibilidade de obter remunerações legítimas e condignas com o último estágio de progressão na carreira, ou seja, o de professor titular.

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Redação

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